SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 31 de maio de 2019

SINAIS



*Rangel Alves da Costa


Em tudo há um sinal. No bem e no mal, sempre um sinal. Ao que faço tão bem e ao que faça mal. Não dá para fugir do que sempre se mostra como um pedestal.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, arrumar as coisas e dizer que vai embora. E seguir a estrada pelo mundo afora, acreditando que atrás fica alguém que chora.
São os sinais do tempo, são os sinais de agora, dizer que só gosta e não dizer que adora, ou fingir sentimentos do peito pra fora.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, tudo tão volúvel, tudo que evapora, sem nobreza n’alma que tanto implora a boa virtude de esperar a hora.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, tanto fez tanto faz em tudo o que aflora, pois nada importa se tudo é brinquedo que se joga fora.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, a insensibilidade que a tudo devora, na incoerência que a verdade deplora, deixando o ser sem prumo ou escora.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, um navio sem rumo que num porto ancora e saudoso fica das águas de outrora, sem ter mais destino, pois o mundo o ignora.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, o que estava dentro e foi jogado fora, só pela maldade de mandar tudo embora, até mesmo o amor que no outro aflora.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, que mesmo a esperança nada revigora, já que tudo desfeito não retorna na hora e o que foi rejeitado não retorna sem demora.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, a sede de ter tudo e de tudo se arvora, quando o que tem diga que adora, mas o que não tem logo se assenhora.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, tanto faz a manhã, tanto faz a aurora, o galo que canta parece ter uma espora que espanta o sorriso e a felicidade desaflora.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, e já não se conhece, já não se namora, tudo é logo na cama e depois vai embora, fazendo do corpo a honra que se devora.
Será que o tempo só traz amargor, que renega a paz, que rejeita o amor? Será que o tempo é assim tão atroz, de tamanho egoísmo que se esquece de nós?
Será que o tempo nos constrói de vento, nos faz de areia e na cal do tormento, será que ao invés da alegria e prazer, simplesmente nos doa a dor e o tormento?
Será que o tempo tem borracha à mão e vai apagando cada passo no chão? Será que o tempo brinca de viver, não dá tempo ao tempo para que o melhor possa acontecer?
Será que o tempo é relógio quebrado, que ao invés do compasso vai descompassado, transformando o instante num tempo já passado e o que passou no que à frente é avistado?
Será que o tempo guarda para mim algo além de um tempo que tudo seja fim, ou que algum tempo a felicidade porta a porta enfim? Ou será que me nega até o que há em mim?
Sei que são os sinais do tempo e os sinais de agora, queria outra fruta, mas só tenho amora, e já não há pomar na minha aurora. E já não sei se fico ou se já vou embora.
Os sinais de agora atormentam a vida. Da porta pra dentro só a dor doída. Da porta pra fora a estrada dividida entre o caminhar e a espera sofrida. Mas são os sinais e não há saída.
Os sinais de agora são como vendavais que levam os restos e não voltam mais, deixando os lenços estendidos em varais. O que aqui estava já não será mais.
Os sinais de agora são como profecias, como o Eclesiastes e suas ironias, que transformam noites em clarões dos dias, pois tudo se transforma depois das calmarias.
Os sinais de agora são sinais de dor, não há mais sinal sequer de amor, pois o que se plana é o medo e o horror, e o que se colherá será de espinhos na flor.
Em tudo os sinais do tempo e os sinais de agora, não há como fugir ou desejar ir embora, pois tem de suportar a colheita da hora e o que foi plantado não se joga fora.
Resta ao homem reaprender a viver, não querer ser além do que merecer, pois tudo está marcado com a sua hora, no sinal do tempo, no sinal de agora.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Igrejas de Poço Redondo, sertão sergipano




Velho demais (Poesia)



Velho demais


Envelheci demais
no retrato
no espelho
no que imagino
ser e já não sou

envelheci demais
já não vou
apenas espero
já não beijo
apenas recordo

e velho demais
já não sei
a minha idade
apenas sinto
de tudo saudade.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – numa noite escura



*Rangel Alves da Costa


Qualquer dia desses. Ontem, ou mais distante, ou amanhã, ou qualquer dia, mas numa noite escura. Pela noite escura caminhar procurar vaga-lumes, procurar a luz do luar, ouvir o grito do lobo em cima do monte, ouvir o farfalhar ressequido das folhas agonizantes de saudade. E eu caminhando por aí na escuridão da noite escura. Não temo os labirintos, as curvas ou os assombros. Nada temo se o que desejo é caminhar na noite escura. A luz já me mostrou demais, a lua já clareou demais, a vela acesa já revelou demais, a lâmpada acesa tudo já mostrou. Os olhos agora desejam apernas imaginar cada encontro. Os olhos apenas desejam inventar e reinventar aquilo que deseja avistar. Nada mais que um experimento de vida. Nada mais que ir atrás de uma estranha felicidade: o lumiar da vida através do que tornarei luz na escuridão.


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quarta-feira, 29 de maio de 2019

