JULIETA E ROMEU
Rangel Alves da Costa*
Há muitos anos atrás, naqueles idos onde as famílias portentosas enviavam os filhos para se formarem doutores na capital, quando as disputas políticas ditavam a vida nos sertões e inflamavam os sangues, os ódios e os rancores, e ainda quando os resquícios do coronelismo impunham o mando e o desmando sobre as pessoas e os cotidianos, existiam duas famílias no interior nordestino que, desafiando a lógica do seu tempo, resolveram se unir e tudo fazer para que os seus filhos levassem adiante um amor que parecia impossível. Ela se chamava Julieta e ele Romeu.
Diz-se do amor impossível porque os dois se odiavam, nenhum queria saber do outro desde pequenininhos, quando as famílias se visitavam em lautos almoços, chás e confraternizações, única e exclusivamente para ver se naqueles dois corações infantis nascia a semente da afeição, do despertar para o amor.
Assim, quando uma família chegava na imponente residência senhorial da outra e os senhores começavam a digerir as falsidades, a lastrear mentiras e a buscar esconder a todo custo os ciúmes e os ódios existentes, as mães procuravam juntar na mesma sala ou no mesmo local de brincadeira as duas criancinhas lindas.
Faziam isso e ficavam de canto de olho torcendo para que os dois se aproximassem com sorrisos, trocassem palavras amigas, gesticulassem afavelmente. Mas não. O que se via era um esculhambando o outro, jogando objetos entre si, fazendo tudo para se afastar daquela companhia.
Certa vez Julieta jogou um jarro na cabeça de Romeu que a testa do menino ficou com um hematoma que deu muito trabalho para curar. Para não ficar para trás, na visita seguinte Romeu prendeu a ponta do vestido de Julieta numa linha e a amarrou no rabo de um gato. A menina ficou sem roupa e chorou por três dias. Foi um deus-nos-acuda.
Como já observado, as duas famílias forjavam convivência pacífica, respeito mútuo e amizade simplesmente porque tinham interesses comuns. Na verdade, não se suportavam. Desde as primeiras gerações que ali colocaram os pés que a discórdia pontuava nas relações. Problemas envolvendo terras, usurpações de ambos os lados, inimizade política e os mais abomináveis meios para se firmarem como os mais poderosos aos olhos dos outros, tudo isso fazia com que tanto os Nabuco quanto os Monteiro vivessem em pé de guerra ao longo dos anos.
Buscava-se agora transformar a inimizade em uma aproximação forçada simplesmente pelo interesse financeiro, objetivando somar heranças na união dos dois filhos únicos das duas linhagens mais ricas da região. Assim, faziam de um tudo para que os dois, unindo corpos e corações, unissem também as moedas, os latifúndios, os inúmeros bens.
Como tudo fizeram para que o amor entre os dois germinasse longo na infância e jamais conseguiram tal intento, vez que desde que mundo é mundo quem manda no amor é o coração e não a arrumação, quando os dois chegaram à idade de estudar na capital, a primeira preocupação que surgiu para as famílias foi encontrar um meio para que eles não se desencontrassem por completo.
Assim, providenciaram para que as casas dos parentes onde os dois passariam a morar na capital fossem na mesma rua, no mesmo trecho e quase lado a lado. E mais: colocaram os dois no mesmo colégio, contrataram amigos para influenciar no esperado romance e começaram a pagar bem pago aos colegas dos dois para que colocassem naquelas duas cabecinhas que um havia nascido para o outro. Eram jovens, bonitos, vindos do mesmo lugar, de famílias ricas e amigas, enfim, com um enredo na ponta da língua para tudo dar certo. Mas não tinha jeito que desse jeito.
Julieta passava por Romeu e nem um só bom dia dava. Todas as vezes que sabia que poderia encontrar com ele mudava de rumo; se ele viesse por uma calçada ela passava para o outro lado. Um dia um professor passou um trabalho em equipe e Romeu preferiu tirar nota zero a aceitar a presença dela no grupo. Certa vez, sem querer, se bateram de frente numa esquina e o quarteirão todinho parou para ver a esculhambação entre ambos.
