SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 26 de janeiro de 2020

“HÁ UMA PEDRA QUE CANTA E UM CALANGO QUE CHORA...”



*Rangel Alves da Costa


Nada do outro mundo não. Tudo verdade. Tudo no sertão. Mas é preciso conhecer esse mundo de aridez ensolarada para saber do existente ao redor e mais adiante, para ouvir suas vozes escondidas após as porteiras e cancelas, para dialogar com o que se imagina inexistente, para abrir o seu livro e conhecer suas histórias, seus causos e proseados.
Nada, contudo, será possível sem colocar o pé na estrada, sem caminhar pelos espinhos e pontas de pedras na terra nua, sem ladear com o amarelado da linda flor da jurubeba que adorna o beiral da vereda.
Mas que não saia da cidade quem não souber conversar com a pedra, quem não souber ouvir a voz do passarinho, quem não souber compreender o que faz o mandacaru de braços abertos para o alto.
Tudo no sertão possui história, possui explicação, possui conhecimento, e até mesmo no que está ocultado nos tufos do mato ou debaixo das ramagens secas. O cipó possui vida, possui história. A casa velha só falta falar e gritar, só falta puxar a mão e dizer: “Venha, venha me conhecer. Fui passado e sou escombro presente, mas muito tenho a dizer!”.
O curral abandonado ecoa mugidos de rebanhos que já se foram. A malhada nua, ressequida e silenciosa, ainda guarda em seu chão os passos de gerações e mais gerações. Uma cabeça seca de vaca por cima de um ripado de cerca. Quem foi seu dono, como morreu, e por que ali foi colocada como simbologia da desvalia sertaneja em tempos de seca grande?
Andando a pé e lançando o olhar pelas vastidões das estradas, pelas curvas e veredas que seguem, de repente a pessoa avista aquilo que parece inexistente nos seus dias. Retirantes da seca, olhos fundos em rostos carcomidos pela fome e pela sede. Ossos parecendo sobressaindo-se à pele, pés descalços que caminham sem destino algum.
Comboeiros, vaqueiros, rangidos de carro-de-bois, um cavaleiro apressado que vai atrás de uma velha parteira. No alto, cortando os céus, passarinhos que são mensageiros. O tem-tem anuncia que por ali “tem-tem” gente chegando. O quero-quero diz que precisa encontrar alimento para o seu bico deixar de tanto querer. Urubus, carcarás e avoantes de bico apunhalado, cortam os ares em busca de bicho morto, de bezerro fraco e lançado ao chão, até de gente morta nas tocaias e emboscadas.
O calango corre e corre, e corre sem parar. Ora, a terra é seca demais, o chão é braseiro puro, então tem correr para fugir do fogo. Sobre numa pedra e começa a balançar a cabeça. Não, não acredita no que vê. O que era verdoso, de mata grande, vistoso, com bicho zanzando por todo lugar, agora só a nudez em cinzas. Não, não acredita, e então balança a cabeça sem acreditar.
O mandacaru, contudo, permanece altivo, ainda que a catingueira já tenha ressecado e o barro do tanque já tenha petrificado. De braços erguidos, sempre levantados em direção aos céus, o velho mandacaru então preces, ora, faz promessas, pede chuva e bonança, pede a salvação sertaneja.
E ao sentar numa pedra, numa dessas pedras que parecem eternamente testemunhar o viver sertanejo, o andante logo ouvirá surgindo de suas entranhas: “Nada estranho. Nada de novo debaixo do sol. O sertão só é sertão por que é assim. O oásis está na lágrima e o doce pão na semente não vingada no esturricado chão. Mas eis que o tempo passa e tudo se renova. E assim num sertão que é um Eclesiastes sem fim: há de morrer para viver, há de sofrer para reencontrar o contentamento. E por aqui sempre passa uma mulher vestida de sol e me diz: Ouvi a oração desse povo. E meu filho, lá do alto, atenderá seus pedidos. A chuva vem!”.
E de repente cágados vão surgindo. Aparece um, mais outro e mais outro. E todo sertanejo deveria saber que quando o cágado aparece do nada é porque a chuvarada já está a caminho. O tempo muda, tudo parece escurecer. As nuvens prenhes tomam conta dos espaços. As folhagens se agitam, o vento sopra a dor para trazer o sorriso.
Troveja, relampeja, chove no sertão.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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