A BATALHA ENTRE O SOL E A CHUVA NO REINADO SERTANEJO



*Rangel Alves da Costa


Desde os primeiros tempos, quando o sertão foi criado, que uma guerra é travada pelo trono de seu reinado. Guerreiros de valentia, cada um mais aquinhoado, usando potentes armas pra ver o outro exterminado.
De um lado está o sol, de bravura tão afamado, usando raio e tridente contra o inimigo criado. Quando está enfurecido, nas alturas revoltado, lança suas chamas escaldantes pelo sertão fraquejado. Possui tamanha ferocidade em cada raio lançado, que nenhum ser sobre a terra se protege do danado.
Ataca o bicho e a planta, tudo no chão deitado, e fere a nobreza do homem, que se vê menosprezado, sem ter valia alguma ante o queimor desbragado. Sol que serve à vida, mas que deixa o sertão arruinado, e põe o homem na fogueira com seu mundo devastado.
Sol que nasce bonito, lá no alto encantado, mas que logo vira brasa e deixa tudo abrasado, queimando ramagem e folha, deixando o pasto esturricado. E não adianta pedir pra ele ter mais cuidado, pra descer mais de mansinho e sem deixar tudo queimado, pois ele não ouve prece e muito menos rogado.
Diz que é dono do sertão e no sertão foi criado, que é o dono da vida e de tudo nela criado. Cedinho já tá em pé e pouco mais já tá armado, com escudo luminoso e de raio prateado, é mestre da ilusão, pois tudo no fogo forjado.
Diz clarear o sertão e lhe deixar embelezado, mas vai tostando aos poucos o que há na terra e banhado. O bicho teme o sol, pois sabe que é malvado, sabe que sua presença é sinal desesperado, sinal de tempo ruim, de sertão incendiado.
O homem teme o sol porque já vive avisado, bastando que brilhe muito pra ficar todo espantado, pois sabe que vai sofrer, tanto ele como o gado. Maria fez uma prece pro sol se dar de arribado, mas logo pediu clemência ao ver o tanque secado.
João emborcou o santo, botou o pobre enterrado, dizendo que só voltaria se o sol fosse bandeado, pra bem longe do sertão e o sofrimento acabado. Mas o tempo foi passando e nada do sol ir embora, e João mais que desesperado afundou mais o coitado, até que um dia o santo pelo homem foi avistado, passando numa enxurrada pelo sertão todo aguado.
Depois João pagou promessa e num altar elevado botou o santo ali, e o santo desconfiado, pois sabia que seu destino era ser de novo enterrado, pois o sertanejo faz de tudo pro sol se sentir sombreado, pra nuvem gorda surgir e o pingo rolar deitado.
O que o sertanejo deseja é um sertão chuvarado, com pingo grosso caindo e por todo canto molhado, barragem bebendo água e bicho alegre no cercado. A chuva pro sertanejo é o milagre esperado, depois de promessas e rezas enfim o sonho tão almejado, pra plantar e pra colher, pra não ser mais humilhado, pedindo as autoridades cuia d’água pro gado.
Por isso que o mundo se encanta, fica tudo maravilhado, assim que o tempo chuvoso pelo horizonte é avisado, dizendo que a vida vem em cada pingo lançado. Mas pra chover no sertão é uma peleja de lascar, uma guerra tão feroz que deixa o mundo alquebrado, pois o sol não abre mão de ter tudo esturricado, enquanto chuva diz não, que quer ter tudo florado.
O sol é guerreiro valente e nunca se viu derrotado, mas a chuva é mais potente por ter um escudo sagrado, e dizem que cada pingo por Deus é abençoado. Então nessa guerra terrível, entre o sol e a chuvarada, o que sair vencedor será dono do reinado, comandará o sertão e o que lhe for predestinado.
O sol não luta sozinho, pois teme o céu nublado, então chama seu exército para se sentir escudado. Chama a seca e a fome, chama a planta morta e o osso do gado, chama o prato vazio e o olhar marejado, chama a morte e o sofrimento, e tudo de ruim é chamado.
Já a chuva logo chama o que lhe for abençoado, chama a esperança e a vida, chama o verdor adorado, mas principalmente o sertanejo com seu armamento pesado: a prece e a devoção, a crença no Deus invocado, a certeza da vitória, pois nunca abandonado.
Então a chuva desponta em avanço agalopado, vai molhando todo o sol e faz deste um derrotado, fugindo para bem longe do sertão maravilhado. E nesta guerra feroz, o fim mais inesperado, a chuva vencendo o sol, e o reinado sertanejo ao trabalhador retornado, pra plantar e pra colher, pra ser rei abençoado.


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Lá no meu sertão...



Curralinho, Poço Redondo/SE




Festa do coração (Poesia)



Festa do coração


Estou amando
agora sou jardim
depois de triste outono
e tristeza sem fim

apaixonado
agora voo em canção
depois da mudez tristonha
desse meu coração

que a alegria
floresça sempre em nós
e que o vento leve
a solidão dos dias sós.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - sumiu do sertão, sumiu...



*Rangel Alves da Costa


Muita coisa boa sumiu do sertão, sumiu... Muita fruta boa sumiu do sertão, sumiu... Retratista sumiu, cordel pendurado em barbante quase não existe mais. Sorvete de gelo raspado sumiu, vendedor de óleo de peixe boi quase não existe mais. Araticum madurinho não existe mais, também araçá desapareceu. Sumiu carro-de-bois na estrada, sumiu jegue servindo de montaria. Agora só se usa motocicleta e tudo sumiu. Rolinha fogo-pagô, onça pintada e veado, seriema e nambu, porco-do-mato sumiu. De vez em quando a chuva some, desaparece, parece não existir mais. Sumiu vestido de renda, sumiu a menina faceira. Sumiu a inocência matuta, sumiu o beijo roubado em janela. Sumiu o seresteiro da lua, sumiu o poeta apaixonado, o romantismo sumiu. Sumiu o café torrado em pilão, sumiu o cuscuz de milho ralado. Sumiu o sonho da felicidade, até a felicidade sumiu. Não há mais paz nem sossego, do sertão tudo sumiu.


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terça-feira, 28 de maio de 2019

HORAS SERTANEJAS (E A VIDA ASSIM ACONTECE...)



