SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 29 de setembro de 2020

OLHARES, ENCHENTES E RIOS


*Rangel Alves da Costa


Quem chora sente os olhos encharcados, os transbordamentos descendo na face, aquela gelidez do entristecimento, mas nem sempre sabe de onde vem a lágrima.
Quem pranteia sente a turbidez na visão, o enevoamento na íris, tudo com se uma vidraça encharcada estivesse diante de si, mas nem sempre conhece a nascente do lacrimejar.
Quem lacrimeja, apenas sente um rio se abrindo, um mar querendo transbordar, um oceano além dos limites molhados, mas nem sempre sabe de onde vem a dolorosa enxurrada.
Quem se entrega a dor do pranto, e pranteando se dissolve como geleira que se dispersa, apenas se deixa escoar sem sequer imaginar de lhe veio aquele turbilhão.
A verdade é que as pessoas choram, pranteiam, lacrimejam, deixam-se transbordar em sentimentos molhados. As lágrimas, contudo, nem sempre chegam pelos motivos que costumeiramente conhecemos.
Sim, a perda de alguém faz chorar. O adeus inesperado faz chorar. A saudade de um amor distante faz chorar. O reencontro com o outro através de imagens de relembranças também faz chorar.
Então a lágrima vem. Primeiro a pulsão sentida, depois os olhos sendo despertados ao acolhimento e transbordamento daquela vazão interior. O olhar vai apenas recebendo mensagens, sentindo que logo virá um rio, um oceano, um mar.
Quando as comportas da alma são abertas, quando as ribanceiras interiores são quebradas, quando nada mais pode segurar a angústia, a dor ou a aflição, então os olhos abrem passagem às torrentes.
E como é triste o choro sofrido, de agonia, de entristecimento. A pessoa em si já não se doma, já não comanda seus sentimentos. Tudo parece querer explodir, irromper da alma e buscar um alento qualquer exterior. Não pode, contudo.
Por não poder bater asas e voar, deixar fluir pelos ares os sentimentos agonizantes, então tudo faz junção no olhar. E ao invés de olhos gritarem, ao invés de olhos urrarem a dor, então simplesmente passam a transbordar o que já não pode mais suportar.
E lágrimas existem que são desmedidas, incontroláveis, indo além de qualquer querer. Escorrem, jorram, extravasam. E assim acontece porque ali, ali nos olhos, a saída única para que o motivo da dor encontre sua fuga.
Impossível e insuportável seria que além da dor interior, do íntimo sofrimento, o corpo também tivesse que tudo represar, trancando em si mesmo todos os males do mundo, ou apenas daquele instante que se perdura.
A lágrima serve, assim, como uma vazão necessária, como um modo de que o corpo não fique ainda mais sufocado pelo sofrimento. Há de se chorar sim. Chorar muito, intensamente. E chorando deixar que o mal vá se dissipando.
Mas as lágrimas não se derramam apenas com os dolorosos sofrimentos. Elas chegam também numa simples saudade, numa nostalgia, numa relembrança de algum momento marcante na vida. Até pela intensa alegria ela pode chegar.
A solidão e a tristeza, e ainda que esta não tenha motivo aparente, também chamam lágrimas. De repente, e até sem perceber, a pessoa se vê lacrimejando. O que foi, se pergunta. O que está acontecendo comigo, indaga. A resposta: o sentimento se expressando através da lágrima.
Então vem o lenço. O lenço encharcado, depois é lavado e colocado em varal. Mas que não se imagine que ele já está enxuto e pronto para ser guardado. Eis que o lenço continua molhado de lágrimas.
Somente o lenço sabe o quanto ele já foi estendido em adeus, levado aos olhos como amigo, silenciosamente compartilhado dos noturnos sofrimentos. Por isso que todo lenço é tão triste. E sempre chora pelas lágrimas daquele olhar.
 
 
Escritor
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Lá no meu sertão...


Poço Redondo e os caminhos da fé...






Para amar (Poesia)


Para amar

Sim
como um dia amei
ainda amaria
o mesmo amor
de um dia
 
apagaria o passado
e com novo amor
amaria o agora
sem tristeza ou rancor
senhora
 
e confessar novamente
que o amor então sentido
é talvez o mesmo amor
em nós um dia vivido
feito prece de louvor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - Rosinha, minha canoa...


