SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 30 de junho de 2010

COISAS DA LUA (Crônica)

COISAS DA LUA

Rangel Alves da Costa*


Já está mais que provado, cantado e decantado, que a lua sempre foi alcoviteira, feiticeira, traiçoeira, musa inspiradora, negligente e omissa. Para não dizer muito mais, como, por exemplo, que ela se esconde propositadamente para que os amantes se refugiem melhor por trás dos muros e nas varandas, que ilude corações apaixonados com aquela luz de promessas, que se faz bem bonita e cheia de romantismo para que os corações apaixonados se desesperem e que tem um pacto constante com a noite para que um esconda o que a outra permite fazer.
Não é brincadeira essa lua, e quem quiser que dê vintém por ela. Não tem o que fazer, e só para ver a menina chorar e o rapaz sofrer, se acende todinha e bonita no mesmo lugar onde estão, mesmo numa distância que só se chega em pensamento. A menina fica na janela da cidadezinha sertaneja olhando pra cima e chorando ao ver a lua que está, naquele exato momento, fazendo o rapaz tomar todas com saudade lá adiante da capital. E sobre eles incide os mesmos raios e o mesmo cenário poético. Isso é covardia da lua.
Dentre as muitas artimanhas da lua, uma das coisas que ela mais gosta de fazer é exatamente passar a mão por cima do que está errado, encobrir as safadezas, fazer tudo para que os adúlteros se encontrem e fazer acontecer coisas verdadeiramente do outro mundo. Assim, no instante em que o amante se dirigia ao quintal da mulher casada ela desapareceu entre as nuvens, deixando tudo na escuridão, e só reapareceu quando a porta dos fundos estava sendo fechada. O padre Horácio chega a implorar para que a lua se esconda quando as beatas vão chegando de mansinho pelos fundos da sacristia. E ela atende.
Certa feita ocorreu um episódio que até hoje se comenta lá pelas bandas do sertão. Como é que uma lua cheia, toda bonita, parecendo que estava grávida de tanta luz, brilhando toda faceira no céu estrelado, limpinho, sem nenhuma nuvem, de repente desaparece sem que ninguém ficasse sabendo o que tinha acontecido? Ora, não era tempo de eclipse, o tempo não mudou de uma hora pra outra, tudo estava normal no céu, menos a lua que não estava ali, e por isso mesmo a escuridão de breu começou a tomar conta de tudo.
Apareceu de repente, do mesmo jeitinho que estava antes, somente uma hora depois, contadinho no relógio. E depois desse acontecido, na mesma noite, João das Tarrafas pegou um cabra encangado com sua mulher embaixo da goiabeira; Maria fugiu com o filho de Zé Timotéo; o padre Horácio recebeu a visita da viúva mais recente para consolar nos muros da igreja mesmo. E o pior: pouco tempo depois começaram a aparecer virgem buchuda, rapaz se rebolando e muita dona de casa implorando pra lua se esconder novamente.
É uma verdadeira safada essa lua, que para dar uma de uma de astro exemplar e protegido coloca às suas portas um cavaleiro com seu cavalo e lança e um dragão soltando fogo só para amedrontar. E mais safada ainda pelo que todos ficaram sabendo do que ela, mais uma vez, descaradamente, fez na noite passada. Só que se deu mal, pois dessa vez o feitiço se voltou contra a própria feiticeira.
Eis que a dita foi chegando após o por do sol já toda enfeitada, bonita e cheirosa que só, cheia de raios novos, colares e bijuterias, com um batom bem vermelho na boca e uma bolsa cheia de estrelas. Assim que chegou, esperou que a noite aparecesse completamente e chamou ela num canto para pedir para sair um pouquinho mais cedo, pois tinha um encontro muito especial com alguém também radiante. E a noite aceitou imediatamente em ajudar a comparsa. Então, lá pelas nove horas a lua pegou sua bolsa com as estrelas e saiu, deixando a noite sozinha tomando conta de tudo.
Mas a noite, que também é falsa que só, deixou só o breu onde estava e saiu apagando tudo por onde seguia, até encontrar a lua que voltava chorando com um restinho de brilho. "Mas o que foi bela lua, que estais em prantos?", perguntou a noite. "Nada não, é que só sirvo mesmo para ajudar nos amores dos outros. Imagine que Júpiter, aquele ingrato, quando me viu disse que eu estou velha e cheia demais, e só procure ele novamente quando eu estiver lua nova".




Advogado e poeta
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Por tanto desencanto (Poesia)

Por tanto desencanto


Sim
A andorinha voa
e no voo um verão
o trem apita
e no destino a estação
o barco singra
e no porto a paixão
o homem ama
e no final solidão

Sim
o dia escurece
para noite enluarar
o sol aparece
para a vida iluminar
a tarde chega
para a saudade recordar
a lágrima vem
para o passado lavar
a tristeza do amor
que vive a atiçar

Não
não quero mais versos
não quero palavras nem rimas
não quero nenhuma poesia
não quero mais nada
só queria o amor
e não encontro o amor
a não ser a palavra
que sempre rima com amor...



Rangel Alves da Costa

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 31

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 31

Rangel Alves da Costa*


Mesmo antes de entrar na igreja, lá dentro os anjos dispersos pelo ar se reuniram imediatamente para comentar sobre sua chegada. Era um silencioso bater de asas que iluminava, mesmo em pleno dia, todo o templo cristão, com as vozes dos querubins, serafins e seres espirituais de toda ordem se elevando pelo ambiente e se espalhando pelas distâncias. Aquietaram-se em silêncio, olhando em sua direção, assim que Lucas entrou. Reverenciaram amigavelmente os outros dois anjos que acompanhavam o rapaz, que eram o seu anjo da guarda e o anjo superior que ainda estava cumprindo sua missão especial.
Ajoelhado no centro da igreja e sua solidão de fiéis, orando a oração que o Senhor ensinou, distante do mundo presencial naquele momento, após alguns instantes sentiu uma mão tocar-lhe o ombro. Levantou o olhar ainda contrito e enxergou o Padre Josefo ao seu lado. "Desculpe interromper suas orações, mas sei que bastam suas invocações de fé neste coração grandioso. Como vai Lucas?", se apresentou o amigo.
Lucas levantou com um sorriso nos lábios e fez uma rápida reverência ao religioso, sendo repreendido por este e convidado a se dirigir até à sacristia, onde poderiam conversar mais calmamente e sem interrupções de pessoas que poderiam chegar a qualquer instante.
Padre Josefo sentiu logo no semblante do rapaz que este não estava ali somente para uma visita ao templo e a ele. O próprio Lucas havia dito várias vezes que a sua igreja estava dentro de si, o que significava que os seus problemas religiosos a ele mesmo eram confessados e resolvidos. Achava bonito isso, essa ideia de que a religião e a fé são feitas pelo próprio homem, dentro de si, e não externamente, através da ritualização forjada nas igrejas e catedrais da vida.
Era padre e se sentia até estranho por pensar assim, porém o seu íntimo confirmava que as coisas de fé estão muito além de uma missa ou de um testemunho. A missa é o próprio homem e os seus caminhos diante das dificuldades em busca da proteção e salvação divinas. E o seu testemunho é a sua voz, o seu canto, o seu dizer interno, com os seus gritos de alegria ou de pavor. Mas a verdade é que Lucas estava ali e era preciso ouvi-lo, sem necessariamente dizer que tinha problemas e precisava relatá-los para que soluções pudessem ser encontradas.
- Depois daquele pânico com a chuvarada toda e da rápida visita que fiz, já faz algum tempo que não vou até o barracão. Como vão as coisas por lá Lucas, e como está você? – Perguntou o Padre Josefo, se servindo de um pequeno cálice de vinho, já oferecido ao rapaz e agradecido por este.
- Como dizem as palavras bíblicas, em verdade em verdade vos digo... – E contou tudo, desde os estranhos que chegaram destruindo parte do barracão e deixando avisos, até a ida até a delegacia e à prefeitura, relatando minuciosamente a conversa com o prefeito e a proposta recebida, bem como o encontro com a diretora.
E o Padre Josefo, sem demonstrar reação alguma de surpresa ou temor, foi logo falando:
- Nada disso me surpreende meu caro Lucas, nada disso é algo novo debaixo desse sol. Os ensinamentos bíblicos são claros ao nos revelar que o inimigo não quer ver ninguém construindo nada, erguendo o menor alicerce de felicidade, querendo subir pela vida pelos próprios esforços, e fazendo o bem muito pior. Contudo, o que me é estranho é que começaram a agir cedo demais, sem esperar ao menos se aquele humilde projeto de vocês vingaria. Certamente eles querem se antecipar aos fatos, começando a destruir pela raiz, mas não conseguirão e por diversos fatores...
- E que fatores seriam estes, Padre Josefo – Perguntou Lucas, interrompendo.
- Inúmeros são estes fatores, porém nenhum pode ser nomeado, pois não existem em palavras, mas através das ações imperceptíveis de Deus. O Senhor já está agindo diante disso tudo, já está intercedendo ao seu modo. Não esperemos, porém, respostas imediatas, aqui e agora, pois ele age na conformidade do destino que ele mesmo criou para cada um e para todos. Por isso mesmo, não haveremos de nos espantar se hoje à noite, amanhã ou outro dia, o mesmo inimigo retorne e não se contente derrubar somente uma porta ou outra parede, mas sim todo barracão...
- Seria como diz parte daquele poema de Eduardo Alves da Costa, que é mais ou menos assim: "Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada..." – Disse Lucas.
- É isso mesmo, chama-se "No caminho, com Maiakóvski" e é uma maravilha de poema, devendo ser lido por inteiro e todos os dias. Existem poesias que são como palavras bíblicas, mas a própria Bíblia é um grande poema, épico, lírico. Sim, mas voltando ao assunto. Não nos espantemos também se, após derrubarem o barracão, quiserem amedrontar você. Por isso mesmo devemos estar precavidos contra tudo isso. Mas digo mais uma vez, por mais que façam jamais destruirão o plano maior de Deus para com você, e disso eu tenho certeza. Quantos templos, Lucas, não foram derrubados diante de Cristo para impedir que Deus se expressasse em sua força? Derrubaram os templos, porém nunca derrubaram o homem.


continua....



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terça-feira, 29 de junho de 2010

DONA SINHÁ: RETRATOS, PALAVRAS E ENCONTROS (Crônica)