*Rangel Alves da Costa


A noite sertaneja sempre chega mais cedo. O anoitecer desponta quase à mesma altura do por do sol, eis que não há um limite normal de passagem de dia: quase sem boca da noite, depois da tarde a noite já chega.
Igualmente acontece ao alvorecer. No sertão mais autêntico, aquele dos afastados da cidade, a manhã é coisa quase inexistente, pois o sertanejo levanta ainda na escuridão e já se encaminha para os ofícios do dia, sem se alongar nos pormenores daquilo que se tem como manhã.
Quatro da manhã e já há cheiro de café no fogo, já há chiado de tripa torrando, já há aroma de cuscuz subindo aos ares. Quando não assim, por falta das iguarias, também nessa hora do dia a farinha com pedaço de quase coisa vai sendo saborosamente engolida, sempre com uma canequinha de café.
Depois dos ofícios do dia, quando o homem da terra retorna de sua labuta debaixo do sol ou da chuva, a comida sempre se repete, porém acaso o que restou do meio-dia não dê para o prato. Pão é coisa mais da cidade. O pão comprado em dia de feira, em sacola grande, geralmente não passa do terceiro dia.
Pão guardado dentro da lata de farinha, de modo a não envelhecer e mofar cedo demais. A meninada gosta que só. Menino nunca tem luxo na hora da fome. Gosta de pão seco, pão com manteiga e café, pão com caldo de carne, pão com uma nesguinha de queijo dentro. Doloroso e triste é quando não há nada para oferecer aos pequeninos na hora do “de comer”.
E assim acontece muito mais do que imagina a população citadina. Já passado das seis da noite e em muito lugar há muita barriga roncando, há muito bucho vazio, há muito menino chorando, há muita criança se derramando em lágrimas. E pais aflitos, desesperados, sem saber o que fazer. Cata ali, cata acolá, vira e revira panelas e latas e nada.
Quem dera dois ovos para dividir com quatro filhos. Quem dera uma farinha de milho. Mas às vezes não há nada mesmo. Que situação, meu Deus! Como pais reagem perante a fome de filhos? Como pais enfrentam a voz pedindo comida, a lágrima descendo faminta, a agonia naqueles que só pensam em ter um pedaço de pão? Só Deus sabe como sofrem esses pais.
E só Deus o milagre que pode acontecer diante de tal situação, pois é Ele, Deus, que sempre opera o milagre nas horas mais necessitadas da vida. O que faz, então? O milagre acontece numa comida inventada no inexistente, o milagre acontece num vizinho que bate à porta, o milagre acontece num pai que humildemente vai bater numa porta em busca de um auxílio.
Mas sempre acontece um milagre, ainda que dia após dia o milagre da sobrevivência vá se tornando cada vez mais difícil de ser conseguido. Então olhem para o relógio e vejam a hora. Quase sete da noite desta terça-feira de maio. No Alto de Tindinha, no Alto de João Paulo, nas Queimadas, nas Areias, nos Assentamentos, nos rincões próximos e mais distantes, o cheiro de comida já passeou pelos lares.
A partir de agora, acaso o sono não chegue tão cedo, algumas cadeiras estão sendo colocadas nas varandas, nas frentes das casas, pelas malhadas. A lua grande está bonita, poética, bem sertaneja. Mas - e disso tenham certeza - muita gente ainda não comeu, nada comeu. E simplesmente por falta de alimento. Só resta esperar o milagre sagrado. Ele vai acontecer.
Mas dói demais. Dói demais saber que muita fome terá que se contentar com um nadinha de pão ou um punhadinho de farinha seca com pedaço de qualquer coisa.


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Lá no meu sertão...


Sertão!



Doce (Poesia)



Doce


Um poema doce
tão cheio de açúcar
e por cima mel
e calda de frutas
pro colibri chegar
e sua boca beijar

seu néctar de flor
tem doce sabor
a borboleta quer
e o colibri deseja
mas meu beija-flor
quer beijar com amor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - não saiu nos jornais



*Rangel Alves da Costa


Ele se sentiu traído - e foi mesmo -, jogou as roupas da mulher no lixo, saiu para o botequim, bebeu todas, chorou e chorou, e depois se jogou do alto da ponte. Foi salvo pela embarcação do amante de sua esposa, que ia passando. Inconformado por não ter morrido, então ele resolveu flagrar a mulher com o amante e matar os dois, e depois apontar a mesma arma em direção à sua cabeça. Entrou escondido em casa, foi direto ao quarto e se escondeu debaixo da cama. Deitado silenciosamente, com a arma à mão, viu-se sufocado e sem poder agir quando a cama começou a sacolejar. Gritou por socorro e foi salvo da morte pela mulher e o amante. Pulando a janela envergonhado, enganchou-se num pé de roseira e caiu estatelado. Com falta de ar, pensando que ia morrer, foi salvo por um balde de água jogado na cara pelo amante da esposa. Refeito, então resolveu que mataria os dois no mesmo instante. Pulou de volta a janela, procurou os dois por todo lugar, mas nem sombra. Haviam sumido de braços dados. E ele morreu de solidão.


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segunda-feira, 27 de maio de 2019