*Rangel Alves da Costa

 

José Mauro de Vasconcelos, saudoso e extraordinário escritor brasileiro (autor de Meu Pé de Laranja Lima), deixou-nos um doce e maravilhoso romance chamado “Rosinha, minha canoa”. Sem adentrar em detalhes, a história trata da relação do homem com a natureza, e também da natureza do homem com sua intrincada natureza. Faz muito tempo que o li, ainda rapazote e cheio de encorajamento para leituras. Hoje mais tomado de calendários, de folhas soltas dos anos passados, eis que me lembrei do título do livro de Zé Mauro. Saí do romance e passei a romancear minha própria vida no beiral de um rio, onde silenciosa e melancólica adormece uma canoa: Rosinha. E uma vontade danada de soltar suas cordas, segurar nos seus remos, de soprar vento bom pela boca, e sair por aí, vagueando margem a margem, sentindo a brisa e o balançar das águas solenes. Uma viagem sem destino, sem pressa, sem endereço. Como é bom viver assim, sem pressa e sem endereço. Eu e minha Rosinha. Minha Rosinha seguindo e eu recostado na madeira e envolto em pensamentos. E chegando as saudades, as melancolias, os desejos de reencontrar. “Como foi ardoroso aquele abraço, como foi doce aquele beijo, como navegamos pelas águas felizes do amor...”. Não, não quero lançar lágrimas nas águas mansas de agora. Quero apenas seguir. Seguir nos braços dolentes de minha Rosinha. Rosinha, minha canoa...


Escritor
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domingo, 27 de setembro de 2020

SERTÃO, DIFERENTE MUNDO


*Rangel Alves da Costa

 

Sertão é mundo diferente. Não é todo mundo que suportaria ser sertanejo não. Precisaria ser de pedra, de grão, de todo de pau, de espinho de xiquexique, de destemor.
Sertanejo como terra seca, dura, petrificada. Sertanejo feito gente e bicho, feito sorriso e tristeza numa só feição. Nem tudo mundo suportaria isso não. De sol e de chuva, de morte e de vida.
Quanto sofre o sertanejo! Muito já ouvi falar. E sofre mesmo, e muito mesmo. Só Deus sabe o que esse povo - que é o meu povo - padece na sobrevivência do seu meio.
O homem da cidade não entende nem o tiquinho do que realmente passa o homem das distâncias matutas. Quando a seca vem braba, faminta, esturricando tudo, então tudo desanda num desalento danado.
E não é sofrimento pela terra seca, mas por toda a sequidão que passa a existir. O corpo em magreza, o menino faminto, o bicho berrando, o entrar dia e sair dia sem que nada chega como alento.
Mas então as esperanças surgem como verdadeiro milagre ou como forma de suportar as dores da vida. Quando o sertanejo se apega à fé, à prece, à promessa, à oração, enfim, à certeza que o amanhã será melhor, então tudo muda.
E tudo muda por que a fé se torna como um remédio contra os males que tanto afligem. E na fé a esperança. Daí que muito se diz que tudo
Pelos campos desalentados sertões adentro, nenhuma demora das chuvas consegue afastar as esperanças.
O olhar do sertanejo é um rosário tomado de esperanças. As mãos do sertanejo é um oratório de esperançoso céu.
A chuva não veio ainda, mas chegará no tempo certo. Assim diz o sertanejo. Tudo no tempo de Deus. Assim confirma outro sertanejo.
Mas antes que as chuvas cheguem, os campos áridos já espelham o quanto brota de esperanças. Tudo seco ao redor, mas a catingueira floresce bela.
A flor da catingueira, como um brinco dourado descendo rente a face magra da plante, demonstra o quanto de esperança viva nasce e renasce a cada instante.
Pelas estradas, enquanto os marrons e acinzentados entristecem ainda mais a murcheza do mato, então surge o alaranjado-avermelhado da flor e do fruto da jurubeba.
Um encanto aos olhos, mas também a certeza de que a seiva da esperança continua viva em cada pedaço de chão, cada tufo de mato, em cada planta que entristece por falta d’água.
Assim também nas flores e nos frutos das cactáceas sertanejas. A palma definhando, secando, morrendo na fornalha do sol, mas de repente avista-se uma vida florando sobre seus espinhos.
O mandacaru, o facheiro, o xiquexique, tudo comprova o quanto de vida vive quando já se acredita que tudo já esteja sem vida.
As flores surgem, as pétalas se abrem, os frutos tomam forma e cor, os bagos se adocicam, as polpas se avolumam, as cores espantam entre os acinzentados ao redor.
A vida sertaneja floresce assim. A vida sertaneja floresce nas esperanças tantas e que nunca murcham completamente nas plantas e no homem.
A planta floresce e frutifica pela invisível gota d’água do tempo. Aquele mesmo tempo de Deus. O homem floresce e frutifica pela fé incontida no seu coração.
A fé santa brotada de Deus. E pela prece, pela promessa, pela oração. Até que o olhar, logo ao abrir a porta ao alvorecer, diga que vai chover.
E os braços, como aqueles braços sempre abertos do mandacaru em direção aos céus, se elevem para os sagrados agradecimentos e para receber chuva boa.
Uma esperança nunca perdida. Nada teve fim, nada morreu perante o sertanejo. A fé sertaneja sempre resguarda a esperança de que amanhã será bem melhor.
E talvez seja por isso mesmo, pela fé incontida que brota em esperança, que a vida sofrida é suportada. E que o sofrimento seja diminuído pelo remédio sagrado da fé.