DONA SINHÁ: RETRATOS, PALAVRAS E ENCONTROS

Rangel Alves da Costa*


Seu cabelo já estava totalmente embranquecido, nuvens bonitas de lã que passeavam quando o vento soprava mais forte. A pele, com as cicatrizes e marcas do tempo, refletia os muitos e muitos anos vividos, num itinerário de alegrias e sofrimentos guardados no baú da memória. O olhar ainda bem vivo, nos olhos já opacos pelas miragens de sempre, era espelho e reflexo de fatos e acontecimentos que dá vontade de chorar só em lembrar.
As pernas ainda se erguiam fraquinhas, mas o andar quase não existia mais, apenas uns pequenos passos ao redor do enorme casarão de sala, varanda e quarto. Tão pequena que era a casa que não cabia nos seus aposentos as muitas lembranças que faziam moradia ali e viviam rondando o ambiente como espíritos bons que não querem partir.
Praticamente dia e noite sentada na varanda, de onde via o mundo e tudo, estradas, horizontes, plantas e bichos adiante, moleques brincando, conhecidos passando, estranhos chegando. Sua neta só chegava ali depois do entardecer, depois da escola e do namorar, para fazer uma coisa e outra, preparar o mingau e o banho, perfumar e dar remédios. Era boa essa menina, que muitas vezes deixava de ver televisão para ficar conversando com sua vó sobre os tempos idos.
A neta podia fazer o quisesse na casa, inventar de comprar novidades e remexer nos panos e lençóis, trocar os móveis de lugar, mas não podia, sob hipótese alguma, dar fim ao mobiliário antigo, fazer sumir as lembrancinhas que enfeitavam a prateleira e estavam espalhadas por cima de tudo e nem trocar de lugar as muitas fotografias antigas, amareladas e tristes colocadas nas paredes da sala e do quarto. Sua família estava ali, seu pai e sua mãe estavam ali, filhos, netos e bisnetos, todos estavam ali, dizia a velha senhora. Já que boa parte havia morrido e muitos estavam distantes, então se contentava em conversar com os seus através das fotografias.
Verdade é que conversava mesmo, de viva voz, falando com os retratos para quem quisesse ouvir, e coitado daquele que dissesse que Dona Sinhá estava broca, variando, falando sozinha ou vendo fantasmas. Recebia um troco na mesma hora: "Se você não respeita os seus, deixe-me viver e prosear com os meus!". E prosseguia no seu diálogo com os velhos retratos: "Sirineu, aí não deve ser tão safado como era aqui, hein cabra veio?", "Judite minha filha, como você está bonita e como estou com saudades", "Joãozinho, por que você se foi tão novo meu filho, deixando sua avó aqui nessa tristeza toda?", "Petinha, que falta você faz", "Maria não esqueça de dizer ao homem que guarde um lugar bem bonito pra mim, que breve estarei por aí...".
E assim, quando não estava na varanda conversando com a vida, com a natureza e os passarinhos, ficava as tardes inteiras conversando com suas fotografias. E tinha dias que escurecia e ela no maior diálogo com seus retratos, com os seus vestígios, com os seus entes queridos. Se fosse somente isso até que sua neta compreendia, vez que também sentia muitas saudades de seus parentes e mais de vez se viu conversando em silêncio com eles. O problema é que de uns tempos pra cá sua avó cismou de ter, dia e noite, um pequeno baú cheios de lembranças sempre ao colo.
Numa noite, quando sua neta perguntou porque não largava mais aquele baú que só tinha cartas antigas e velhas fotografias, Dona Sinhá respondeu: "Estava só olhando e conversando com os retratos na parede, agora posso abrir as portas dessas fotografias aqui e ir encontrar com quem eu quero. Ontem mesmo não suportei a saudade e fui visitar o meu velho Sirineu, abri a porta do retrato e fui lá dar um abraço nele. E ele me deu essa flor aqui, veja que bonita". E mostrou uma linda flor de lírio. A neta quase desmaia. Verdade é que alguém havia dado aquela flor à sua avó, pois ela estava ali toda bonita e cheirosa. "Será, meu Deus?". E não pôde conter as lágrimas.
Dois meses se passaram desde que Dona Sinhá partiu, morreu conversando com alguém e dizendo que já estava indo. E foi. Numa tarde, quando a neta ia passando com a velha cadeira de balanço para colocar na varanda e sentar um pouco, ouviu uma voz vindo de uma fotografia na parede. Olhou e Dona Sinhá parecia sorrindo: "Quando puder converse comigo minha neta querida!".




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Realidade (Poesia)

Realidade


E nem sonhei
nem lembrei
nem chorei
nem entristeci
nem me afligi
nem padeci
nem me aborreci
nem quis sumir
e muito menos morri

Como vê
foi tudo mentira
assim como você
assim como sou
assim como ensinaste
assim como aprendi
assim como somos

E por isso
estamos
brincamos
ficamos
fingimos
amamos
deitamos
gozamos
morremos
e tanto faz.


Rangel Alves da Costa

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 30

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 30

Rangel Alves da Costa*


Ajeitando-se no conforto da cadeira, depois de tomar uma dose de uísque e acender um charuto, o prefeito começou a falar não demonstrando estar preocupado com as palavras pronunciadas por Lucas, buscando até mesmo conduzir o assunto por outro caminho:
- Os tempos andam difíceis rapaz, todos nós sabemos disso. O desemprego está aumentando cada vez mais e quem tinha seu emprego e perdeu parece não estar em bons lençóis, e pelo que me consta você perdeu o emprego que tinha de professor por má conduta. Ao menos foi o que me disseram. Fiz tudo pra não acreditar, mas o secretário de educação disse que você estava incitando os alunos a tocar fogo na escola. Outra versão disse que você estava ensinando os alunos a produzirem bombas caseiras para jogar na diretoria e tocar fogo em tudo...
Lucas ouvia aquilo tudo com a maior vontade do mundo de dar um muro naquela cara safada do prefeito. Fervia por dentro, mas procurava se conter, talvez que tivessem mesmo repassado aquelas informações para o mau caráter, e assim continuou ouvindo até chegar o seu instante de falar. E o prefeito continuou:
- Prefiro não acreditar em nada disso, pois sei que você é um menino muito bom, um rapaz muito útil e que será ainda muito mais útil. Na verdade, você só foi demitido porque a diretora, que é amante do vice-prefeito, exigiu sua cabeça. Mas isso é segredo e não conte a ninguém não, até porque tenho uma proposta irrecusável pra você...
- E qual seria tal proposta, senhor prefeito? – Perguntou Lucas, vermelho feito brasa e quase explodindo de raiva.
- Você vai receber o dobro do que ganhava e sem colocar os pés em escola nenhuma, em sala de aula nenhuma, sem fazer nada, nadica de nada, só em casa no bem bom e recebendo sua bolada todo final do mês. Como eu disse, você é meu amigo e eu trato bem os amigos. Assim, meu amigo, você vai assumir um cargo aqui na prefeitura e o resto deixe por nossa conta. Quer dizer, legalmente você trabalha, vai constar da folha do pagamento, mas no fim das contas tudo é de mentirinha, só um jeitinho de amigo para você ter o seu garantido sem fazer nada. Mas veja bem, tudo isso é legal porque todo mundo faz assim, e pode ver que não tem nenhuma prefeitura nesse mundão afora que não faça desse jeito. Só que isso é para uns poucos sortudos, e você foi um dos escolhidos. Topa?... – E o prefeito estava sorridente, acenando para que trouxessem outra dose de bebida.
- Se eu aceitar, senhor prefeito, será em troca de que? – Indagou Lucas, fazendo o possível para demonstrar que estava calmo.
- Em troca de sua utilidade, é isso. Em troca de sua utilidade, pois como eu havia dito você é um menino muito útil. Agora me pergunte, e útil como? Ora, meu rapaz trabalhando para que o povo que vai frequentar o seu barracão se torne meu eleitor, vote em mim e em meus candidatos. Com a inteligência que você tem e a facilidade nas palavras, basta dizer poucas coisas e o povo vai ficar bestinha por mim, vai achar que sou um político honesto e que por isso mereço continuar mandando politicamente no município. É isso, e não é fácil? Então topa?
Lucas olhou bem no fundo dos olhos do prefeito, levantou da cadeira e disse:
- Vou respeitar a prefeitura enquanto órgão público e por isso vou sair pacificamente, mas quanto a você saiba que não passa de um covarde, de um nojento, de um ladrão. Em síntese, você não vale nada e vai pagar caro, e bem caro por isso, não pelas minhas mãos, mas haverá de encontrar pedras pontiagudas pelo seu infame caminho – E foi saindo imediatamente, ainda ouvindo o prefeito que desesperadamente dizia:
- Eu dobro a oferta, triplico, volte aqui. E é melhor voltar senão quem foi lá derrubar umas coisinhas pode fazer pior...
Lucas saiu da prefeitura com aquelas últimas palavras na cabeça: "E é melhor voltar senão quem foi lá derrubar umas coisinhas pode fazer pior...". Não tinha mais dúvidas: tinha mão de gente grande por trás daquele episódio, e certamente que o prefeito estava envolvido. Ele mesmo, querendo ou não, acabava de confessar.
Caminhando totalmente desnorteado pela rua, sem querer deu de frente com a diretora da escola, que em tom esnobe, falou quase no seu ouvido: "Meus pêsames Lucas pelo que fizeram no seu barracão. É uma pena que nem esteja funcionando direito e pessoas ruins já se preocupam em ir até lá para ameaçar e destruir. Mas isto é abominável. Meus pêsames menino Lucas...". E foi saindo se requebrando.
Mas não pode ser, pensou. Não comentei isso com ninguém e primeiro vem o prefeito e fala sobre o assunto e agora vem essa coisa ruim e relata sobre o fato. Tem muito mais coisa nesse meio que preciso descobrir. E seguiu rumo à igreja com o juízo fervendo e a cabeça em tempo de explodir. Mesmo assim não era sua intenção comentar nada disso com o Padre Josefo.


continua...




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segunda-feira, 28 de junho de 2010

VENTO NORTE VAI PRO SUL (Crônica)

VENTO NORTE VAI PRO SUL

Rangel Alves da Costa*


Dizem que o vento norte, num dia de muita angústia e solidão, resolveu que na tarde do dia seguinte seria o último entardecer que sopraria por ali. Estava muito triste por ser sempre incompreendido, acusado de causar transtornos pelos quais não tinha culpa sozinho, visto como malfeitor e até abusado demais quando soprava e levantava as saias e os vestidos das meninas. Muitas famílias chegavam ao disparate de fechar as portas e janelas quando ele estava por ali passeando.
Por diversas vezes foi destratado quando chegava, ouvindo bem na sua corrente que não passava de sopro de calor e de agonia no corpo das pessoas. Chamavam de calor dos diabos, de insuportável onda de coisa ruim. Ora, mas quem já se viu vento ser chamado de calor?. Se perguntava indignado. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é vento. Procurava somente soprar, procurava fazer seu trabalho, cumprir as ordens superiores advindas de Eolo, que é o deus dos ventos, mas mesmo assim sempre negligenciaram sua importância no ciclo climático e na vida do lugar.
Quantas pessoas, principalmente as mais idosas, não estavam acostumadas com sua presença e até esperavam sentadas nas suas cadeiras de balanço ao entardecer, todas alegres e satisfeitas, misturando o calorzinho soprado com os olhares na vida alheia? Quantas lavadeiras usavam de seus préstimos quando estendiam suas roupas nos varais? Quantos marmanjos preguiçosos diziam que não iam plantar porque o vento soprando quente daquele jeito era sinal de chuva demais caindo na terra? Quantas mocinhas vestiam propositadamente sainhas de dois dedos e iam passear só para sentirem a safadeza do vento levantando tudo? Os molecotes eram todos amigos do vento norte.
Aqueles que faziam suas besteiras, suas armações amorosas e seus negócios feios, e não queriam assumir por medo ou por vergonha, não botavam a culpa em outra pessoa ou coisa, mas sempre no vento norte. Além de mal visto, era culpado por tudo de mais infame que acontecia. Certa feita foi acusado de engravidar Joaninha das Flores, uma solteirona com os seus trinta e tantos anos, que vivia na janela vendendo ramalhetes e esperando homem passar.
Segundo ela, um dia o bonitão do Totonho passou e avisou que uma flor havia caído do lado de fora da janela, e quando ela deu a volta e se abaixou para apanhá-la, e como tinha esquecido que estava desprevenida – sem a roupa de baixo –, o vento veio por trás e não deu outra. Ela só lembra daquela coisa quente subindo por suas partes, e pronto. Diz que desmaiou. Meses depois nasceu um menino que, não se sabe porque, mas às escondidas chamam de Totoinho Ventania.
Por essas e outras, era acusado de safado, de insuportável calor, de causar todos os tipos de transtornos na vidas pessoas. Nessas condições, era melhor ir embora. Ao menos ia ver se conseguia ser útil soprando algum moinho pelas estradas da vida. Isso se conseguisse, pois passaram até mesmo a dizer que vento norte não move moinho. Que absurdo!
Lembra com saudade dos tempos em que teve um romance meio maluco com a ventania. Foi tanta paixão que quase enlouquece. Ao entardecer, quando o sol já estava arrumando a mochila, ele ficava soprando em ziguezague, indo pra cima e pra baixo sem saber o que fazer, diante da vontade que a ventania chegasse logo. E de repente ela vinha passando por cima de tudo, soprando com ferocidade, levando perucas pelo ar e deixando muitas matronas só de espartilho. Ao encontrar seu amado, faziam um redemoinho abraçados que destruía o que estivesse por perto. Mas sabia que aquilo não ia dar certo. A ventania amava muito apressadamente e sempre dava uma desculpa para ir logo embora. Depois ficou sabendo que ela tinha um caso mais adiante com o vendaval. Ficou tão triste que pensou em se jogar do ar.
Mas agora estava decidido. Iria partir e não tinha jeito. Estava somente esperando a brisa chegar para deixar um recado e depois pegar um pegar de vento e rumar para o sul. Dizem que vento norte vive bem no sul, pois ali o vento é muito fresco e ele sempre se dá bem. Quer dizer, rola outro clima e coisa e tal.