O SOFRIMENTO DO SERTANEJO EM MEIO A CANGACEIROS E VOLANTES



*Rangel Alves da Costa


Dizem que foi assim, nas palavras de quem disse que foi assim: “Os da volante chegaro já deitando pra dentro a porta do barraco de barro e cipó. Na casinha só tava a muié e um meninote. O marido tava não. Entonce a volante gritou pru Jeremia, preguntando onde ele tava, quereno saber a todo custo onde o coiteiro tava. A muié, coitada, tremendo de medo perante aquele povo raivoso e armado inté os dente, mal abriu a boca pra dizer que não sabia. Entonce arrastaro ela pra malhada e fizero dizer onde Jeremia tava na ponta no punhal. Ouvino o grito da muié, o marido apareceu do meio do mato e foi logo seguro pela volante. ‘Diga adonde o bando de Lampião tá ou morre agorinha mermo’. Assim preguntaro já segurano o homi pro todo lugar. Jeremia era valente, decidido. Se sabia num disse. Foi colocado de cabeça pra baixo num pé de pau e apanhou até amolecer. Deixaro ele como morto. Mai morreu não. Era assim como a volante tratava aquele que achava que era coiteiro e que sabia onde tava a cangaceirama”.
Já outro contou uma história parecida, mas envolvendo outro tipo de perseguidor. “Cangaceiro num era flor que se cheirasse não. Tinha cangaceiro que era mais marvado que bicho ruim, principarmente se tivesse desgarrado de Lampião. Quano num tava sob as vista de Lampião entonce se achava o dono do mundo e se danava a fazer estripulia de cortar coração. O pior é que os inocente pagava pelos que eles achava que tinha arguma culpa. Munta gente já morreu apenas pro tá no lugar errado e na hora errada. Dizem que o mudinho não respondeu o que preguntaro entonce sangraro ele vivim. Num é coisa que se faça com homi não, mai todo mundo sabe que o finado Toinho Aroeira foi feito de jegue de quatro pé, adespois amontaro nele e ferroaro pro todo lado. No Quelemente, e isso corre de boca em boca, adeitaro a cabeça do pobe vaqueiro na portada e deram uma punhalada só. Gente correno no meio do mato com medo daquelas fera e quano era arçada era o sofrimento certo. Um maluquinho se danou a sorrir na frente do cangaceiro e acabaro cortano as parte de baixo do bichim. Certa feita, puxaro a corrente de ouro, cuma a bicha era dura, entonce num tivero nem o trabaio de pedir a dona que tirasse. Arrancaro foi o pescoço da pobrezinha. Isso num é coisa que se faça não, mai era assim que se fazia”.
Relatos assim ainda são costumeiros e todos dando conta do sofrimento do sertanejo em meio a cangaceiros e volantes. Um tempo realmente difícil demais de viver, vez que as forças perseguidoras do cangaço, ou volantes como são mais conhecidas, provocavam mais atrocidades que a cangaceirama quando chegava ou passava. Na concepção de que todo o sertanejo era coiteiro ou mancomunado com os cangaceiros, então qualquer e todo mundo se transformava em vítima da violência desenfreada.
Mesmo na assertiva de ser um forte, de ser valente e destemido, o sertanejo padeceu todas as dores e sofrimentos do mundo naqueles idos do cangaço. Naqueles de sustos a cada passo e medo a cada instante, não havia sertanejo que não se sentisse refém da guerra sangrenta travada. Nas mãos de cangaceiros e volantes, perante os bandoleiros das caatingas e das forças policiais, aquela raça humana postou-se ajoelhada e submetida aos mais cruéis rigores da violência e da brutalidade.
Não é da normalidade da vida que o ser humano tenha sua face marcada no ferro em brasa. Não é comum que um ser humano seja forçado a deitar com a cabeça num batente de porta e depois ter sua cabeça decepada a punhal. Não é costumeiro que o sujeito seja mandado caminhar e em seguida, ao virar as costas, receber um balaço mortal. Mas assim aconteceu. Não é aceitável um homem já lanhado pelo trabalho duro na terra, pelas desditas da vida e sofrimentos sem fim, ainda tenha que ficar de quatro pés para ser montado, chicoteado e humilhado.
Não é atitude comum que um homem já envelhecido seja amarrado e pendurado de cabeça pra baixo e depois disso ainda flagelado de ponta de punhal. Não é habitual nem aceitável que a pessoa seja sangrada viva apenas pelo fato de não saber dar uma informação. Não pode ser tido como normal que mocinhas sejam violadas perante os pais e os pais perderem suas vidas perante os filhos. Mas assim aconteceu.
O sertão inteiro padeceu sofrimentos indescritíveis pelas mãos de volantes e cangaceiros, e muito mais pelas atrocidades cometidas por aqueles que deveriam, além de caçar a cangaceirama, também proteger o sertanejo das ameaças e das investidas sangrentas. Mas não. Ao invés de proteger, o que a volante fazia era espalhar o terror por todo lugar. Segundo seus algozes, todo sertanejo era coiteiro, era amigo do cangaço e por isso mesmo tinha de sofrer. E maltratou, e judiou, e matou.
Assim a desvalia dessa vida empobrecida e sem valor algum perante as violências que assolaram aqueles sertões de cangaceiros e volantes.


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Lá no meu sertão...


Memorial Alcino Alves Costa, Poço Redondo, Sergipe




Coisa chamada saudade (Poesia)



Coisa chamada saudade


Rasguei bilhetes e fotografias
apaguei os passos da estrada
desfiz os laços ainda presos
mas não consigo me desfazer
dessa coisa que sempre invade
e que se chama saudade

essa coisa chamada saudade
vem como ventania e vendaval
vem trazendo a boca e os beijos
vem trazendo os braços e abraços
num turbilhão de final de tarde
para me fazer chorar de saudade.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - repensar a morte



*Rangel Alves da Costa


A morte é vista e sentida de forma diferenciada perante as culturas. Em algumas, apenas um rito de passagem. E, portanto, um acontecimento que não provoca além do vazio pela ausência, sem grandes manifestações de luto ou de dor pela perda. Em outras, uma dor transformada em alegoria. Neste sentido, a morte é festejada, cantada, dançada. Mas não como alegria ou felicidade pela partida, mas como uma comemoração fúnebre em que as dádivas do morto são verdadeiramente festejadas. Noutras, apenas um ato esperado e que, por isso mesmo, aceito sem maiores angústias. Também as comunidades tribais e nativas encaram a morte de modo muito mais ritualístico do que através de exasperações pessoais. Na nossa cultural, por mais que se compreenda a sua inevitabilidade e a incerteza de sua chegada, a sua ocorrência sempre é acompanhada de terrível sofrimento. Lágrimas, lutos, sofrimentos eternos. Contudo, pessoalmente creio que a morte deveria ser repensada. E repensada de modo a não causar tanto sofrimento, tanta agonia, tanta melancolia. Mas difícil de assim acontecer. Ninguém aceita a perda, a separação, o adeus. O que talvez minimizasse mais o sofrimento é que a saudade não perdurasse tanto. Contudo, também muito difícil, eis que amores existem que são verdadeiramente eternos.


Escritor
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domingo, 26 de maio de 2019