Escritor
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Lá no meu sertão...


"Na ribeira desse rio, ou na ribeira daquele..."






Véu da pele (Poesia)


Véu da pele


O véu da pele
faz o olhar
ir além
para roçar
a pele nua
tão quente
tão crua

e as mãos
tocam
e roçam
com a ânsia
que do desejo
expele
querendo
pele na pele.

Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - a ilusão, o voo, a queda...


*Rangel Alves da Costa


          Vivemos em tempos de ilusões, de voos cegos e certezas de quedas. Vivemos momentos onde a maioria das pessoas se contenta em não serem elas mesmas para, simplesmente, lançarem-se aos falsos alentos das mentiras, das submissões, das humilhações desejadas. Ora, impossível que a sã consciência de um povo possa dizer que o fanatismo político é correto, que a cegueira apaixonada se justifica, que a ideologização do nada serve como bandeira partidária. Um povo do açoite, da chibata, da ferroada, mas que quanto mais sofre mais demonstra contentamento. Um povo que aplaude o escárnio e a bestialidade de um governante. Um povo que vê o fogo engolindo a vida e não ter caráter para dizer que é culpado por tudo fazer - ou não fazer - para deixar “a boiada passar”. Que povo é esse que se ilude e se ajoelha perante uma esmola forçadamente dada e depois santifica seu algoz? Que povo é esse que vai enterrando pelas doenças e pela fome e depois, mesmo sabendo de quem é a culpa, simplesmente aplaude ao invés de bradar? Tudo que custará muito caro. Vive na ilusão, na fantasia, e começa a alçar voo cego bem ao lado do abismo. E quando sentir que não tem mais asas já terá sido tarde demais. Um povo em queda livre rumo a um abismo chamado desesperança, fome, medo, abandono.


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segunda-feira, 21 de setembro de 2020