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Palavras de amor (Poesia)

Palavras de amor


Palavras de amor
quem sabe pronunciá-las
quem sabe identificá-las
quais serão as palavras de amor?

Um dia ouvi
da boca da minha amada
que o amanhã era nosso
e me senti muito amado
outro dia e noutro
ainda do meu amor ouvi
que teríamos a eternidade
e imaginei amado para sempre
alguém que amava muito
disse que o outro é essência
e esse disse ao outro
que é a feliz existência
outros e outros disseram
todas as palavras de amor
que seu amor é tudo e mais
que é aquilo que satisfaz
e todos com sua razão
mesmo que não entendam
a pronúncia silenciosa do coração.



Rangel Alves da Costa

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 29

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 29

Rangel Alves da Costa*


Lucas passou a manhã inteirinha consertando os estragos. Sozinho, remexendo de um lado para o outro com uma maleta de ferramentas, puxando paus e movendo folhas e outros objetos, conseguiu aos poucos colocar tudo em ordem novamente. Teve que trocar muita coisa, mas era assim mesmo. Achou melhor ter sido assim, sem que ninguém tivesse aparecido por ali para fazer perguntas.
Não gostaria que os meninos ficassem sabendo do incidente, ao menos por enquanto. Com o Padre Josefo falaria mais tarde, quando fosse ao centro da cidade. Iria resolver logo os problemas criados pela prefeitura e pela delegacia. Talvez fosse até bom prestar uma queixa sobre o ocorrido, mas pensaria nisso depois. Sabia que existem coisas que é melhor relevar do que deixar rendendo, criando até mais problemas. Se ao menos soubesse nomes, tivesse visto quem fez aquilo, se as pistas deixadas fossem esclarecedoras. Mas não, apenas os estragos consumados e os avisos deixados. Estes guardariam sim, pois talvez tivessem grande utilidade mais tarde.
Assim, com tudo no seu lugar novamente, Lucas comeu qualquer coisa, descansou um pouco e depois rumou para o centro da cidade. Primeiro passou na delegacia, onde foi bem recebido pela autoridade policial que disse nem estar lembrado mais daquela intimação e que aquilo ali havia sido apenas um procedimento de praxe para evitar que as pessoas deixem de avisar à polícia todas as vezes que forem reunir grande número de pessoas. Sabendo com antecedência, alguns policiais são enviados para evitar tumultos.
Contudo, perguntou se ele tinha algum inimigo ou recebido alguma ameaça recentemente, vez que chegaram a procurar a delegacia para prestar um boletim de ocorrência dizendo que o barracão poderia colocar em risco a vida de pessoas que porventura estivessem dentro dele. Porém, como a delegacia não era competente para averiguar a segurança estrutural de nenhuma obra, deixou de receber a queixa. Neste ponto, Lucas perguntou quem teria sido, mas lhe foi respondido que o nome ou nomes não poderiam ser citados.
Seria o momento oportuno para falar sobre o ocorrido na madrugada, para prestar a queixa sobre a invasão e destruição e pedir providências. Contudo, resolveu silenciar e se dar por satisfeito na sua passagem ali pela delegacia. E assim que saiu de lá foi diretamente até a prefeitura resolver a questão sobre o licenciamento da obra. Obra, que obra? Grande construção aquela onde vândalos chegam e sem maiores esforços destroem o que querem. Caminhava se perguntando e imaginando.
Ao chegar à sede da prefeitura, nem bem entrou direito para perguntar onde era o setor competente para ser atendido e logo apareceu um almofadinha dizendo que o senhor prefeito desejava muito recebê-lo, e que por favor o acompanhasse. E assim, cercado por mil cordialidades, águas e cafezinhos, foi conduzido até o gabinete da autoridade municipal, o senhor prefeito, que o estava esperando de pé, com um sorriso novelesco e braços abertos parecendo que estava recebendo um velho amigo.
Mas o que é mesmo que está havendo por aqui, se perguntava Lucas. Quantas vezes já tentei falar com esse homem e nunca fui recebido? Quantos ofícios já encaminhei para a prefeitura pedindo apoio para o desenvolvimento de projetos com os alunos e nunca enviaram uma só resposta? E por que agora essa consideração toda? Ficava se perguntando ao mesmo tempo em que começava a se enojar com aquela encenação toda, com aquela falsidade explícita e com o aquele jogo de interesses em desenvolvimento. Foi-lhe puxada uma cadeira e sentou, e começou a ouvir do "grande amigo senhor prefeito":
- Mas que bom tê-lo por aqui meu bom rapaz. Lucas, o seu nome é Lucas não é mesmo? Mas como eu poderia esquecer de um nome tão importante no nosso município, de um amigo fiel, de uma pessoa tão preocupada com as melhores ações sociais, de um amigo que nos pode ser tão útil... – Dizia o prefeito entusiasticamente, tecendo considerações imaginárias sobre ele, quando foi interrompido por este:
- Útil em que senhor prefeito, poderia ser mais claro?
- Ora, meu amigo, os amigos são sempre úteis. E você tem demonstrado que é mais do que um amigo para o prefeito, pois sua obra prodigiosa comprova que na verdade é um grande amigo do município. Sendo amigo do município, das crianças do município, da educação e aprendizagem de todos do município, me é muito útil também...
- Por favor, senhor prefeito, queira ser mais claro, mais objetivo – Insistia Lucas.
- Vou logo ao ponto. É que as eleições se aproximam e pessoas como você pode nos ajudar muito. Sabe como é. Você lida com o povo, com muita gente, construiu aquela obra maravilhosa lá no seu terreninho, coisa que deverá crescer muito mais, e assim é o que podemos chamar de um cabo eleitoral dos bons, daqueles que... – Pareceu não gostar muito, mas foi interrompido por Lucas:
- Desculpe senhor prefeito, mas essa utilidade me deixa muito honrado. Acredito vivamente que uma das maiores honras e virtudes de um homem é servir de capacho, de cabide para as pretensões eleitorais dos outros, nessa realidade vil e nojenta que é a política, e na qual estão inseridos os políticos...
Foi interrompido abruptamente pelo prefeito, que se sentindo desconfortável pediu urgentemente um gole de qualquer coisa. Preferia de uísque.


continua...




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domingo, 27 de junho de 2010

Dia (Poesia)

Dia


Dia amarelo
sem sol ter saído
dia nublado
sem chuvisco caído
dia sem tarde
com manhã já ter ido
dia sem horas
nesse tempo sumido
dia sem grito
no espanto contido
dia sem dia
pelo dia traído
dia sem amanhã
pelo ontem destruído
dia mais triste
sem que eu tenha vivido
dia que vivo
com medo de ter morrido.


Rangel Alves da Costa

MAIS QUE PALAVRAS (Crônica)

MAIS QUE PALAVRAS

Rangel Alves da Costa*


Do livro da vida, as lições e os exemplos só faltam implorar para serem lidos ou seguidos. Em qualquer situação ou circunstância que o homem se encontre, certamente numa página qualquer desse livro estará seu norte e caminho.
Como ensinamento não há livro mais perfeito do que a Bíblia. Nela estão as graças e as virtudes que devem ser observadas pelo homem fiel aos mandamentos do seu Deus. Contudo, mesmo nas frases soltas, nos pequenos esboços e nas folhas perdidas, haverá sempre lições a serem seguidas. Tudo ensina, tudo pode ser uma grande lição numa frase mesmo despretensiosa. Daí os ditados, os provérbios, as máximas e os dizeres de um povo que são repassados de geração a geração como virtuosa sabedoria. Basta ler, ouvir e procurar entender.
De modo específico, algumas expressões latinas, pelo seu conteúdo implícito e muitas vezes sem uma eficiente tradução, nunca foram tão acessíveis e assimiladas pelo povo. Mas muito do seu conteúdo, como se verá, são verdadeiras pérolas, joias que encontramos e afirmamos que a reconhecemos de algum lugar, de alguma situação na vida. Senão vejamos:
Abyssus non tollit usum: Um abismo atrai outro. Um erro, um engano, ocasiona ou provoca outro. Daí que é preciso agir com muito cuidado e prudência, pois uma atitude errada nunca vem sozinha.
Acta est fabula: Elevar-se aos astros, ainda que com dificuldades. É preciso pensar alto para alcançar os grandes objetivos, mesmo que tudo pareça mais difícil do que as forças do momento.
Ad augusta per augusta: Consentânea da anterior expressão, significa que através das dificuldades é que se chega aos grandes resultados. Quer dizer, todos os grandes feitos exigem grandes sacrifícios.
Ad kalendas graecas: No dia de São Nunca, dia este que nunca chegará. Como se sabe, todos os dias do ano dão nomes aos santos da igreja católica, mas nunca existiu nenhum santo com o nome de São Nunca, daí que citar esse dia é afirmar que algo jamais existirá.
Ad perpetuam rei memoriam: Para perpetuar a lembrança de uma coisa, fato, acontecimento. Significa que os fatos marcantes devem ficar na memória para a eternidade.
Aequam memento rebus in arduis servare mentem: Lembra-te de manter o ânimo justo nos momentos mais difíceis. Conservar o ânimo e o encorajamento é fundamental para o enfrentamento dos momentos difíceis da vida.
Aere perenius: Mais durável que o bronze, eterno. Diz-se com relação aos grandes amores que nada pode destruir.
Alea jacta est: A sorte foi lançada. A decisão que foi tomada não pode voltar atrás. Agora não tem mais jeito, e o que se tem de fazer é contar com a ajuda da sorte, pois não se pode mais rever o que já foi decidido.
Alter ego: Outro eu. Pessoa de nossa absoluta confiança e amizade, que pode representar-nos em tudo. De tão conhecedora que é das razões que movem uma pessoa na sua tomada de decisões e atitudes, outra pessoa pode agir como se fosse a outra e em seu lugar.
Amantes, amentes: Os amantes são doidos. Os que estão sob um sentimento muito forte não raciocinam corretamente. Quer dizer que o amor em demasia tem o poder de enlouquecer as pessoas, que fazem todas as insanidades do mundo como se estivessem agindo dentro da normalidade.
Amicus Plato, amicus Socrates, sed magis amica veritas: Platão é amigo, é amigo Sócrates, mas a verdade é ainda mais amiga. Quer dizer: devemos preferir a verdade à amizade, ainda que seja de Platão ou de Sócrates.
Amor omnis vincit: O amor vence tudo. O verdadeiro amor tem o poder de vencer os maiores desafios.
Ars longa vita brevis: A arte é longa e a vida breve. Quer dizer que toda uma existência é ainda pouca, para o aperfeiçoamento de um artista segundo requer a própria arte.
Audaces fortuna juvest: A sorte ajuda os audazes. Os que são corajosos, intrépidos e arrojados contam com a ajuda da sorte nas suas ações.
Brevis esto et placebis: Sê breve e agradarás. Por que ficar repisando, em demoras, se podes dizer tudo em poucas palavras?
Cogito ergo sum: Princípio da filosofia de Decartes: Penso, logo existo. Significa que através do pensamento o indivíduo é capaz de encontrar a verdade sobre as coisas e sobe si mesmo. É o princípio fundamental da filosofia racionalista, que tem o uso da razão como pressuposto básico.
Contraria contrariis curantur: Contrários com contrários se curam. É o princípio básico da alopatia: deve-se dar o remédio que seja contrário, que produza efeitos contrários ao que produz a doença. Opõe-se ao princípio da homeopatia: similis similibus curantur: curam-se as doenças tomando remédios que produzem os mesmos efeitos produzidos pela enfermidade.
Cor unum et anima una: um só coração e uma só alma. Diz-se da perfeita harmonia entre as pessoas, fato cada vez mais difícil de acontecer. Até o momento da aceitação do outro diante do padre observa-se a ocorrência deste princípio. Depois...
Cuique suum: A cada um o que é seu, princípio básico da justiça.
De nihilo nihil fit: De nada, nada se faz. Não se pode esperar resultado algum daquilo que não existe, que não foi iniciado.
Docendo discimus: Ensinando, aprendemos.
Dum vita est, spes est: Enquanto há vida, há esperança.
Ego sum qui sum: Eu sou aquele que é por si mesmo, que não foi criado por outrem, Deus (Palavras ouvidas por Moisés no monte Sinai).
Errare humanum est: Errar é próprio do ser humano.
Fiat lux: Faça-se a luz! É do Gênesis, ao descrever a sequência da criação das coisas.
Fiat voluntas tua: Expressão de resignação em face de um sofrimento ao qual não se pode fugir. Faça-se a tua vontade!: Foram palavras de Cristo após orar e ver que morreria crucificado.
Homo homini lupus O homem é o lobo do homem. Quer dizer que o maior inimigo do homem é o próprio homem, contra si mesmo e o próximo.
Magnificat: Primeira palavra da resposta de Maria ao anjo que lhe anunciava que ela seria a mãe de Cristo: Magnificat anima mea Domino: a minha alma engrandece ao Senhor.
Memento homoquis es pulvis et in pulverem reverteris: Lembra-te, homem, de que és pó e em pó te hás de tornar.
Nascuntur poetas, fiunt oratores: os poetas nascem, os oradores se fazem.
Nihil novi sub sole: Palavras de Salomão: Não há nada de novo sob o sol.
Non omnis moriar: Não morrerei completamente. Procura passar a ideia de que o espírito sobreviverá.
Si vis pacem, para bellum: Se queres a paz, prepara a guerra. Quer dizer: para viver em paz, deve uma nação estar armada como se fosse entrar em guerra. Só o medo das armas da paz aos povos.
Tempus edax rerum: O tempo destrói as coisas. Frase de Ovídio.
Vulnerant omnes; ultima necat: Todas as horas ferem, mas a derradeira mata. Inscrição de velhos relógios da Europa.
Se mesmo assim ainda não encontrou a expressão latina que mais de perto expresse uma pequena lição de vida, que tome das palavras cotidianas e reflita que "homem é passarinho no ninho da natureza".