PALAVRAS VÃS



*Rangel Alves da Costa


Não. Assim não. Não é por que a vida é curta, passageira e inesperada, cheia de surpresas aterradoras, que devemos vivê-la pelo lado da ilusão, da falsa felicidade, do que é forjado aos sentimentos.
Não é por que ninguém sabe se amanhã estará bem que o hoje deve ser transformado em festim, em exagerada curtição, em entrega ao álcool e outras ilusórias viagens. Não é por que o amanhã é uma caixinha de surpresas que todos os experimentos do mundo devem ser chamados agora.
Não é por que a morte poderá chegar a qualquer momento que a todo instante há de se viver pela pecaminosidade, depravação e desonra pessoal. Não é por que a juventude chama à festa, à bebida, aos exageros, que a pessoa deva ultrapassar seus limites. Não é por que se deseja mostrar o ímpeto esfuziante da idade que se tenha de mostrar a nudez moral.
Não é por que alguém sempre faz assim que se tenha de seguir o rebanho. O mundo pode acabar amanhã para uns, mas o nome permanece segundo foi semeado. E se o mundo não acabar amanhã, como o mal semeado agora vai sendo colhido? Quanto vale no futuro uma desonra já semeada na flor da idade? Qual o respeito de manhã numa pessoa que não se respeita agora? Será que mais tarde, acaso constitua família e tenha filhos, terá coragem de dizer o que de mais impuro e pecaminoso fez no passado?
Certamente não dirá, mas o passado é livro que continua sendo aberto, e quanto mais erros houver mais suas folhas serão avistadas e relembradas. Que bebam, que curtam, que vivam a idade, que cantem, que dancem, que namorem, que fiquem. Mas lembrem de que nada termina agora, nada é somente para o hoje. O amanhã é tudo.
Para o bem ou para o mal, o amanhã será sol que sempre vai nascer. E que tal neste amanhã não temer ou se envergonhar de olhar para o passado? Não há pretensão alguma que o jovem se torne casto, fechado em redoma ou que deixe passar sua idade sem buscar as alegrias da vida. Nada disso.
O mundo moderno acabou destruindo a maioria dos hábitos de vida, mas no passado também havia juventude, mocidade, idades viva flor. E a maioria das pessoas sobreviveu sem que tivesse que se entregar aos mundanismos e às depravações. Talvez seja somente uma questão de consciência, de escolha própria. Mas com tantas alternativas, que tal optar por aquelas que permitam o encontro com as alegrias que não sejam forjadas pelos vícios, fugas ou exageros?
Mas nem tudo está perdido, eis a verdade. Ao invés de esquinas e baladas, muitos jovens optam pela religião, pela igreja. Ao invés de estarem requebrando ao som de paredões, alguns jovens preferem a prática de ações sociais, convivendo e dialogando com parcela sofrida da população. Ao invés de mesas de barzinhos ou farras de finais de semana (ou todo dia), alguns jovens preferem seus quartos, suas calçadas, tendo ao lado um afazer comum ou um bom livro.
Por isso que nem tudo está perdido. E o que acostumou na obscuridade ou no fazer perverso a si mesmo, sempre poderá retornar ao lado melhor da vida: realmente viver, sem mentiras nem ilusões!


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Lá no meu sertão...


Curralinho, Poço Redondo/SE





Amor de poeta (Poesia)



Amor de poeta


Eu sou o seu verso
e a sua poesia
se assim quiser

eu sou o poema
e o livro de sonetos
se assim quiser

eu sou a palavra
e a declamação
se assim quiser

e não terei versos
nem serei poeta
sem o teu amor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - vão pra casa!



*Rangel Alves da Costa


Pra que sair às ruas em defesa de partido, de político, de ideologia? Vão pra casa! Adianta bater panela, erguer bandeira, gritar, vestir camisa, ecoar palavras de ordem, fazer soma na multidão? Não adianta. Os exemplos brasileiros já demonstraram que pouco ou quase nenhum efeito faz o enxame de pessoas nas ruas quando se trata de política. O povo, sempre na ilusão, passa a ser usado apenas como massa de manobra e sem qualquer consequência em seu favor. Depois do povo, depois das ruas, depois das multidões, o que os políticos fazem? Dão banana, mandam que o povo vá procurar o que fazer, não dá ouvidos a nada reclamado pela população. Depois do povo nas ruas, esse mesmo povo passa a valer absolutamente nada. Nenhuma decisão política considera a luta do povo. Nada do que decidem em gabinetes é proveito do povo. É este mesmo povo que vai às ruas que mais adiante pagará mais caro pela gasolina, pelo gás de cozinha, pelo pão, pelo remédio, pela feira. Então, ir fazer o que nas ruas? Vão pra casa!


Escritor
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sábado, 25 de maio de 2019

DESDE QUE MUNDO É MUNDO



*Rangel Alves da Costa


Desde que mundo é mundo... E tudo acontece do mesmo jeito. Sempre foi assim. Não tem jeito de mudar. O que se via no passado, eis que agora se repente com a mesma feição. E assim por que desde que mundo é mundo há um sempre que nunca se modifica. Em muitas situações, com plena razão tais assertivas. Não há jeito de mudar, quando se imagina que possa acontecer diferente, logo se repente o acontecido e desde muito o mesmo acontecido.
Ora, alguém já viu onça virar tamanduá e cabrito se transformar em jegue? Lógico que não. Desde que mundo é mundo que o bicho nasce de uma espécie e na mesma espécie continua. O que nasce para ser aquilo, não há jeito de ser diferente. O pau que nasce torto vai se acertar depois de crescido? Dizem que não, eis que desde que o mundo é mundo aquilo que nasce torto há de continuar na curvatura.
E por que pretender modificar agora? Nem toda planta medicinal serve para todo tipo de enfermidade. Desde que mundo é mundo que a serventia do mastruço é pra desinflamação e do boldo é para a depuração do organismo. Não adianta infusão de limão com alho para baixar a febre, se a serventia da mistura é para a cura da gripe e do resfriado. Desde que mundo é mundo se sabe que a camomila é a planta certa para casos febris.
E por que muita coisa não se modifica desde que mundo é mundo, então muita coisa não deveria espantar quando acontece. Desde que mundo é mundo que gato mia no telhado, geme em cima da cumeeira, solta gemidos agourentos pelos escondidos. Há de se esperar seu silêncio noturno? E quando um bicho de estimação ataca? Simplesmente pelo fato de que desde sempre que a normalidade no bicho é atacar e não a passividade. Em tal contexto, seria de se esperar que uma oposição política aplaudisse as ações do governo que lhe é oposto?
Desde sempre que ser oposto é estar do lado contrário, em oposição a determinada situação. Na política, o eleito se torna situação e o derrotado passa a ser oposição. Mais adiante, tudo pode se inverter, pois acontece assim desde que mundo é mundo. O que seria realmente de se estranhar é que os polos se invertessem e a situação virasse oposição de si mesma e a oposição, sem nada a opor, apenas silenciasse.
Estranha-se porque se quer, mas desde que mundo é mundo a falsidade vem de cortesia. Difícil é encontrar amizade de verdade, com pessoas de caráter e honestidade, mas não seria de se estranhar que aquele acreditado de repente dê um coice por trás ou uma mordida pelas costas. Nada do outro mundo se uma mão afaga enquanto a outra procura a arma para ferir. Nenhuma aberração da vida se a pessoa agraciada agora no instante seguinte já esteja falando mal daquele que lhe ajudou. Ora, desde que mundo é mundo que acontece assim.
Esperar do outro eterno respeito é querer demais. Raramente acontece que a honra não seja desonrada por vil moeda. O normal é que a quebra de confiança se dê por motivo fútil, por safadeza mesmo. Ademais, ninguém é tão ingênua assim de acreditar que as palavras e as promessas na igreja, perante o padre e na hora do casamento, tenham eterna validade. As traições estão na moda e desde que mundo é mundo que os adultérios existem, que as puladas de muro existem, que a falta de vergonha faça parte da vida de muitos.
Estranhar por que agora? Desde que mundo é assim. Incorre em pecado mortal aquele que deseje a eterna pureza no outro. Quem faz errado consigo mesmo não haverá de querer que o outro seja exatamente aquilo que não é nem nunca será.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Quatro Faces de um Sertão!