AQUELES CEM ANOS DE SOLIDÃO NO UMBRAL DA JANELA


*Rangel Alves da Costa


Borboletas, borboletas, borboletas. Suas presenças parecem tornar a vida mais alegre, mais ajardinada, mais primaveril. Mas suas presenças também inquietantes sinais, misteriosos, indagadores. Leves, belas, coloridas, mas também provocando muitas e múltiplas indagações. Estar na presença de uma borboleta não é apenas estar na presença de uma borboleta. Nunca.
Acordo e logo corro para abrir a janela. Sei que ela vem. E ela chega. Todos os dias faz assim, cumprindo um mesmo ritual de magia e de cor. Não sei o que pretende fazendo assim, pois no meu quarto não há nenhuma flor, nenhuma planta, nenhuma fonte de água, nenhuma compota de doces. Mas ela chega todas as manhãs, parecendo mesmo que dorme ao umbral da janela esperando somente que eu a abra.
Um mistério que me comove e encanta. Não há qualquer explicação para que uma borboleta, e sempre a mesma borboleta, entre pela janela do meu quarto ao alvorecer. Vem, pousa no umbral, em seguida levanta voo e começa a planar por cima da cama, pelas paredes, pelos cantos, por cima da escrivaninha. Já pensei em espantá-la, em colocar tela protetora na janela, mas depois fui aceitando alegremente aquela inesperada visita.
Levanto a mão, passe rente, mas sempre prefere um pouso ligeiro no meu ombro. Talvez não encontre no meu corpo nenhum perfume que lhe agrade. Nunca fica em mim mais que poucos segundos, pois sempre levanta voo em outras direções. Quanto mais a manhã é ensolarada mais ela parece mais bela e fascinante em seus tons amarelados, de um dourado parecendo pintado à mão.
O fato mais estranho, contudo, é que ela sempre prefere ficar em cima do meu livro de cabeceira: Cem Anos de Solidão. E ali como quisesse folhear o livro, entrar no livro, viver o livro. Certamente não sabe, contudo, que ali está Macondo e seu mundo mágico, fantástico, povoado dos Buendía, de espantos e estranhezas. Gerações e mais gerações de personagens que nos ensinam que o incompreendido é a realidade maior e mais convincente.
E um fato surpreendente depois revelado nas minhas indagações. Dentro daquelas páginas existem borboletas e mais borboletas, muitas borboletas, entrando no quarto de Meme, a Renata Remedios do livro, enquanto o cigano Maurício Babilonia está ao seu redor em amoroso cortejamento. Aliás, borboletas amarelas que sempre acompanham o rapaz e que parecem estar por todos os lugares de Macondo, pois ler o livro de Garcia Márquez é como ouvir o ruflar de asas de borboleta a todo instante.
 Cem Anos de Solidão é um mundo povoado de borboletas amarelas. Garcia Márquez colocou um jardim entre loucos, insanos e sonhadores, e ao invés de flores povoou de borboletas amarelas. Então, será que aquela borboleta não seria uma das tantas existentes em Macondo e querendo às páginas de Garcia Márquez retornar? Mas não a aprisionarei dentro daquelas páginas. Apenas deixo o livro aberto, esvoaçando ao vento, para que a borboleta voeje ao redor do seu mundo.
Em Cem Anos de Solidão, dezenas, centenas, milhares de borboletas amarelas, povoam o quarto de Renata Remedios quando Maurício Babilonia chega para visitá-la. As borboletas sempre acompanham Babilonia a cada passo que dá, sendo todas amarelas, leves, suaves, como surgidas de encantamento, ou mesmo como que afloradas das raízes ciganas do rapaz. Mas também borboletas que povoam os sonhos da bel Remedios e sobre o seu corpo em virgem flor passeiam apaixonadas.
"As borboletas amarelas invadiam a casa desde o entardecer. Todas as noites ao sair do banheiro, Meme encontrava Fernanda desesperada, matando borboletas com a bomba de inseticida. "Isto é uma desgraça", dizia. "Toda a vida me disseram que as borboletas noturnas chamam o azar." Certa noite quando Meme estava no banheiro, Fernando entrou no seu quarto por acaso e havia tantas borboletas que mal podia respirar. Apanhou um pano qualquer para espantá-las." Diz uma passagem do romance.
Eu não tenho nada a ver com Maurício Babilonia nem com Meme, com a bela Remedios ou qualquer dos Buendía, em quaisquer de suas gerações, mas uma coisa tenho certeza que me aproxima daquela história de solidão e borboletas: minha solidão de janela aberta e minha estranha visitante de todo dia. A borboleta povoando meus cem anos de solidão.
As borboletas são alegres, mas seu arco-íris de cores possui outras tonalidades nos meus cem anos de solidão. E voos em céus sombrios e desiludidos.


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Lá no meu sertão...


Fé do povo ribeirinho



Mãos de barro (Poesia)


Mãos de barro

As mãos magras
os dedos finos
movem o barro
ajeitam o visgo
e vão moldando
uma vida
na argila
da terra
 
o pote
a moringa
a panela
a tampa
a tigela
no barro
 
moldado e alisado
deixar secar
levar ao fogo
avermelhar
e depois vender
no meio da feira
por um tostão
vintém besteira.
 
Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - sertão e fé


*Rangel Alves da Costa


Os caminhos da igreja são pelas estradas de chão. O andor em carro-de-bois, um povo sertanejo em procissão. O que explicaria, debaixo do sol o clarão, tão belo cortejo, tão abnegada veneração? O povo tem oratório no coração, tem vela acesa no olhar, leva rosário na mão. O sertanejo espalha os céus pelo chão, torna florida a espinhenta vegetação, caminha feliz pelas veredas da devoção. As vozes se elevam em oração, os mistérios da fé se expandem, no peito o pulsar de emoção. Vai menino com tua imagem, com este Deus que é teu pai e irmão. Vai senhora da fé com tua promessa adornada de benção. Seguem os passos, são poucos, mas são de imensa multidão. E o cortejo segue o destino da louvação, e vai seguindo e seguindo, como a fé em coroação. Na humildade sertaneja, o sagrado e a religião. E pelos campos ecoando as rezas de Santa Missão: Dai-nos a benção Senhor, protege o nosso Sertão!