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EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 28

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 28

Rangel Alves da Costa*


Naquela noite, antes de adormecer profundamente ali mesmo na sala, aleatoriamente Lucas havia lido passagens da bíblia que falavam exatamente sobre ameaças e destruições, sobre o inimigo que chega querendo destruir, e em muitas daquelas palavras havia certamente que havia lido:
"Surgiram então, do pórtico superior que olha para o norte, seis homens trazendo cada um na mão o instrumento de destruição. Encontrava-se no meio deles um personagem vestido de linho, trazendo à cintura um tinteiro de escriba. Entraram para se colocar de pé ao lado do altar de bronze" (Ez 9,2).
"Quando os homens disserem: Paz e segurança!, então repentinamente lhes sobrevirá a destruição, como as dores à mulher grávida. E não escaparão" (I Tes 5,3).
"Há destruição e ruína nos seus caminhos" (Rom 3,16).
"O invasor agirá à sua vontade sem que ninguém possa enfrentá-lo. Deter-se-á no país que é a jóia da terra; e a destruição estará em suas mãos" (Dan 11,16).
"Tenho procurado entre eles alguém que construísse o muro e se detivesse sobre a brecha diante de mim, em favor da terra, a fim de prevenir a sua destruição, mas não encontrei ninguém" (Ez 22,30).
"Incendiaram o templo, destruíram os muros de Jerusalém, entregaram às chamas seus palácios e todos os tesouros foram lançados à destruição" (II Cr 36,19).
“Ele me livra de meus inimigos; sim, tu me exaltas sobre os que se levantam contra mim; tu me livras do homem violento" (Sal 18,48).
"(...) pois Deus não ameaça como os homens e não se deixa arrastar como eles à violência da cólera" (Jdt 8,15).
"Os que odeiam a minha vida, armam-me ciladas; os que me procuram perder, ameaçam-me de morte; não cessam de planejar traições" (Sal 37,13).
"(...) me fez conhecer que há um povo mal-intencionado, disperso entre os outros povos do mundo, de costumes contrários aos dos outros, que despreza continuamente as ordens dos reis, a ponto de ameaçar a concórdia que reina em nosso império" (Est 13,14)
"Aqueles que a queimaram e cortaram pereçam em vossa presença ameaçadora" (Sal 79,17).
"Não receeis as ameaças do pecador, porque sua glória chega à lama e aos vermes" (I Mac 2,62).
"Diante da profanação que ameaçava o templo, o povo se precipitava em multidão para fora das casas, a fim de se ajuntarem à prece comum" (II Mac 3,18).
"Sabendo disso, Judas mandou que o povo invocasse o Senhor, noite e dia, para que nessa circunstância, mais do que nunca, ele viesse em socorro daqueles que estavam ameaçados de perder a lei, a pátria e o templo" (II Mac 13,10).
"Reconhecido isso, ó rei, pela benevolência que testemunhas a todos, toma as medidas necessárias para a salvação de nosso país e de nossa raça ameaçada" (II Mac 14,9).
"Reformai, portanto, vossa vida e modo de agir, escutando a voz do Senhor, vosso Deus, a fim de que afaste de vós o mal de que vos ameaça" (Jer 26,13).
Estas e outras passagens bíblicas Lucas havia lido naquela noite, sem saber que mais tarde, lá fora, bem pertinho de sua casa, no barracão, um desconhecido ou desconhecidos, pessoas invasoras agindo como inimigos, e sabe-se lá seguindo quais ordens ou tendo quais motivações, chegaram de mansinho, na forma como agem os frios e traiçoeiros, e deixaram ali os primeiros sinais de que aquela construção estava incomodando, não haviam gostado daquela missa celebrada ali naquela manhã, não gostavam das pessoas que estavam à frente daquela rústica obra ou simplesmente quiseram amedrontar para deter avanços maiores e deixar algum recado maior suspenso no ar.
Com efeito, assim que madrugou e levantou espantado por haver adormecido na sala, Lucas abriu a porta e mesmo na pouca luz já existente pôde perceber que havia buracos num dos lados do barracão, pedaços de madeira e ripas estavam pelo chão e palhas espalhadas por toda parte. Ao se dirigir ao local encontrou as duas portas violadas, todos os bancos de madeiras de pernas para o ar, a mesinha com as quatro pernas quebradas e demais pertences do casarão totalmente revirados ou destruídos.
Pelas paredes estavam espetados alguns avisos: "Isso foi só começo", "Pensem bem no que estão fazendo", "Casa em pé, casa caída". Mas quem terá feito essa brincadeira de mau gosto? Ficou imaginando Lucas, enquanto procurava revirar os banquinhos. Depois saiu para fora e redondezas para ver se encontrava alguma pista, e nada. O inimigo continuava desconhecido.


continua...




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sábado, 26 de junho de 2010

DIÁRIOS DA SOLIDÃO (Crônica)

DIÁRIOS DA SOLIDÃO

Rangel Alves da Costa*


Deserto da Judéia, sexta-feira, num tempo muito distante: Fui enviado para este deserto pelo Espírito Santo onde, em meio ao frio e ao calor, ventanias e tempestades de areia, sendo constantemente tentado pelo inimigo que quer ver a todo custo onde estão as minhas fragilidades, estou em jejum já perto dos quarenta dias e quarenta noites e mesmo assim me sinto fortalecido de espírito. A solidão não me atrapalha nem entristece, pois nunca estamos sós em lugar algum, pois são muitas as presenças do desconhecido e do conhecido que não quer aparecer. Estou cumprindo o Plano de Deus, e isto já serve como maior conforto e alento, pois certamente ainda terei muitas obras a fazer pela vida, e todas em nome do Homem e para o homem.
Tsou, China, quinta-feira, 470 a. C.: Verdade é que a minha linhagem nobre e meus pais e os muitos irmãos, e sou o mais novo dentre todos, não conseguiram me segurar no berço familiar. Preferi, como sempre prefiro, vagar pelos reinos com meu jeito humildade de ser. Abdiquei de qualquer bem material para viver onde encontro abrigo e onde me doam algum tipo de alimento. Contudo, na minha fragilidade não pensem que não estou vendo as hostilidades com que os soberanos tratam os seus súditos e as práticas nefastas que humilham ainda mais os mais humildes. Busco, em tudo que faço, que seja garantido a cada um o direito de viver segundo seus pensamentos e em harmonia consigo mesmo, através dos princípios do ren (humanidade), li (cortesia), zhi (sabedoria), xin (integridade), zhing (fidelidade) e yi (honradez).
Bodh Gaya, Índia, quarta-feira, 576 a. C.: Desde os vinte e nove anos que me ausentei do conforto e da suntuosidade do palácio do meu pai, o rei Suddodhana, e agora, já com mais de trinta e cinco anos, suponho, que procurei refúgio embaixo dessa figueira onde vivo a meditar em busca de iluminação para encontrar respostas para as dores do mundo e ajudar as pessoas a encontrarem felicidade através das boas ações. Há muitos dias que uma cobra Naja me importuna, fazendo tentações em nome do mal, do mesmo modo surgem outras aparições buscando me enveredar por outros caminhos. Mas nesta solidão aprendi que toda iluminação é fruto da persistência. Persistirei até alcançar meus objetivos.
Caverna do Monte Hira, Meca, segunda-feira, ano 610: Estou com quarenta anos e já cansado das muitas viagens na minha vida de mercador. Os negócios enriquecem os bolsos, mas nenhuma fortuna faz chegar ao espírito. Aqui nessa caverna, na solidão dessa vastidão de montes, venho meditar sempre guiado por uma força superior que me faz crer que serei escolhido para uma longa e difícil missão, vez que serei desacreditado até mesmo pelo meu povo. Ontem me apareceu o Anjo Gabriel e trouxe consigo uma mensagem difícil de acreditar, dizendo que serei o último profeta enviado por Deus. As escolhas divinas não podem ser ignoradas, por isso mesmo estou disposto a cruzar os desertos cumprindo o que me foi confiado.
Nova Delhi, Índia, quarta-feira, 1915: Não faz muito tempo que regressei da África do Sul, onde em meio a tantas barbaridades impostas pelos colonizadores britânicos na região, consegui esforçar-me o que pude para defender os direitos dos hindus ali vivendo em total menosprezo. Já de volta à minha terra, vejo-me diante dos mesmos problemas e dos mesmos agressores. Minhas armas eles já conhecem, pois não passam do diálogo, da busca da pacificação através do entendimento, da luta pelo reconhecimento dos direitos com desprezo a qualquer forma de violência. Como leitura que me fortalece, tenho cotidianamente no amanhecer O Sermão da Montanha e o Baghavad-Gita, cujas palavras são como sopro de ânimo para continuar lutando pela total independência do meu povo. Viver como estranho na própria terra é como a solidão na alegria da família.
Igreja dos Capuchinhos, Aracaju, 26 de junho de 2007: Eis-me aqui, Senhor, humilde servo para dizer apenas que hoje, nesta noite, mesmo após ter feito durante o dia tudo aquilo que me agrada e agrada à minha, que é a Vossa Igreja, e tendo ouvido os aflitos, ajudado os carentes e celebrado a vossos ensinamentos, não sei bem porque mas me sinto triste e solitário. Eis que me vem uma criança pedinte e me pergunta o que fazer para falar com o Senhor. E respondi que isto somente seria possível através da oração, e foi quando ela me disse que sabia um jeito melhor de fazer isso. Então perguntei qual era e ela respondeu: Não sei se é assim, mas todas as vezes que peço alguma coisa e a pessoa me dá de bom coração, eu acho que o Senhor está me ouvindo.




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Canto da espera (Poesia)

Canto da espera


Assim que o meu amor quiser
deixarei de ser triste e solitário
deixarei de colher a aflição
sairei desse lugar e dessa nuvem
sairei das tempestades e dos vendavais
assim que o meu amor disser

Assim que o meu amor quiser
voltarei a amar e sorrir
voltarei ao bom sentimento sentir
direi para o mundo que existo
direi que da paz não desisto
assim que o meu amor vier

Assim que o meu amor quiser
assim que o meu amor chegar
encontrará outro este lugar
com um sol e um jardim
com a vida renascida em mim
pois o amor vai chegar
e que entre meu bom Deus!