Sem duvidar (Poesia)



Sem duvidar


Se duvidar
desejo não há
querer não há
então não há
amor

queira acreditar
e confessar
e revelar
sem duvidar
no amor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – canção pra varal de quintal



*Rangel Alves da Costa


Fiz uma canção, uma canção pra varal de quintal. Estendi o arame em pedestal e deixei tão belo o meu varal. No meu quintal tem uma feição sentimental, coisas antigas que na memória faz um mural. No meio dele, como a altura fosse sinal, que no arame fosse estendido o suor lavado em pedras de sal. Um banco branco, uma colcha de casal. Um lenço molhado de lágrima triste e universal. Um pano antigo que para o passado faz um portal, que dói por dentro ao vê-lo assim proposital, deixando ali mesmo que a saudade seja letal. E a roupa estendida, em ventania, em vendaval, e o tempo passando, em tempestade, em vendaval. E eu tão triste, em dia assim como um Natal, de solidão e lágrimas enxutas no avental. Mas tudo passa, a roupa enxuga pelo varal, e eu me levanto e recolha a roupa e deixo minha dor pelo quintal.


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sexta-feira, 24 de maio de 2019

SERMÃO DO SERTÃO



*Rangel Alves da Costa


Não, não é o Sermão da Montanha das páginas bíblicas nem o grito sagrado do evangelho pela voz Senhor. Não é a voz do alto ecoando sobre o mundo nem a palavra da sabedoria ensinando a lição da vida e do viver. É apenas o Sermão do Homem da Terra, o Sermão da Boa-Aventurança Matuta, o Sermão do Sertão.
Uma voz ecoada em meio às catingueiras e carrascais, em cima da pedra grande, na beirada do riacho seco ou do tanque já barrenta pela falta d’água. Uma voz surgida na estrada de chão, na vereda, na malhada da casa empobrecida, perante as porteiras e os currais. Uma voz que ecoa o próprio povo sertanejo.
Bem-aventurados os pobres sertanejos, porque deles é esse sertão injustiçado, mas glorificado pelo Senhor. Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados, terão chuva em abundância, colheita com toda fartura, comida sobre a mesa e alegria no coração.
Bem-aventurados os mansos, os pacientes, os que não se desesperam diante do sofrimento, porque herdarão a terra, e uma terra molhada, com grão semeado e a força de cada um para remover a terra até dela sair o broto, o fruto e o significado da vida do sertão e do sertanejo.
Bem-aventurados os que têm fome e sede não só de Justiça, mas também de clemência das autoridades, do olhar piedoso dos governantes, de compreensão de quem desconhece essa vida e de quem vê tudo isso e se faz de fingido. Porque precisamos também ser fartos dessas coisas que o mundo pode oferecer.
Bem-aventurados os misericordiosos, porque encontrarão a Misericórdia, pois mesmo na terra seca semeamos a bondade, no chão ressecado da lagoa semeamos a esperança, no irmão desconhecido semeamos a amizade, e nos nosso corpo enfraquecido semeamos a prece e a oração, com a certeza de que Deus não nos faltará.
Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a face e Deus, e assim é o coração sertanejo, na sua vida para o trabalho, na sua lide sem mágoa, na sua vontade de sempre doar, ajudar o irmão. E se não faz aquilo que não pode é porque também está semeando para um dia fazer muito mais.
Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus. E é por isso que o manto da paz se estende sertão adentro, lavando com as águas do tempo o sangue inocente que escorre e fazendo desse sal da vida um chamando para que vivamos em paz e comunhão.
Bem-aventurados os que sofrem perseguição dos poderosos, das autoridades, dos governantes, daqueles que deveriam ser a mão estendida e se comportam como algozes, pois o pequeno Davi matuto derruba com o sopro da força divina todo aquele que nos olha com o olhar de Golias.
Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem, perseguirem e mentirem, dizendo todo mal contra vós por causa do Senhor. Não, não nos farão trocar nossa fé pelas promessas mundanas nem nosso Deus por ídolos sem altares, pois em cada barraco de taipa há uma imensa igreja e dentro dela um céu também de barro e com anjos nus, e ainda assim sorridentes e felizes.
Então exultai e alegrai-vos irmãos sertanejos, porque é grande a glória que descerá dos céus, porque de sede e de fome também sofreram os profetas que vieram antes de nós.
E sobre a terra sertaneja ecoará para o todo o sempre. Amém!


Escritor
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Lá no meu sertão...