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segunda-feira, 14 de setembro de 2020

A ESCOLHA DO JAGUNÇO


*Rangel Alves da Costa


Coisas que só aconteciam naqueles sertões de antigamente. De se acreditar ou não, mas a verdade é que aconteceram. Jagunço que tanto matava também morria. Matador com remorso de ter matado tanto. Leiam essa história e saibam como tudo acontecia.
Quando o vigário recebeu o recado quase dá um troço. Tremeu, avermelhou, chegando mesmo a arroxear. Foi preciso tomar meio copo de pinga para se equilibrar novamente. Eis que não podia acreditar no que tinha ouvido.
Mas não podia negar. Pedido vindo do coronel, dono de terra e bicho, e também das armas e dos que apertavam os gatilhos, era pra ser obedecido. E sem demora. Contudo, verdade é que era um pedido difícil demais de ser atendido. Isso não podia deixar de reconhecer.
Ora, oferecer a extrema-unção a jagunço, pistoleiro de mando, matador de mais de vinte, era coisa que nunca tinha feito e que desafiava seu juramento religioso. Cometeria imperdoável pecado. Por outro lado, devia favor demais ao coronel, sem falar que corria o risco de lhe acontecer o pior acaso deixasse de prestar o último sacramento ao pistoleiro.
Já tinha ouvido falar pela própria boca do coronel - e isso como exemplo de menor monta - que o tal jagunço tinha um carcará como bicho de estimação. E costumava levá-lo no ombro quando ia fazer tocaia pelas redondezas. Depois de fazer fumaçar o cano mortal e perceber que o cabra estrebuchava no chão, era só soltar o bicho que ele ia certeiro na direção dos olhos. Arrancava tudo.
Mas pelo que ouviu do emissário, o jagunço mais confiado pelo coronel estava no leito de morte. Não que houvesse recebido uma resposta de fogo, um tiro igual a tantos que disparou em tocaias e emboscadas. Não. Sabe-se apenas que de uma hora pra outra o homem começou a ter remorsos e disse que ia morrer. Foi com essa intenção que se retirou pro seu barraco e ali se jogou numa cama de varas.
Dizia que queria morrer, que queria morrer, e nem uma rápida visita do seu patrão fez o homem repensar sua decisão e levantar. Até que o coronel propôs dar logo cabo na sua vida com um tiro certeiro na testa dado por outro da mesma laia, mas o cabra rejeitou. Disse que morrer de morte matada seria ligeiro demais e menos doloroso do que a dor verdadeira que queria sentir.
O patrão perguntou por que falava daquele jeito, porque desejava morrer aos poucos, com sofrimento penoso e demorado, e o jagunço simplesmente olhou na direção da arma e fez derramar uma lágrima pelo canto do olho. Perguntado se estava com remorso por já ter matado tanta gente, ele nada respondeu. Soltou outra lágrima. Mas antes que o coronel saísse pediu que lhe arranjasse um vigário para uma última confissão.
Quando o velho sacerdote despontou na malhada da tapera já passava de uma semana do recado recebido. A desculpa enviada ao poderoso amigo era de que estava em jejum fechado. Mas não pôde adiar mais e subiu num lombo de burro. Assim que empurrou a porta para entrar tomou-se de indescritível espanto. O jagunço estava jogado por cima de uma esteira mais parecendo um fantasma.
No mesmo instante o vigário viu que não era nem mais caso de confissão, mas de extrema-unção mesmo, pois o cabra parecia nem estar mais respirando. De uma magreza de bicho na seca, barba de muito tempo sem fazer, um verdadeiro frangalho humano. Lentamente foi abrindo os olhos e ajeitando a cabeça assim que ouviu o vigário anunciando que havia chegado. Sente, o sacerdote ouviu espantado.
Depois o jagunço silenciou novamente e assim ficou por uns cinco minutos. Sentado num banquinho adiante, o da igreja já preparava os óleos para o sacramento quando ouviu, numa voz quase inaudível: Estou morrendo, estou morrendo... Então o vigário apressou-se em derramar os preparos sobre sua testa, a fazer sinais, a pronunciar as palavras apropriadas.
Dez minutos depois, quando a respiração parecia já ter se esvaído e os olhos estavam sendo fechados de vez, o lábio lanhoso se moveu e ele disse: Ainda tenho tempo de confessar uma coisa padre. Chegue mais perto que quero dizer. Mas primeiro me dê aquela arma que tá ali.
Em obediência ao último pedido do moribundo, o vigário não viu nenhum pecado em atendê-lo. Trouxe a arma e colocou-a perto da mão do jagunço. E depois ouviu de sua boca: É que não posso morrer sem cumprir um pedido que me foi feito há muito tempo pelo coronel. Uma vez ele mandou lhe matar. E tenho que cumprir agora...
E um estampido ecoou pelas brenhas sertanejas. Mais uma bala certeira, mais uma morte. E em seguida o vigário fugiu pelo mato com o seu jumento. Havia sido mais rápido que o jagunço. Puxou a arma debaixo da batina e deu um tiro na testa do homem.
Mas não correu da tapera sem antes derramar todos os frascos que tinha por cima do morto. Era pra livrá-lo dos pecados no outro mundo.