Rangel Alves da Costa

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 27

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 27

Rangel Alves da Costa*


Logo ao amanhecer, quando a chuvarada já havia se dissipado, mesmo que ainda continuasse caindo um chuvisco bem fraquinho, o Padre Josefo chegou todo esbaforido à casa de Lucas. Segundo ele, não houve jeito para o carro dar partida, mas como passou a noite inteira preocupado com a sorte do barracão diante da tempestade, resolveu caminhar para chegar até ali. Não demorou muito e parte dos meninos chegava em comitiva, cada um com o seu guarda-chuva, agora mais aliviados já que de longe perceberam que o barracão ainda estava em pé.
Enquanto os meninos entravam no barracão para ver se alguma coisa havia desabado por dentro, Lucas chamou o sacerdote para um canto e começou a falar sobre os fatos ocorridos naquela noite ao entrar pela porta que estava entreaberta:
- As portas, como todos sabem, não apresentam grande segurança e talvez eu tenha esquecido de fechar com cuidado, mas o fato é que, vindo aqui ontem quase duas horas da manhã verificar como andava a situação, encontrei uma delas entreaberta e assim que entrei percebi que alguns animais tinham entrado para se proteger da chuva e estavam espalhados por aí, deitados no chão. E com certeza nenhum desses animais forçaria abrir a porta, disso sei muito bem. O vento também, por mais que soprasse forte, não tinha como abri-la. Ou derrubava a frente toda ou nada, mas abrir exclusivamente a porta não, também sei disso. O problema maior, pode acreditar Padre Josefo, foi quando entrei e olhei ao fundo do barracão e encontrei uma luz em forma de gente, com os mesmos contornos de uma pessoa, logo após aquela mesinha, como se estivesse em pé atrás dela. E a luz, que já não era forte, foi enfraquecendo assim que comecei a mirar. Isso é que não estou entendendo bem. Assombração não seria, pois dizem que estes fenômenos não existem onde animais estão pacificamente descansando. Se fosse coisa do outro mundo, certamente que eles estariam agitados, andando de um lado para o outro, fazendo barulho. O que terá sido meu Deus? – Acabou indagando Lucas, após o longo relato.
E foi quando o padre, colocando a mão no seu ombro, começou a falar:
- Você disse-o bem, meu rapaz. O que terá sido meu Deus? Nesta indagação talvez esteja a resposta para toda dúvida. O que terá sido meu Deus? Pois acredite rapaz, você presenciou a luz do espírito divino e aquela luz que estava ali diante da mesinha e diante os animais pacificamente descansando era a presença de Deus, a presença do espírito divino iluminado. Que bom, que glória, que graça! Você, meu bom Lucas, também é uma pessoa iluminada. E talvez você não tenha visto diante da surpresa maior daquele luzir especial, mas outras luzes também deveriam estar por aqui, que eram as luzes dos muitos anjos alegres que estavam em festa com a presença divina. Mas eles ainda estão por aqui em todos os lugares, ao nosso lado e acima de nós, pois os anjos sempre nos acompanham e fazem guarda nos locais onde a presença de Deus é aceita de coração, como ocorre neste humilde barracão.
- E quais os propósitos de sua luz estar aqui, Padre Josefo? – Indagou Lucas.
- Infelizmente não podemos e nem sabemos dizer com palavras os propósitos de Deus, mas há uma série de fatores que podemos relacionar para tentar compreender. Em primeiro lugar, a porta não se abriu, foi aberta para que os animais entrassem; em segundo lugar, os animais que dormiam profundamente num lugar até então estranho para eles é sinal de que houve alguma intercessão para tal; em terceiro lugar, a sua chegada aqui naquela hora da madrugada não foi em vão, mas sim uma condução para que sentisse de perto que este local, esta pequena construção, e principalmente você, todos estão abençoados. Por último, outros propósitos existem que nem podemos supor e só o tempo poderá nos esclarecer e mostrar. Mas em tudo, Lucas, pode acreditar, você viveu realmente uma experiência divina e dificilmente pode se citar, em todo o resto do mundo, pessoas que viveram esta experiência. Por isso mesmo, meu filho, digo-lhe que ore e ore muito, agradecendo por tudo que teve a oportunidade de presenciar e pedindo que os reais propósitos divinos sejam os melhores possíveis – Respondeu o Padre Josefo, realmente encantado com o relato de Lucas e o desfecho daquela história.
À tarde os meninos voltaram para dar uma limpeza geral no barracão. Retornaram para suas casas já perto da noite escurecer. Assim que ficou sozinho novamente, Lucas se descobriu completamente cansado e com muito sono da noite passada mal-dormida, mesmo assim fez suas orações e sentou um pouco para ler, aleatoriamente, passagens da bíblia. Dormiu pesadamente ali mesmo na poltrona.
Com um sono tão pesado não pôde perceber os estranhos que chegaram tarde da noite para derrubar parte lateral do barracão, revirar bancos e a mesinha e deixar avisos por toda parte.


continua...




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sexta-feira, 25 de junho de 2010

Cartinha de amor caboclo (Poesia)

Cartinha de amor caboclo


Prosa e verso no tempo
refletindo o momento
no coração do menino
que faltava anel no dedo
mas sobrava sentimento

Foi num dia assim
olhando o céu estrelado
na ponta tremida do lápis
que disse tudo ao seu modo
ao seu amor amado
trabalhando as palavras
como se molda o barro
como se usa o cinzel
como se laça o destino
e ficou bonito que só
que ela leu e se encantou
quis sorrir e chorou
com letras dizendo assim

Se tira da flor o perfume
se tira da rosa o encanto
se tira da noite o lume
se tira de tudo um tanto
e soma na tua beleza
me tira da solidão
me espanta dessa tristeza.


Rangel Alves da Costa

TARDEZINHA, QUASE NOITE... (Crônica)

TARDEZINHA, QUASE NOITE...

Rangel Alves da Costa*


Com a maioria das pessoas é assim: dormiu bem, teve bons sonhos, amanheceu feliz, cumpriu seu destino no dia como deve ser, enfim, nada que reclamar da vida, até que chega à tardinha, quase anoitecer, quando tudo começa a desandar em tudo que não responda por conta própria: alma, espírito, coração e mente.
Inegavelmente que todos os momentos do dia têm os seus encantos próprios, contudo quando o sol vai perdendo força, brilho e queimor, quando ele desaba para o lado oeste para se despedir e por trás das nuvens surge um amarelo-avermelhado de fogo crepitando, é que começam a surgir os mistérios crepusculares e as cabeças parecem abandonar os corpos e seguirem nos momentos mágicos e doloridos que virão.
Nessas horas do dia, os passos parecem já ter destino certo, e não adianta querer inventar outros caminhos. Está na mente, está na alma, está em tudo que deseja seguir para o descampado ver o entardecer, para a janela mirando aquele horizonte entristecido, para a praça, para a rua, para o terraço, para o quintal, para qualquer fresta onde se possa enxergar a tristeza. É isso mesmo, enxergar a tristeza, pois automaticamente os sentidos avisam que já é tardezinha, quase anoitecer, e que já é tempo de sofrer.
Nessas tardezinhas, quase noite, quem tem sorte sofre mais bonito, mais romântico e poético. Dizem que o entardecer numa praia é encantador, a tristeza que ele traz também; quando o último vermelho do sol parece que vai mergulhando nas águas ou se avista uma embarcação que vem bem longe porque é também de retornar, os olhos não sabem mais divisar aquelas cenas e mergulham também no mesmo leito agitado. E o vento que sopra nos coqueirais avisa que a noite já vem, e por certo virão também os vendavais trazendo outras e tantas recordações.
Os motivos que fazem do entardecer quase noite instantes que permitem aflorar tantos mistérios na alma talvez que continuem inexplicáveis. Os próprios indivíduos não sabem explicar as mudanças que ocorrem. Talvez seja a cor indecisa, entre a luz e a sombra, que chama as saudades adormecidas; talvez seja o vento soprando de um modo diferente, mais ligeiro, trazendo consigo tantas recordações; talvez sejam os pássaros que voam para se recolher aos seus ninhos e transmitem a impressão de que a vida é também recolhimento; talvez sejam as nuvens cinzentas que anunciam as tempestades; talvez seja o voo solitário da gaivota, e talvez seja essa solidão.
Assim, sejam na janela, em cima da montanha, na praia ou em qualquer descampado, esses instantes mágicos da tardezinha quase anoitecer sempre produzem as sensações de angústia, de tristeza, de desilusão, de abandono, de solidão, de vontade de correr e sumir, de voar e partir, de reencontrar algo que parece muito distante ou perdido. E como consequencia chegarão as lágrimas, as tantas incertezas, os medos, os desesperos, os gestos desesperados, os gritos. Noutros chegam apenas o silêncio, o cálice e o gole.
Pessoas existem que simplesmente procuram fugir desses instantes do dia. Assim que a tarde começa a avançar se trancam nos seus quartos e tomam remédios para adormecer. Imaginam que ao acordar não haverá mais perigo de ter de enfrentar os mistérios das horas da aflição. Assim, medrosos com a própria realidade, se enfiam nos lençóis e começam a ter pesadelos em pleno dia. E tudo vem redobrado nas dores, nas angústias e aflições.
Quando levantam já é noite. E quando olham pra cima há uma lua imensa pedindo que lembre de alguém.



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EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 26

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 26

Rangel Alves da Costa*


Nas suas palavras, Lucas disse ainda da imensa alegria em ter recebido todas aquelas pessoas naquele humilde lugar e acentuou bem que um dos principais objetivos na construção daquele barracão era também possibilitar a todos que ainda não sabiam ler nem escrever uma oportunidade de receberem aprendizagem, pois ele mesmo teria a incumbência de ensinar a cada um, seja de que idade fosse, a magia e o encantamento que estão por trás das palavras.
Terminada aquela pequena programação e quando se esperava que todos os visitantes retornariam para suas casas, o que se viu foi que grande parte dos que estavam ali resolveram ficar por mais tempo, ora se oferecendo para ajudar no que fosse preciso, ora apreciando a natureza ao redor ou sentados em grupos pelo chão ou dentro do barracão jogando conversa ou apreciando uma bebida com algum alimento. Somente quando começou a escurecer é que as últimas pessoas deixaram de vez os arredores da rústica construção.
Na casa de Lucas, após a cerimônia religiosa e os testemunhos proferidos, aos poucos foram se reunindo o próprio Lucas, o Padre Josefo e os meninos. Estavam ali porque era impossível conversar sobre os acontecimentos daquela manhã no barracão, vez que completamente tomado pelos visitantes e curiosos. Mas tanto ver o que ali, se nada mais existia do que quatro paredes arranjadas e alguns tamboretes de três pernas? Perguntava Paulinho aos amigos. Estão vendo no quase nada o tudo que nunca imaginaram existir, sintetizou o sacerdote. E ao final concluíram que aquela manhã havia sido um grande sucesso em todos os aspectos, mesmo com as exigências absurdas da prefeitura e da delegacia.
Quando Lucas trancou as portas do barracão já havia escurecido. Todos já haviam ido embora e estava sozinho nos últimos afazeres do dia. O tempo havia se modificado de repente. O dia inteiro que foi de sol e nuvens azuis pelo céu, a partir do entardecer começou a ter feições de que iria chover. Quanto o vento começou a soprar mais forte, zunindo pelos descampados e espalhando folhas secas pelo ar, não durou muito e a escuridão do céu veio carregada de nuvens pesadas de chuvas. E de repente ouvia-se o barulho da chuva caindo bem forte, intensa e acompanhada de vento assustador.
Na varanda de sua casa, mesmo estando prestes a ficar todo molhado, Lucas permanecia em pé com uma xícara de café quente na mão. Enquanto sorvia, com o rosto molhado pelos pingos que chegavam até ali, ficava olhando para o barracão e se perguntando se suportaria aquela verdadeira tempestade. A chuva forte não causava tanta preocupação; o problema era saber se a frágil construção de ripas e palhas iria suportar a força da ventania. Bastava que a ventania começasse a mover um pouco da cobertura também de palhas e num instante tudo iria pelos ares. Aquele, sem dúvidas, era um teste de arrepiar, pensava.
Uma hora da manhã e a chuvarada ainda continuava incessante. Agora fazia frio e o vento não parava de soprar, só que agora com menos força. Lá fora a escuridão era de não enxergar palmo adiante, de não dar um passo sem tropeçar nas pedras e sem afundar nas poças d'água. Outros bichos não, que estavam recolhidos em suas tocas, mas cobras certamente que boiavam pelas águas rasas à espreita de qualquer presa. Nessas horas adoravam um calcanhar desprevenido.
Duas horas da manhã e Lucas ainda ali, sem sono e preocupado com a situação do barracão diante daquela molhação toda. Ainda bem que não estava acompanhada de raios e trovões, bastava a ventania, ficava imaginando. Foi quando decidiu ir deitar assim mesmo, sob pena de na manhã seguinte estar todo indisposto para as muitas lides que tinha de enfrentar. Mas não iria dormir, talvez até porque não conseguisse, se não fosse primeiro dar uma olhada mais de perto no barracão.
Calçou uma galocha, que é uma espécie de botina de borracha que vai até próximo ao joelho, pegou um guarda-chuva e uma lanterna e foi seguindo cuidadosamente até a construção, onde começou a iluminar de cima abaixo nas partes laterais para ver se tudo ainda estava em pé. Tudo normal, sem maiores estragos, pensou. Nada que não possa ser reparado depois sem maiores problemas. Contudo, ao iluminar a parte frontal, na entrada, percebeu que uma das portas estava entreaberta.
Não podia ser, pois tinha certeza que havia fechado tudo antes de ir para casa. Ficou intrigado com a descoberta. Talvez tivesse sido a força do vento ou até mesmo que ele tivesse esquecido de fechar mais cuidadosamente aquela porta. De qualquer forma, já que estava ali, resolveu entrar para ver como as coisas estavam por dentro. E assim que entrou percebeu uma luz em forma de gente bem atrás da mesinha que serviu de altar, e animais deitados, se protegendo da chuva, por todo o chão do barracão.