Renda de Bilros, Poço Redondo, Sergipe



Pelo beijo teu (Poesia)



Pelo beijo teu


Quero um beijo teu
não precisa ser agora
esse beijo teu
eu sei esperar
pelo beijo teu

sinto-me beijado
pelo olhar que me deu
e imaginando
o que ainda não é meu
mas um dia será
igual ao beijo teu

e quando eu te beijar
já terei o céu e a terra
terei todo o mar
e a felicidade
além do beijar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – moça triste



*Rangel Alves da Costa


A moça está triste. Dá pra perceber que a mocinha está muito triste. Tão jovem, tão bela, tão cheia de vida, e ainda assim muito triste. Não é normal nessa idade que seu umbral de janela se transforme em retrato de melancolia, de angústia, de aflição. Certamente que tem seus motivos para se lançar à janela como se lá fora e mais adiante não houvesse nada que lhe trouxesse alegria ou um laivo de contentamento. A idade traz essas coisas sim, a mocidade traz dúvidas, aflições e entristecimentos. Contudo, não era para ser assim com a bela mocinha. Certamente que chora, talvez tenha sofrimentos terríveis. Mas por quê? Solidão, desamor, saudade, doença, ou apenas tristeza da idade? Talvez somente a alegria no coração possa alegrar a menina. Talvez um moço bonito passe adiante e lhe desperte a sensação de viver. Talvez um cavaleiro das nuvens desça com seu alazão em brancura para tornar um sonho em realidade. Mas talvez tenha outros motivos. Não sei, não os conheço. Só sei que ela não deixa de ser bela mesmo assim. E eu enxugaria sua lágrima, diria uma palavra boa, declamaria um verso. Tudo para alegria de seu coração. E principalmente do meu.


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quarta-feira, 22 de maio de 2019

NOS CONFINS DOS SERTÕES



*Rangel Alves da Costa


Muita gente sequer imagina existir. Tão distante é esse mundo que muita gente jamais ouviu falar ou já esteve lá. Mas existe. Uma distância nas distâncias que provoca encontros inesperados, pois quase tudo desconhecido ao urbano ou citadino. Ninhos nas cumeeiras, candeeiros crepitando ao anoitecer, um vaga-lume passando, um grilo escondido no oco do pau. Um mundo assim existe lá nos confins, nos sertanejos confins. Quase como um realismo fantástico, mas uma verdade vivenciada na simplicidade e humildade de um povo. É assim lá nos confins dos sertões.
Confins são lonjuras, são fins de mundo, são distâncias, são escondidos de além. Confins são lugares extremos, são fronteiras de existência, são localidades distantes e desconhecidas ou pouco conhecidas. Confins são terras, lugares ou povoações, pouco visitadas e, por isso mesmo, permanecendo com feições eternizadas no antigo e no antigamente. Os confins dos sertões seriam exatamente aqueles pouco conhecidos sertões.
Nos confins dos sertões, o tempo parece vagarosamente passar, ou simplesmente nunca passa. O novo é tão antigo que nada parece mudar. Os costumes passados de geração a geração continuam como se naquela primeira gestação. O mundo lá fora pouco importa aos confins, eis que tudo vive e se basta no seu próprio interior. As notícias que chegam dizem apenas do próprio povo, dali de perto ou de mais adiante. O artista é o homem da terra, a novela é a página da vida, o novo é o que está feito naquele momento, apenas.
A mesma poeira parece despontar todos os dias da mesma curva da estrada. As folhas secas que esvoaçam certamente que são as mesmas folhas secas de outros outonos. Nada muda, nada parece mudar. A ventania possui um sopro conhecido demais. O vento, e sempre o mesmo vento, só falta mesmo dar bom dia e boa tarde aos moradores. Conhece as janelas e portas, conhece ruas e estradas, sempre se nega a soprar demais durante a batida de feijão ou do peneiramento do café batido em pilão.
Antes da chegada, nenhum ronco de veículo. Nunca um carro apontou na última curva da estrada e antes de chegar perante a igrejinha de barro batido. Motocicleta por ali seria vista como uma estranheza do mundo. Quanto o poeirão levanta na estrada, logo já sabem da chegada ou da partida de animais. Para ir de canto a outro somente no lombo do cavalo, do jegue ou do burro. Também há carro-de-boi e pé afoito para seguir caminho. Um povo que nunca cansa. Desde o madrugar ainda escurecido que os ofícios simples começam a ser exercidos, sempre envolvendo a lida com a terra.
Pelo ar, os cheiros próprios dos confins tomam conta de tudo e se espalham pelos arredores e mais adiante. Cheiro de cuscuz ralado no fogão de lenha, cheiro de carne assada por cima das brasas, cheiro de ovos passados na banha de porco, cheiro de café torrado e batido em pilão borbulhando na chaleira. Que cheiro estranho e tão corriqueiro do rapé passando de nariz a nariz, do fumo no cigarro de palha, da casca de pau derramada no copo e virada num gole só. Cheiro de barrufo de terra na chegada da chuva. Cheiro de estrume de curral e do couro da sela e do gibão.
Vida mansa, leve, andante sem pressa. Um tamborete na calçada, um tronco de pau na malhada, uma rede espalhada na sala pro menino deitar. Amigos proseiam debaixo dum pé de pau enquanto uma mocinha vai passando com feixe de lenha na cabeça. Senhoras levam sacos de pano para lavar no riachinho e amigas conversam enquanto varrem as calçadas de areia. Não há praça, não há banco de praça, não há calçamento algum. Tudo um descampado só, entremeado de moradias rústicas, rotas, na singeleza do mundo. Casebres de barro e cipó, telhados de palhas, quintais que se confundem com a mataria.
Seu Totonho diz a Bastião: “Pois é cumpade, ansim mermo a vida. Mió mermo é que o mundo de lá fora num venha aqui pa dento. Num sei nem o que acuntece lá fora e nem quero saber. Como do meu feijão, do meu mio, da minha batata, da minha melancia. Munta caça ainda tem pur aqui, preá do bom e mocó tomem. Deixe os bicho de cria se criar, a num ser que seja um bodinho, uma cabra, um porco. Entonce tem de ser a mistura do feijão com farinha. Adespois nóis num tem essa peorcupação das cidade grande. Nóis frome inté de porta aberta, na fresca boa e sem ninguém atrapaiá o cochilo. Riqueza é essa, a da paz e do sossego. Nunca vi ninguém que arribou daqui pa despois vortá e dizer que lá fora é mió. Se aqui é mió, entonce que a gente viva aqui. Num é mermo cumpade?”.
Doença pouca, remédio muito. E tudo do quintal mesmo, do mato, da sabedoria matuta. Fartura de boldo, hortelã, mastruz e muito mais. Também as velhas rezadeiras e benzedeiras que vão afastando os malefícios do corpo e limpando os espíritos para as lidas do dia a dia. Bastam três raminhos de mato e muita coisa ruim é afastada do corpo. As mãos velhas e hábeis vão passando os ramos pela cabeça e corpo, sussurrando velhas orações e rezas fortes, e depois basta jogar fora o mato já totalmente seco. Os ramos secam e esturricam por que chamaram para si as mazelas existentes na pessoa, daí o definhamento repassado.
Assim a vivência nos confins dos sertões. E nada de ficção. Ainda existem muitas comunidades e povoações vivendo assim, como se traçando seus destinos e sinas.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Linda Curralinho, em Poço Redondo, sertão sergipano