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Lá no meu sertão...



EM JACARÉ, JÁ SEGUINDO PRA CAJUEIRO. Só quem vai catar grão a grão do sertão, sabe valorizar sua terra, chão a chão...




Outro amor (Poesia)



Outro amor


Por amor
já me devocionei na fé
já me prostrei em oração
já vi a face de Deus à luz de vela

por amar
já confessei todo o amor sentido
já levei flores e jardins
já disse no olhar muito além da palavra

por amor e por amar
fui justo e sincero em cada gesto
fui fiel e verdadeiro em cada passo
fui aquele que ela não pudesse duvidar

mas depois de tudo
depois de tanto amor e tanto amar
a solidão me restou como retribuição
ao que nunca faltou e até transbordou

mas o que restou em mim
foi maior que todo aquele amor
pois a incomparável certeza
de ter amado na grandeza do coração.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - depois da vidraça...



*Rangel Alves da Costa


Ontem, aí sentado em meio ao quase silêncio da tarde, eu olhava o mundo sertanejo passando lá fora e ficava imaginando e imaginando... Vaqueiros e cavalos passando, pessoas caminhando nos seus afazeres do dia a dia, carros e motos com sua pressa de chegar. A ventania soprava trazendo poeira e pó. A radiola do Rancho desligada, melhor assim. Uma vidraça à minha frente, como se seu estivesse separado daquele mundo por um escudo. Mas eu tudo sentia e pulsava como se do outro lado estivesse, sentindo o meu povo passar, sentindo a minha gente falar, sentindo o que cada levava em seu pensamento. Mesmo sem caderno e lápis, eu tudo rabiscava nos rascunhos de minha mente. E descrevia aquela paisagem, pessoas e objetos, como a síntese de um mundo em sua transformação. Aquele asfalto era chão, aquela moto era lombo de um animal, aquele carro era um carro-de-bois, aquela menina bonita era uma mocinha carregando um pote d’água à cabeça. E amanhã, como será? Tudo passa, tudo passará...



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quarta-feira, 9 de setembro de 2020

O NEGO D’ÁGUA



*Rangel Alves da Costa


Era noite de escuridão retinta em Curralinho. Abeirando o rio, as águas pareciam recobertas de papel laminado. Um silêncio medonho, pois naquela mudez havia o temor de os mistérios e as lendas tantas se tornarem reais. E eu estava sozinho.
Contavam histórias mirabolantes de dentro do rio e de sues arredores. Diziam dos barcos defuntos que passavam ao som de sentinelas e com velas acesas. Contavam da mulher triste que do nada aparecia chorosa e com buquê de flores à mão. Lançava rosas nas águas e depois novamente desaparecia. Seu pescador havia sumido numa noite de solitária pescaria. Afirmavam de peixes monstros que emergiam das águas e se transformavam em estranha gente. Sem falar em histórias de carrancas, das pedras gemendo, do vapor fantasma que aportava naqueles beirais. Mas nada disso eu tinha medo.
Medo mesmo eu só tinha do Nego D’água. Não de alguma maldade que ele pudesse fazer, mas tão somente das peripécias de arrepiar que eram passadas de boca em boca. Naquela noite, porém, encontrei um. Imagino que encontrei, pois não o vi, dele não me aproximei por querer nem sei se é neguinho mesmo ou qual feição ele tem.
Dizem que é como um meninote, baixinho, troncudo, de pele escurecida, com dentes de peixe. Mas que é virado na gota serena. Aparece do nada. De repente chega pra assustar, faz o mundo revirar, e depois começa a dar gargalhadas de as águas estremecerem. Mas como eu encontrei o Nego D’água?
Eu estava descontraidamente sentado na beira do rio quando ouvi um batim, ou seja, como se alguém tivesse se jogado do alto de uma pedra em direção às águas. No instante que ouvi, rapidamente olhei para uma pedra grande mais adiante e lá não avistei ninguém. Contudo, as águas se agitavam em ondas ao redor. A pessoa deve ter mergulhado, pensei. Um segundo após, e para meu espanto, no alto da pedra, em meio à escuridão enluarada, avistei uma figura estranha. Era o neguinho.
No mesmo instante ele se lançou nas águas e, quase no mesmo instante, já apareceu soltando gargalhada em minhas costas. Quando me virei, nada mais encontrei, pois o neguinho já dava outro batim de cima da pedra. Então achei melhor não mais temer, aceitar toda aquela estranheza como algo normal. Assim que ele percebeu que eu não mais me importava com suas medonhices, logo sentou na pedra, baixou a cabeça, e entristecido começou a chorar.
“Chore não, neguinho!”. Eu gritei. Mas suas lágrimas aumentaram e, se misturando às águas do rio, avançaram até os meus pés. Olhei para baixo e avistei, no espelho encharcado de lágrimas, a sua feição. E também ouvi sua voz, dizendo:
“Não diga a ninguém que sou frágil e também choro. Na mente dos outros, eu só existo porque sou filho das entranhas do rio e posso amedrontar. Mas, como o rio e a própria natureza, vou definhando, enfraquecendo, perdendo minha força de existência. E por isso eu entristeço e choro!”.