continua...




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quinta-feira, 24 de junho de 2010

FLOR DO CAMPO (Crônica)

FLOR DO CAMPO

Rangel Alves da Costa*


A minha namorada é linda e bela, é meiguice e formosura, cheira a perfume do mato, cheira a manhã perfumada, e quando abro a porteira me vejo num jardim sertanejo colhendo a flor do campo.
Minha namorada é flor no sertão queimado, seco e esturricado. Acostumada ao sol, sua pele cabocla parece suave verniz das estrelas, parece cor do barro levemente queimado na fogueira da paixão. E quando estou perto dela, quando seu corpo toca em mim, não sei mais a cor que vejo, se existe cor no desejo.
Quando a porteira solta um gemido para abrir e minha namorada me enxerga ao longe, sinto que sorri um sorriso de sol, sinto que olha um olhar de mar, e ajeita o seu corpo de horizonte para o meu olhar passear. E vem caminhando assim, num jeito de não chegar, só pra ver se desando a correr e no seu caminho me perder.
Levo na mão uma flor escondida, flor bonita igual a ela, e nem sei se açucena, rosa, violeta ou crisântemo, só sei que cheira ao seu corpo e tento esconder a flor pra não perder o encanto, e sem querer seguro a pétala e coloco no seu cabelo e não sei mais o que dizer, se é belo o meu jardim ou se ela é primavera.
Nunca vi minha namorada triste, um dia só vi meu amor entristecer. Se entristeceu por besteira só porque chuva caiu, só porque entardeceu, só porque anoiteceu, só porque lua saiu, só porque era poeta. Era sim. Minha namorada nunca escreveu um poema, mas um dia olhou o mundo, mirou bem o horizonte e falou pra natureza: e não agradecemos o amor que nos é amado!
Ela não sabia disso, mas construía poesia no olhar, no sentir, no falar, no andar, no vestir. No olhar porque é profundo igual sentimento; no sentir porque o encanto e a compreensão pediram licença e fizeram moradia; no falar porque a brisa vem silenciosamente e o vento sopra com cuidado; no andar porque é nuvem passeando, onda leve jorrando, raio de sol brilhando; no vestir porque o céu de chita é mais bonito, porque as cores da natureza estão ali. Tudo é assim, lindo e belo na sua poesia.
Um dia vi o meu amor se banhando no regato e me banhei de espanto vendo o meu amor tão nua. Não vi o corpo nu, não vi os seus seios rijos, não vi suas curvas molhadas, não vi o seu sexo macio. O que vi, meu amor, tudo que vi foi espanto: uma luz se banhando na sede do meu olhar. Sereias existem, eu ouvi o seu canto; ninfas existem, eu vi os seus gestos; sonhos perfeitos existem, eu vi você se banhando!
Um dia eu vi meu amor chorando e fiquei mais que triste que o meu amor chorando. Vi a tristeza, vi uma solidão que nunca tinha visto nela, vi uma lágrima que nunca vi tão molhada. Perguntei ao meu amor porque e ela me disse tudinho: que nunca havia chorado, que nunca sentiu uma tristeza tão triste e jamais havia experimentado do sabor travoso da solidão. E o pior meu amor disse depois: havia gostado de tudo aquilo, da tristeza, da solidão e da lágrima.
Tudo fiz para alegrar meu amor. Disse que estava apaixonado, disse que ia casar, disse que tinha um emprego, disse que tinha uma casa, disse que tinha um mundo, disse que tinha um sonho. Mas um dia fechei a porteira pra não voltar nunca mais, pra não viver nunca mais, pra não viver mais.
Meu amor havia gostado de tudo aquilo, da tristeza, da solidão e da lágrima... Alguém havia dito que ela era poeta.
Mas não faz mal, meu amor. Ainda te amo e tenho uma flor do campo para colocar nos teus cabelos. E quem dera beijar só mais uma vez a flor dos teus lábios...




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O que somos (Poesia)

O que somos


Nos contentamos demais
e foi tão pouco o contentar assim
porque agora
de tudo o que fomos
somente somos
resto do que amamos
grãos do que plantamos
eco do que chamamos
passado no que olhamos
somente o que somos
depois de construído o amor
depois de suportado o amor
depois de destruído o amor
e construção e destruição
tudo numa só palavra
brincamos.



Rangel Alves da Costa

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 25

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 25

Rangel Alves da Costa*


Após o sermão, o Padre Josefo convidou os meninos que deram início, a partir da idealização de Lucas, à construção daquele local de reuniões para testemunharem sobre o significado e importância daquele barracão. Lucas falaria por último.
Paulinho, que foi o primeiro a se apresentar quando chamados, disse: "Tivemos a ideia de construir isso aqui pra gente brincar e de vez em quando estudar, mas agora gostaria que fosse muito mais, pois vejo nele algo muito maior que o meu coração ainda não sabe o que é".
Jorge se apresentou para dizer o seguinte: "A gente nunca pensou que esse barracão um dia ia receber tanta gente. O bom mesmo era que vocês tivessem tempo de vim aqui outras vezes, mesmo sem a presença do Padre Josefo, pois o nosso espaço também é pra discutir esses muitos problemas que a gente vê por aí e não somente para celebrar missa".
Foi a vez de Maria falar: "Vocês que estão aqui viram muito bem que ainda estamos precisando fazer muito neste barracão, e se quiserem que os seus filhos venham para cá outro dia para brincar, passar o tempo ou estudar, podem muito bem dar uma ajudinha pra gente organizar melhor o barracão".
Quando Guiomar foi chamada, perguntou apenas se aceitavam que sua mãe falasse por ela. Com a aceitação de todos, a senhora se aproximou e disse: "Não ia confiar nunca que uma menina ainda saísse de casa pra se bandear para cá com outros meninos se não fosse na confiança que tenho no professor Lucas, esse jovem que Deus há de olhar ainda muito por ele. Aliás, andei sabendo que Lucas, aquele mesmo que está ali – E apontou onde ele estava – perdeu o emprego de professor. Vocês sabiam? Pois é, e fiquei sabendo que foi despedido porque ensinava aos meninos de um jeito diferente, fazendo pesquisas na própria natureza e convidando pessoas inteligentes para palestrar sobre assuntos importantes. Acho que quem não gostou foi a diretora, aquela mesmo que está ali se escondendo com vergonha do que fez – Olhou para a diretora e apontou com o indicador, fazendo com que a mesma se cobrisse com um lenço enorme e ainda colocasse um guarda chuva por cima. Em seguida foi saindo de fininho, tateando para não cair, ouvindo chacotas de um e de outro – E a mãe de Guiomar continuou:
"Hoje minha filha está toda feliz e contente porque ajudou a levantar isso aqui e eu também me sinto do mesmo jeito, de coração agradecido e pedindo a Deus que iniciativas como esta sempre apareçam para que a juventude não tenha o pensamento voltado pra o que é ruim e nem siga pelo mau caminho".
Assim que o padre chamou Lucas para falar por um instante, chegaram ao local um carro da prefeitura e logo atrás um da polícia. Do primeiro, surgiu na porta um rapaz que chamou Lucas e entregou um papel e do outro veículo desceu um soldado e disse alguma coisa no seu ouvido. Em seguida os dois carros retornaram, deixando as pessoas cochichando e até apreensivas.
Sem demonstrar nenhuma preocupação, com a cara boa e ar de satisfação, Lucas se dirigiu para o local onde iria pronunciar algumas palavras de agradecimento. E assim se expressou: "Antes que fiquem imaginando coisas ruins ou até mesmo outras coisas, quero dizer logo sobre o que as pessoas que estavam nestes dois carros vieram fazer aqui. O primeiro, da prefeitura, veio entregar uma notificação para que eu dê explicações porque levantei esse barracão e não pedi permissão à prefeitura. E vocês bem sabem o que há por trás disso. E o segundo veio me dizer que o senhor delegado deseja falar comigo para que eu esclareça porque reuni tanta gente aqui e não comuniquei nada a eles. Segundo o agente que veio dar o recado, todo evento tem que ser realizado com a permissão da polícia. Pois é, os fatos foram estes, e que bom se ficasse só nisso mesmo. Agora faço uma pergunta: que obra grandiosa, alguma coisa de alvenaria ou qualquer tipo de prédio imponente foi construído aqui para que aja tanta exigência? Pelo que sei, os meninos foram procurar o senhor prefeito para pedir uma ajuda e ele nem quis recebê-los. Não ajudou e agora manda exigir em cima do que foi erguido. Do mesmo modo pergunto com respeito ao chamado para ir conversar com o senhor delegado: qualquer de vocês sabia que toda essa gente viria para cá hoje? Pelo que eu saiba, mesmo que houvesse sido marcada uma missa aqui, não haveria nenhuma necessidade de encaminhar ofício para que soldados viessem dar segurança ao ambiente ou evitar que os seguidores de São Marcos discutissem com os seguidores de São Mateus. Ou será que viriam enfrentar o exército de Pôncio Pilatos? De qualquer modo, são coisas que eu não consigo aceitar, principalmente porque, como diria o poeta Drummond, já querem colocar pedras no meio de nosso caminho. Eles certamente que são fortes e pensam que não somos nada. Ledo engano, pois onde houver comunhão e bondade, como ocorre neste barracão, podem chegar baionetas, exércitos e canhões que mesmo assim não amedrontarão...
E foi quando alguém gritou no meio do povo:
- E se eles quiserem mandar destruir o barracão?
Lucas, virando-se para o rapaz, respondeu:
- Eles conseguirão isso uma, duas, três, quantas vezes quiserem, mas não conseguirão destruir a vontade de reconstruir que sempre estará viva no coração desses meninos. Isso eles nunca destruirão.



continua...