Confissões (Poesia)



Confissões


Confesse
revele que me ama
não adianta dizer não

tudo pulsa e tudo diz
no coração, coração...

confesso
declaro que te amo
não adianta dizer não

tudo grita e tudo diz
da paixão, da paixão...

o silêncio em nós
nessa indecisão assim atroz
esconderá de vez a nossa voz

e ao invés de um em dois
viveremos em dois a sós.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - nós e eles



*Rangel Alves da Costa


Fico imaginando e entristecido reconheço a desvalia. Eu aqui reclamando disso e daquilo, e ali apenas o silêncio da dor e da agonia. Eu aqui achando que poderia ter muito mais, e ali o nada ter e sequer sem esperança de acontecer. E tem gente que se nega a comer qualquer coisa. Tem de ser de cardápio, de menu, de nome estrangeiro. E tem gente que reclama da comida fria, da água pouco gelada, do refrigerante sem gás, da torta que já está acabando. E tem gente que enfurece com a roupa envelhecida, com a roupa sem botão, com a roupa que deixou de cair bem sobre o corpo. Tem muita gente assim. E lá, lá dentro do barraco, do casebre, daquilo que se tem por moradia? Alguém de fora já pensou no pão que não tem lá dentro? Alguém urbano já pensou na panela vazia, na barriga vazia, nas noites vazias de garfo e colher? Alguém joga fora o resto do almoço. Só janta se for comida nova. E logo naquela noite que não houve prato, não houve pão, não mesa nem sobremesa. E logo naquela noite que só teve lágrimas, que só teve dor, que só teve a silenciosa desilusão.


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terça-feira, 21 de maio de 2019

RELÍQUIAS DE UM SERTÃO



*Rangel Alves da Costa


O sertão já foi muito diferente do que é agora. O sertão já foi sertão num que não existe mais. Tudo passa, tudo se transforma, tudo toma outra feição, e com o sertão não foi diferente. Certamente que existem ainda resquícios daquele passado sertanejo, mas tão raramente encontrados que hoje são vistos como relíquias.
Ninguém imaginaria que os novos tempos ainda resguardassem a inteireza do passado sertanejo. Para uma ideia, casebres de barro hoje em dia são pouco encontrados. Aquelas casinhas de barro, cipó e ripa, somente num canto ou outro são avistadas. Igualmente aquele jeito humilde e singelo de ser de sua população.
Muito já não existe. Ou quando existe se assemelha a objeto de recordação e nostalgia. Pote de barro em cima de trempe, moringa refrescando a água na janela, fogão de lenha cavado no quintal, purrão pra juntar água de chuva, arupemba, ralador de milho para cuscuz, queijo de quintal, manteiga de garrafa também feita em quintal coalhada de leite gordo, panelada de doce de bola, bolo e pão de forno de lenha, pilão pra pisar café e arroz, café fervilhando em chaleira, remédio de planta de canto de quintal.
O menino não brinca mais de ponta de vaca. A menina não brinca mais de boneca de pano. O garotinho não sai mais puxando seu carrinho de madeira. Não há mais boi e cavalo de barro. Não há mais brincadeira de bola de gude nem de cavalo de pau. A meninada não brinca de ciranda de roda em noites de lua grande, cheia, bonita. O vaga-lume já não passeia na escuridão dos arredores. Não há mais candeeiro para ser aceso à boca da noite nem lamparina a gás. O tamborete de madeira também quase não existe mais. O radinho de pilha já não tem a serventia para espantar a solidão como antigamente.
No sertão tudo mudou. O passado agora é relíquia. Daí a necessidade de se preservar os objetos e mobiliários antigos, como as mesas de madeira de lei, os oratórios, as cristaleiras e os guarda-comidas. O mesmo se diga com relação às memórias familiares, os marcos de gerações que não devem ser totalmente perdidas ou apagadas. Os retratos antigos, em preto e branco ou já amarelados, ainda assim se tornam como um importante e fundamental reencontro com as antigas raízes, as gerações passadas e as primeiras.
Para que servem os retratos? Para que servem as velhas e amareladas fotografias? Tudo, menos para o abandono, o esquecimento e o tanto faz de sua existência. Que se tenha em mente um velho retrato. Um retrato de família reunida ou mesmo de pessoas nos seus ofícios antigos. Basta uma ligeira passada no olhar para sentir quanta significação. Num sertão do passado, amigos reunidos em local qualquer.
Pessoas que já partiram e também de viva presença. Numa só moldura, num só instantâneo de vida e para a posteridade, nada menos que um mundo sertanejo de renome e galhardia: Dona Filó em família, Titonho usando calça de boca de sino, Marieta usando um chalé antigo, meninos correndo atrás de bola de meia. Cada um com sua glória e sua história. Cada um de tanta importância no mundo sertanejo. E todos, um dia, sob o solo sagrado de algum sertão.
E por isso mesmo tais retratos se eternizam na parede da memória e da história, envernizado pelo prazer do avistamento e pelas lágrimas da saudade, exposto eternamente perante os olhares que valorizam e reconhecem a pujança daqueles que engradeceram o nome de sua comunidade e do mundo-sertão, que fizeram os seus passos, a cada passo. Beraldo com aquela feição amigueira que lhe era tão peculiar. Coriolano despojado de suas vestes de vaqueiro e de carreiro, parecendo até arrumado demais para uma festança. Chiquinha da Cocada toda cheia de vestido de chita.
Também um retrato de uma rua empoeirada que mais parece uma estrada. Quem diria que hoje a mais importante avenida do lugar. E assim com a calçada de Luzia, que não existe mais e o umbuzeiro na malhada de Tinoquinho. Hoje não existe mais, mas o retrato comprova que sim.


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