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Lá no meu sertão...


Relíquias do Sertão!



Antes de partir (Poesia)



Antes de partir


Meu amor
era assim que eu chamava

amor
foi assim que chamei

você
como eu passei a chamar

e já percebendo
que já não havia o amar

desculpe-me
foi assim que eu pedi

quando tudo acabou
e um dia eu parti.

Rangel Alves da Costa



Palavra Solta - pelos campos de meu Deus...



*Rangel Alves da Costa


Ali - pelos campos de meu Deus - e ao redor, apenas um silêncio envelhecido. Não tanta mudez assim. A ventania sopra, a folhagem farfalha, um bicho de mato faz barulho entre os tufos catingueiros. Já não há mais cheiro de café torrado, batido em pilão e coado na velha arupemba. Não há cheiro do caldo grosso do café se derramando sobre o braseiro no fogo de chão. Também não há cheiro de cuscuz no fogo nem de tripa de porco chiando na estaladeira. Mas tudo bem. É um silêncio de paz, de sabedoria, de memória e reencontro. Não há carro parado com mala aberta e barulho insuportável de tudo o que não presta. Não há garrafa sendo quebrada nem ameaças de um ao outro. Não há olhares despertando estranhezas nem os inimigos invisíveis de cada esquina. Não passa o vergonhoso modismo nem as perdições da cidade. O carro da polícia não precisa ser chamado nem se ouve a arrogância do motor da moto. Ao contrário, pois por ali corre um preá, mais adiante o cachorro faz carreira atrás de qualquer coisa. E, por todo lado, uma natureza solene e majestosa. Um silêncio cuja voz interior é ouvida em palavras de agradecimentos.


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quarta-feira, 2 de setembro de 2020