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quarta-feira, 23 de junho de 2010

NOITES DO TEMPO (Crônica)

NOITES DO TEMPO

Rangel Alves da Costa*


Quando alguém quer falar sobre algo que aconteceu num passado distante, numa era já consumida pelas neblinas da idade ou naquilo que outrora aconteceu e que não se pode definir uma data, diz que isto ou aquilo se perdeu nas noites do tempo. Neste sentido, noites do tempo significaria o que já existiu e só é possível avistar na memória.
As noites dos tempos, secular estágio do que se foi, assombram pelo seu poder de estar presente em qualquer instante futuro, nos dias atuais, neste momento agora. E possui vozes, pois os clamores, a dicção angustiosa do passado, se expressam naquilo que a qualquer tempo chamamos de saudade, de lembrança, de recordação, de nostalgia, de pensamento do que foi um dia e não é mais. Daí serem doloridas e pesarosas as noites do tempo.
Hoje, ao cismar na janela e ver-se como numa viagem a um mundo distante no passado, o triste e solitário viajante nada mais faz do que caminhar os mesmos passos que um dia Cronos, o deus mitológico do Tempo, perseguiu para nortear seu destino infinito. Evoluindo sempre, porém evoluindo para o que, para onde, para chegar a qual estágio?
Um dia Cronos, com a foice afiada pela terra, cortou os testículos do pai Urano – que incessantemente fecundava sua mãe Gaia, a Terra - e impôs um reinado tão poderoso quanto o do seu genitor objetivando dar um andamento normal aos fatos e coisas, pois era o Tempo, e o tempo precisa evoluir dentro de uma normalidade. Contudo, o que se viu foi que o próprio Tempo, com sua insaciável fome devoradora da vida, com o seu ávido desejo de destruir para fazer renascer, nada mais fez do que propagar a instabilidade da vida, pois se percebeu a partir de então que nada é perene e tudo se consome.
Há alguma diferença entre o Tempo enquanto divindade mitológica que devora e quer mais e o tempo/vida que alimenta ilusões para depois devorar? Cronos, o Tempo, devorou seus próprios filhos, vivia desesperadamente cumprindo seu destino de regular a vida, revolucionar constantemente a natureza, e está provado que ainda hoje não conseguiu seus intentos, pois ele mesmo faz e ele mesmo destrói. Por sua vez, o tempo/vida, esse que se mostra no ontem e no hoje, fiel filho do outro tempo, nada mais faz do que temer que o seu pai venha lhe devorar, e por isso mesmo se antecipa aos fatos e vai destruindo tudo aquilo que egoisticamente se dizia sólido, indestrutível.
Verdade é que tudo na vida se fez refém do tempo. Das suas noites chegam as dores de um passado que atiça o lado mais perverso da memória, que é o de lembrar coisas tristes, e deixam em estado de constante instabilidade as situações, por temor de ser a próxima vítima, pelo medo de ser também devorado, pelo pavor de que lhe aconteça o indesejável.
Mas são as noites do tempo com os seus exemplos que nada mais são do que as lições que os seres humanos nunca têm tempo de aprender. Quanto se chega ao imaginado estágio do conhecimento, da sabedoria, da experiência pelos passos caminhados, então vem o tempo e chama para si tudo que se dizia existir. E então tudo volta a ser noite, nas noites do tempo.
Verdade é que as manhãs existem, a madrugada se vai, o mundo acorda, e vem o sol, os dias, as tardes, o entardecer, a penumbra, a noite e novamente a madrugada, tudo num percurso do tempo. E existem os segundos, os minutos, as horas, os dias, as semanas, os meses, os anos, os séculos, a história, e tudo num ciclo de tempo. E o que se colhe nisso e disso tudo, senão a certeza de ser um grão nessa imensidão que durará até chegar a fome do tempo. Daí que o falso brilho que temos hoje, amanhã, quando muito, será somente uma réstia de qualquer memória nas noites do tempo.




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O silêncio de Shakespeare (Poesia)

O silêncio de Shakespeare


Não questione Shakespeare
pois no amor está o amar
não há que duvidar

Se do impossível desejo
nasceu em nome do amor
o ódio e o rancor
e com a morte prevalecer a honra
de um coração apaixonado
que não pôde ser ouvido
mesmo em tardes de verão
não resta senão reconhecer
que faltou a palavra
que faltou o verbo
que faltou o falar
pois até as intrigas da corte
silenciariam para ouvir
a voz do coração

Questiono Shakespeare
por que teu amor foi tragédia
se tanto amor
se tanto desejar
se tanto ardor
poderia ser somente amor?



Rangel Alves da Costa

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 24

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 24

Rangel Alves da Costa*


Diante da surpresa do rapaz, as duas crianças se acercaram dele, Paulinho colocou a mão no seu ombro e falou:
- É que resolvemos fazer uma surpresa pra você. Achamos que ia gostar de ver o barracão que tanto trabalho deu a gente cheio de pessoas, e como você está vendo, parece que p número de visitantes é bem maior do que a gente esperava. Cuidamos tudo direitinho pra que você não percebesse, mesmo quando a gente estava aqui ajudando aquela pobre família durante a semana. Tudo já estava certo. O Padre Josefo queria falar mas nós impedimos. Os outros meninos se encarregaram de avisar às pessoas, enquanto eu e Maria viemos mais cedo pra organizar o barracão, mas parece que todos já chegaram também, pois já estou enxergando alguns por ali. Se quiser pode ficar um pouco mais por aqui, mas nós temos que ir lá verificar como andam as coisas no barracão enquanto o Padre Josefo não chega – Após dizer isso, chamou Maria e se prepararam para sair, quando foram chamados por Lucas:
- Venham aqui seus danadinhos. Não precisavam fazer uma surpresa tão grande não, mas que surpresa encantadora. Só vocês mesmo e antecipo que já estou muito grato por isso tudo, viu? Isso demonstra o quanto estão interessados pela obra de vocês e a responsabilidade que passaram a ter para que tudo desse certo. Muito obrigado mesmo meus filhos. Agora vamos lá ver o que tem a fazer para que tudo dê certinho. Vamos... – E saíram em direção ao barracão.
Assim que o padre chegou num seu veículo caminhante tudo já estava organizado, porém com um pequeno problema ainda a ser solucionado. Com efeito, diante do número de pessoas que se aglomeravam ao redor – pessoas até mesmo estranhas na cidade, turistas ou viajantes, talvez – certamente que a missa não deveria ser realizada no barracão. Somente sendo três vezes maior para caber o número de fiéis ali presentes. De qualquer modo, a palavra final caberia ao sacerdote.
Quando desceu do veículo, que parecia já abrir a porta por conta própria, o homem da igreja ficou com os olhos brilhando de alegria. Contudo, intimamente demonstrava uma preocupação: a igreja não recebe tantos fiéis quanto os que estão aqui. Por quê?. Diante de tanta gente anunciou logo que o encontro pastoral seria realizado ali fora mesmo, diante e no meio da natureza, como uma forma de se aproximarem ainda mais de Deus. Falou sobre encontro pastoral e não de missa, demonstrando claramente que não queria que chegasse aos ouvidos da diocese que estava mudando de lugar o altar e o púlpito da igreja. Se soubessem disso seria repreendido, com certeza.
Desse modo, após rápidos preparativos e muito corre-corre dos meninos e de Lucas, diante de uma mesa rústica, bem diante da porta do barracão, o Padre Josefo começou a pregar. Inicialmente disse que não havia nenhuma pretensão em que considerassem aquilo como uma missa, pois não passava de um encontro onde um servo de Deus procuraria repassar ensinamentos ao seu rebanho. E acentuou bem que havia decidido proferir um sermão sobre a importância da ajuda do povo aos mais necessitados, tendo por base a grande generosidade de Deus perante todos. Então, o exemplo divino deveria recair nas mentes daquelas pessoas para que seguissem o caminho da generosidade para com o próximo, principalmente os afligidos pelas forças das circunstâncias.
Como introdução, falou sobre a família que naquela semana havia pernoitado naquele barracão, as circunstâncias pelas quais chegaram ali e a importância da ajuda do povo também pobre para que seguissem seu destino. Após isso, reverenciando sempre e colhendo das palavras contidas na bíblia, citou passagens de diversos livros e evangelistas, e tudo como forma de expressar a ideia da importância de servir aos mais necessitados. E assim falou:
"O dinheiro não é tudo na vida, como está em Provérbios, dizendo que há quem se faça rico, não tendo coisa alguma; e quem se faça pobre, tendo grande riqueza. O resgate da vida do homem são as suas riquezas; mas o pobre não tem meio de se resgatar.
Deus, meus irmãos, não se omitiu em honrar os pobres. Neste sentido é a lição extraída do livro de Tiago: Ouvi, meus amados irmãos. Não escolheu Deus os que são pobres quanto ao mundo para fazê-los ricos na fé e herdeiros do reino que prometeu aos que o amam?
Verdade é que Deus não esquece quem ajuda os pobres, pois está escrito: Bem-aventurado é aquele que considera o pobre; o Senhor o livrará no dia do mal. O que oprime ao pobre insulta ao seu Criador; mas honra-o aquele que se compadece do necessitado.
Em Isaías está bem claro meus irmãos: Porventura não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres desamparados? que vendo o nu, o cubras, e não te escondas da tua carne? Então romperá a tua luz como a alva, e a tua cura apressadamente brotará. e a tua justiça irá adiante de ti; e a glória do Senhor será a tua retaguarda. Então clamarás, e o Senhor te responderá; gritarás, e ele dirá: Eis-me aqui. Se tirares do meio de ti o jugo, o estender do dedo, e o falar iniquamente; e se abrires a tua alma ao faminto, e fartares o aflito; então a tua luz nascerá nas trevas, e a tua escuridão será como o meio dia. O Senhor te guiará continuamente, e te fartará até em lugares áridos, e fortificará os teus ossos; serás como um jardim regado, e como um manancial, cujas águas nunca falham.
Em Lucas enxergamos a preferência de Deus pelos pobres: Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados. Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque haveis de rir.
Por fim, que tenhamos em mente o que consta em Coríntios: O que semeia pouco, pouco também ceifará; e o que semeia em abundância em abundância também ceifará. Cada um contribua segundo propôs no seu coração, não com tristeza ou por necessidade; porque Deus ama ao que dá com alegria. E Deus é poderoso para tornar abundante em vós toda graça, a fim de que, tendo sempre, em tudo, toda suficiência, superabundeis em toda boa obra, conforme está escrito: Espalhou, deu aos pobres, a sua justiça permanece para sempre. Ora, aquele que dá a semente ao que semeia e pão para comer também multiplicará a vossa sementeira e aumentará os frutos da vossa justiça; para que em tudo enriqueçais para toda a beneficência, a qual faz que por nós se dêem graças a Deus".
Neste sentido tomou percurso o sermão do Padre Josefo, e ao final de suas palavras muitos que estavam por ali choravam por fora ou se penitenciavam por dentro.


continua...




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terça-feira, 22 de junho de 2010

Poema da Humildade (Poesia)

Poema da Humildade


Porque dizes que o mundo é teu
então vá e colha um coração
pois perdeste o sentimento por aí

E porque dizes que o mundo é teu
então corra e semeie a vida
porque a tua não é viver

E porque dizes que o mundo é teu
então apressaste para o encontro
pois a solidão te persegue

E porque dizes que o mundo é teu
então mostrai o que não tens
pois verá que te falta muito

E porque dizes que o mundo é teu
então usufrua desse todo ter
pois me alegra ter somente a Deus.