SER SOLIDÃO



*Rangel Alves da Costa


Quem não ama a solidão, também não ama a liberdade. A frase é de Arthur Schopenhauer (1788-1860). Com isto quis proclamar o filósofo que a solidão não pode ser vista apenas como um mal que atormenta o ser, eis que somente através dela o homem é livre para expressar todo o seu sentimento, para proclamar-se sem disfarces e demonstrar toda a sua força ou fragilidade. Eis o contexto em que está inserida aquela frase:  
“Cada um só pode ser ele mesmo, inteiramente, apenas pelo tempo em que estiver sozinho. Quem, portanto, não ama a solidão, também não ama a liberdade: apenas quando se está só é que se está livre. A coerção é a companheira inseparável de toda a sociedade, que ainda exige sacrifícios tão mais difíceis quanto mais significativa for a própria individualidade. Dessa forma, cada um fugirá, suportará ou amará a solidão na proporção exata do valor da sua personalidade. Pois, na solidão, o indivíduo mesquinho sente toda a sua mesquinhez, o grande espírito, toda a sua grandeza; numa palavra: cada um sente o que é.”
As palavras acima são de clareza singular. Afirma o filósofo que o homem completo, na sua inteireza do ser, exsurge somente quando está sozinho. Eis que na solidão o indivíduo revela-se completo, liberto, sem qualquer disfarce. Sozinho não há imposição alguma da sociedade, não há força social que manipule o ser, e por isso mesmo o homem se mostra apenas o que verdadeiramente é. Ademais, a liberdade trazida pela solidão, colocando o homem sem amarras, proporciona a este mostrar sua fraqueza, se fraco for; impor sua força, se forte for. Quer dizer, somente a solidão para proporcionar ao homem a sua verdadeira liberdade, pois momento único para se mostrar sem disfarces.
Daí a grande lição da solidão: Sozinho, o homem não é mais nem menos do que verdadeiramente é. Até mesmo fingir ser aquilo que não é, acaba comprovando o ser dissimulado que o homem é. Daí que a solidão é instante único para espelhar sem retoques, para mostrar a face sem qualquer máscara, para dizer que o homem sozinho assim se comporta porque desse modo ele realmente é. Daí que chora porque não finge sentimentos; enfurece porque propício ao enraivecimento; sofre porque propenso à angústia, à dor, ao entristecimento.
Quando Schopenhauer afirma que solidão é liberdade, certamente o faz para mostrar a nudez que com ela é revelada. E nudez no sentido de verdade, de não fingimento de sua realidade. Assim, a solidão se apresenta como momento único de liberdade do ser. Como afirmado, dessa liberdade o agir sem a vigilância de outrem, o pensar sem se sentir observado, o fazer o que quiser sem temer repressão de quem quer que seja. Ora, está sozinho, liberto, encontrando apenas consigo mesmo. E o indescritível instante para fazer o que seria impensável diante de outros.
Daí que não é tão ruim assim fechar a porta atrás de si e aproveitar ao máximo a solidão que silenciosamente se apresenta. Talvez os outros, aqueles que apenas avistaram a pessoa se recolhendo, fiquem falando ou imaginando a tristeza que deva estar sendo suportado naquele quarto fechado, naquela insuportável solidão. Não imaginam, contudo, que aquele recolhimento representa um caminho de liberdade. Jamais supõem que a pessoa ali trancada, ao invés de estar inventando coisas para dar cabo à vida, está feliz e reencontrando consigo mesma.
E não é à toa que a solidão serve como fundamento ao conhecimento do ser pelo ser. A meditação exige solidão, a reflexão filosófica implica em solidão, o percurso mental em busca de conhecimento pressupõe uma boa dose de solidão. E assim porque somente na solidão o homem é capaz de elevar o pensamento e encontrar respostas para suas mais inquietantes indagações. Do mesmo modo no homem comum, cuja solidão o faz tão verdadeiro como nem ele mesmo se imagina. O fato de estar sozinho o faz liberto para ser outro, mas acaba sendo apenas sua própria feição.


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Lá no meu sertão...


Em Curralinho... Chico Velho. Velho Chico...




Assim é o amor (Poesia)



Assim é o amor


Do mesmo céu azulado
de horizonte ensolarado

assim é o amor...

um belo noturno enluarado
como firmamento estrelado

assim é o amor...

de entardecer revoado
na planura de asas alado

assim é o amor...

assim é o nosso amor
em nós mais que amor amado.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - branconceito



*Rangel Alves da Costa


Branconceito. Ora, branconceito pode ser considerado um neologismo para indicar o preconceito contra a pessoa de pele branca. Considerando que preconceito também pode ser visto como o conceito previamente firmado acerca da pessoa de pele preta ou negra, o branconceito seria sua inversão. Neste caso, seria o preconceito que pessoa negra tem com relação à pessoa de pele clara ou branca. Logicamente que o termo preconceito serve para indicar o prévio e negativo conceito que se tem contra pessoa de qualquer raça, cor, sexo, religião, etc. Mas em sentido estrito, assim como se dissemina a existência de aversão às pessoas negras, a verdade é que muita gente de pele escura simplesmente não gosta de pessoas de pele clara. Aos olhos de muitos negros, simplesmente os brancos são vistos com antipatia e até ódio, como se quisessem culpá-los pela cor de sua pele, de sua raiz familiar ou de sua nacionalidade. Ou até pelo fato de que, no passado distante, o europeu (tido como branco) foi o responsável pela escravidão de uma raça ou a desumana submissão de um povo. Tais fatos ainda são tidos por muitos como elementos de rejeição e de rancor. E não deixam de ter razão, pois muito branco ainda continua tendo a mesma visão de submissão e de menosprezo à classe negra. Infelizmente é assim. E o branconceito acaba mesmo sendo justificado.


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