Rangel Alves da Costa

JULIETA E ROMEU (Conto)

JULIETA E ROMEU

Rangel Alves da Costa*


Há muitos anos atrás, naqueles idos onde as famílias portentosas enviavam os filhos para se formarem doutores na capital, quando as disputas políticas ditavam a vida nos sertões e inflamavam os sangues, os ódios e os rancores, e ainda quando os resquícios do coronelismo impunham o mando e o desmando sobre as pessoas e os cotidianos, existiam duas famílias no interior nordestino que, desafiando a lógica do seu tempo, resolveram se unir e tudo fazer para que os seus filhos levassem adiante um amor que parecia impossível. Ela se chamava Julieta e ele Romeu.
Diz-se do amor impossível porque os dois se odiavam, nenhum queria saber do outro desde pequenininhos, quando as famílias se visitavam em lautos almoços, chás e confraternizações, única e exclusivamente para ver se naqueles dois corações infantis nascia a semente da afeição, do despertar para o amor.
Assim, quando uma família chegava na imponente residência senhorial da outra e os senhores começavam a digerir as falsidades, a lastrear mentiras e a buscar esconder a todo custo os ciúmes e os ódios existentes, as mães procuravam juntar na mesma sala ou no mesmo local de brincadeira as duas criancinhas lindas.
Faziam isso e ficavam de canto de olho torcendo para que os dois se aproximassem com sorrisos, trocassem palavras amigas, gesticulassem afavelmente. Mas não. O que se via era um esculhambando o outro, jogando objetos entre si, fazendo tudo para se afastar daquela companhia.
Certa vez Julieta jogou um jarro na cabeça de Romeu que a testa do menino ficou com um hematoma que deu muito trabalho para curar. Para não ficar para trás, na visita seguinte Romeu prendeu a ponta do vestido de Julieta numa linha e a amarrou no rabo de um gato. A menina ficou sem roupa e chorou por três dias. Foi um deus-nos-acuda.
Como já observado, as duas famílias forjavam convivência pacífica, respeito mútuo e amizade simplesmente porque tinham interesses comuns. Na verdade, não se suportavam. Desde as primeiras gerações que ali colocaram os pés que a discórdia pontuava nas relações. Problemas envolvendo terras, usurpações de ambos os lados, inimizade política e os mais abomináveis meios para se firmarem como os mais poderosos aos olhos dos outros, tudo isso fazia com que tanto os Nabuco quanto os Monteiro vivessem em pé de guerra ao longo dos anos.
Buscava-se agora transformar a inimizade em uma aproximação forçada simplesmente pelo interesse financeiro, objetivando somar heranças na união dos dois filhos únicos das duas linhagens mais ricas da região. Assim, faziam de um tudo para que os dois, unindo corpos e corações, unissem também as moedas, os latifúndios, os inúmeros bens.
Como tudo fizeram para que o amor entre os dois germinasse longo na infância e jamais conseguiram tal intento, vez que desde que mundo é mundo quem manda no amor é o coração e não a arrumação, quando os dois chegaram à idade de estudar na capital, a primeira preocupação que surgiu para as famílias foi encontrar um meio para que eles não se desencontrassem por completo.
Assim, providenciaram para que as casas dos parentes onde os dois passariam a morar na capital fossem na mesma rua, no mesmo trecho e quase lado a lado. E mais: colocaram os dois no mesmo colégio, contrataram amigos para influenciar no esperado romance e começaram a pagar bem pago aos colegas dos dois para que colocassem naquelas duas cabecinhas que um havia nascido para o outro. Eram jovens, bonitos, vindos do mesmo lugar, de famílias ricas e amigas, enfim, com um enredo na ponta da língua para tudo dar certo. Mas não tinha jeito que desse jeito.
Julieta passava por Romeu e nem um só bom dia dava. Todas as vezes que sabia que poderia encontrar com ele mudava de rumo; se ele viesse por uma calçada ela passava para o outro lado. Um dia um professor passou um trabalho em equipe e Romeu preferiu tirar nota zero a aceitar a presença dela no grupo. Certa vez, sem querer, se bateram de frente numa esquina e o quarteirão todinho parou para ver a esculhambação entre ambos.
No interior, as famílias ficavam sabendo dos entreveros e passavam a se sentir cada vez mais desanimadas. Era despesa demais para tentar unir um casal que parecia cada vez mais inimigo. Quanto mais gastavam mais ficavam sabendo do ódio cada vez maior entre os dois. Não tinham mais o que fazer, e um dia tiveram a triste ideia de usar a forma mais abjeta para forjar situações, que é a mentira.
Assim, pagaram a peso de ouro para que simulassem cartas, um mandando para o outro, pedindo perdão pelo comportamento desastrado, dizendo que por trás daquilo tudo havia um amor incontido e implorando que fizessem as pazes para que o coração pudesse agir por conta própria.
Foi pior, pois Julieta tocou fogo na carta e jogou bem em cima de Romeu, quase dando causa a um incêndio de gravíssimas proporções. Por seu lado, para revidar, ele fez espalhar pela escola que ela tinha um caso com um padre. Foram parar na delegacia e as famílias tiveram que viajar até à capital para resolver o problema.
Por conta própria, ele resolveu ir morar num bairro bem distante na capital. Disse que não suportava mais morar perto daquela víbora. Saiu daquele colégio e decidiu se matricular num bem desconhecido e distante. Ela fez o mesmo, mas sem saber onde era a nova residência dele, acabaram pertinho um do outro novamente. Assim, de repente se viram estudando no mesmo local novamente. No outro dia ele fez as malas e foi embora para outro estado. Era o único jeito, concluiu.
Vendo que os planos haviam ido por água abaixo, tanto a família Nabuco como a Monteiro começou a acusar uma à outra pelo fracasso, dizendo que o compromisso que tinham não havia dado certo porque uma estava traindo a outra às escondidas, sem se esforçar o suficiente para que os dois enfim namorassem.
Acabou com o pai de Julieta passando a culpa na cara do pai de Romeu, que não gostou nada daquilo e por muito pouco não saiu troca de tiros. Daí por diante se tornaram inimigos de fogo a sangue, com todos os membros das duas famílias se ameaçando. O sertão nordestino se transformou num terreno sangrento novamente e se alastrou nas cruentas disputas políticas entre os Nabuco e os Monteiro.
Passados alguns anos, já formados doutores, eis que Julieta e Romeu voltam ao local de nascimento para exercerem a profissão. Eram médicos e tinham que mostrar seus conhecimentos para os eleitores e garantir os votos que dessem prevalência à família nas disputas eleitorais.
Deter o poder político na região era uma honra que nenhuma família tencionava em perder. Mas os velhos já estavam alquebrados demais pelo tempo para suportarem uma disputa eleitoral de peso. E foi aí que Julieta e Romeu foram lançados como candidatos. Inimigos de morte que eram, a disputa prometia ser de uma violência sem precedentes.
Terminadas as eleições, Romeu venceu por um voto. Vendo Julieta tristonha, fez renascer em seu íntimo um gesto humanitário e foi falar com ela, pedir desculpas por todas as agressões proferidas na disputa e dizer da alegria em ter concorrido com uma pessoa tão inteligente quanto ela. Julieta olhou nos olhos dele, deu apenas um sorriso e saiu.
Vendo tal cena, os membros das duas famílias logo imaginaram que um estava dizendo desaforo ao outro e foi todo mundo se armar para a guerra. Quando todos acorreram para a praça dizendo os maiores impropérios com a outra família, ameaçando de morte e chamando para a briga. Eis que chega Romeu e diz:
- Me sacrifiquei o tempo inteiro porque nunca quis ouvir o meu coração; sacrifiquei-me agora porque quis fingir que continuava ainda sem ouvir o meu coração; e decidi não mais me sacrificar. Eu quero é paz e vocês parecem amar a guerra; eu tenho outro amor, e não este de querer matar o próximo. Fui eleito mas ainda não assumi o cargo nem assumirei. Na verdade, esta eleição quem venceu foi Julieta que não levantou a voz sequer para dizer que roubamos nas urnas. E nós roubamos nas urnas. Por isso mesmo essa vitória é dela, por direito e justiça...
E foi quando se ouviu Julieta falar:
- Mesmo assim aceito sua vitória, com a condição de que não finjamos mais e trabalhemos juntos em nome desse povo sofrido.




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EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 23

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 23

Rangel Alves da Costa*


Com um mês de inauguração, com as portas sempre abertas para quem quisesse visitá-lo ou fazer parte de sua comunidade, o barracão havia se tornado ponto de encontro certo para as mais diferentes pessoas a qualquer hora do dia.
Chegavam pessoas das redondezas, que passando próximo ao local resolviam ver o que era aquela novidade; uma animada e barulhenta criançada vinda de todos os lugares; mocinhas e rapazes que marcavam seus encontros por aquelas bandas; inúmeros curiosos e pessoas querendo saber como funcionava e como participar; professores e alunos da mesma escola onde Lucas ensinava e de outras escolas; pessoas desconhecidas no lugar, que paravam os seus veículos e desciam para ver o que era aquilo; outros que ficavam por muito tempo sentados ou passeando ao redor, como se tivessem perguntas a fazer; pessoas alegres e tristes, sorridentes e até com lágrimas nos olhos, todos, de uma forma ou de outra, marcavam presença ali. Até viram um dia quando a diretora da escola chegou escondidinha e ficou admirada com o que viu.
Por dois dias e duas noites serviu como moradia e cama para um casal de retirantes que passava por ali e pediu para descansar um pouco enquanto seguia viagem. Foram expulso da terra onde trabalhavam, disseram. Depois de sete anos se dedicando feito escravos na fazenda do rico fazendeiro, um dia que uma cobra mordeu e matou uma novilha o patrão jogou a culpa no pobre rapaz e deu duas horas para que saíssem dali, com direito somente a levar a criança de colo e a trouxa de panos.
Reclamou seus direitos, falou sobre aquele tempo todo se dedicando com unhas e dentes à propriedade, e o que ouviu do homem foi que se não saíssem por bem sairiam por mal. E mandou no mesmo instante que um dos capangas os acompanhasse até a porteira da fazenda. Foi esse capanga que deu uns tostões para que comprassem um pacote de biscoito. Por fim esse mesmo capanga chamou o desempregado num canto e disse que não dava mais porque não tinha. Viu lágrimas nos olhos desse homem, que acabou confidenciando que mais cedo ou mais tarde o seu destino seria aquele também, se saísse dali vivo.
Contaram essa mesma história a Lucas, que antes de poder ajudar no que fosse possível, ofereceu pernoite à pequena família no barracão. Entregou algum alimento e disse que providenciaria o dinheiro da passagem para seguirem adiante. Perguntou aonde iriam e ouviu que pra qualquer lugar, vez que até chegarem onde suas famílias moravam era muito longe, com muitas estradas e perigos. Disseram que os seus parentes viviam nos confins da Amazônia, lá pra cima do Xingu, nos escondidos do mundo.
Assim que passaram por ali e souberam de tal fato, os meninos marcaram uma reunião urgente para resolver como ajudar ao casal e o menininho. Juntaram todas as economias, foram pedir o auxílio do padre, e entregaram a Lucas para fazer a destinação correta. Este comprou alguns alimentos e o restante confiou nas mãos de Jugurta, o pai de família, e desejou que todos tivessem as bençãos de Deus onde fizessem parada e arranjassem emprego. Despediram-se chorando, implorando aos céus que aquele rapaz e aqueles meninos tivessem muita paz e saúde na vida. Silenciosos, Lucas e os meninos não sabiam se sorriam ou deixavam cair de vez as lágrimas escondidas.
No encontro do sábado seguinte, marcado para acontecer após as dez horas da manhã, o que Lucas percebeu foi que logo a partir das sete horas pessoas já estavam passeando por ali, vendo se o barracão estava aberto para entrar, trazendo banquinhos de madeira ou de plástico e até cestinhas com alimentos. Ora, pensou Lucas, o que faz aqui todas essas pessoas da cidade que nunca se dispuseram a passear por aqui, será que marcaram uma reunião por essas bandas, uma festinha, um piquenique ou coisa assim. Viu casais passeando, namorados namorando, amigos conversando, crianças brincando. E viu a diretora se escondendo por trás de uma moita para não ser vista. Estranho, muito estranho isso, ficou pensando.
Lucas observava tudo da janela de sua casa. Só sairia de lá quando os meninos chegassem e pudessem dizer alguma coisa sobre aquelas pessoas que se aglomeravam por ali. Somente elas poderiam dizer alguma coisa, vez que sabem de tudo do acontecido e do que vai acontecer. E Paulinho e Maria foram os primeiros a chegar, correndo logo pra dentro da casa do rapaz.
- Tá vendo Lucas, todas essas pessoas que estão aqui é porque o Padre Josefo vai celebrar uma missa dentro do barracão. Se lá dentro não couber as pessoas vai ser aqui fora mesmo, na natureza. Como se diz, uma missa campal... – Disse Paulinho com os olhos brilhando de satisfação.
- Missa... hoje... aqui?... – Lucas quase não fala e nem pergunta.



continua...




Advogado e poeta
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