No interior, as famílias ficavam sabendo dos entreveros e passavam a se sentir cada vez mais desanimadas. Era despesa demais para tentar unir um casal que parecia cada vez mais inimigo. Quanto mais gastavam mais ficavam sabendo do ódio cada vez maior entre os dois. Não tinham mais o que fazer, e um dia tiveram a triste ideia de usar a forma mais abjeta para forjar situações, que é a mentira.
Assim, pagaram a peso de ouro para que simulassem cartas, um mandando para o outro, pedindo perdão pelo comportamento desastrado, dizendo que por trás daquilo tudo havia um amor incontido e implorando que fizessem as pazes para que o coração pudesse agir por conta própria.
Foi pior, pois Julieta tocou fogo na carta e jogou bem em cima de Romeu, quase dando causa a um incêndio de gravíssimas proporções. Por seu lado, para revidar, ele fez espalhar pela escola que ela tinha um caso com um padre. Foram parar na delegacia e as famílias tiveram que viajar até à capital para resolver o problema.
Por conta própria, ele resolveu ir morar num bairro bem distante na capital. Disse que não suportava mais morar perto daquela víbora. Saiu daquele colégio e decidiu se matricular num bem desconhecido e distante. Ela fez o mesmo, mas sem saber onde era a nova residência dele, acabaram pertinho um do outro novamente. Assim, de repente se viram estudando no mesmo local novamente. No outro dia ele fez as malas e foi embora para outro estado. Era o único jeito, concluiu.
Vendo que os planos haviam ido por água abaixo, tanto a família Nabuco como a Monteiro começou a acusar uma à outra pelo fracasso, dizendo que o compromisso que tinham não havia dado certo porque uma estava traindo a outra às escondidas, sem se esforçar o suficiente para que os dois enfim namorassem.
Acabou com o pai de Julieta passando a culpa na cara do pai de Romeu, que não gostou nada daquilo e por muito pouco não saiu troca de tiros. Daí por diante se tornaram inimigos de fogo a sangue, com todos os membros das duas famílias se ameaçando. O sertão nordestino se transformou num terreno sangrento novamente e se alastrou nas cruentas disputas políticas entre os Nabuco e os Monteiro.
Passados alguns anos, já formados doutores, eis que Julieta e Romeu voltam ao local de nascimento para exercerem a profissão. Eram médicos e tinham que mostrar seus conhecimentos para os eleitores e garantir os votos que dessem prevalência à família nas disputas eleitorais.
Deter o poder político na região era uma honra que nenhuma família tencionava em perder. Mas os velhos já estavam alquebrados demais pelo tempo para suportarem uma disputa eleitoral de peso. E foi aí que Julieta e Romeu foram lançados como candidatos. Inimigos de morte que eram, a disputa prometia ser de uma violência sem precedentes.
Terminadas as eleições, Romeu venceu por um voto. Vendo Julieta tristonha, fez renascer em seu íntimo um gesto humanitário e foi falar com ela, pedir desculpas por todas as agressões proferidas na disputa e dizer da alegria em ter concorrido com uma pessoa tão inteligente quanto ela. Julieta olhou nos olhos dele, deu apenas um sorriso e saiu.
Vendo tal cena, os membros das duas famílias logo imaginaram que um estava dizendo desaforo ao outro e foi todo mundo se armar para a guerra. Quando todos acorreram para a praça dizendo os maiores impropérios com a outra família, ameaçando de morte e chamando para a briga. Eis que chega Romeu e diz:
- Me sacrifiquei o tempo inteiro porque nunca quis ouvir o meu coração; sacrifiquei-me agora porque quis fingir que continuava ainda sem ouvir o meu coração; e decidi não mais me sacrificar. Eu quero é paz e vocês parecem amar a guerra; eu tenho outro amor, e não este de querer matar o próximo. Fui eleito mas ainda não assumi o cargo nem assumirei. Na verdade, esta eleição quem venceu foi Julieta que não levantou a voz sequer para dizer que roubamos nas urnas. E nós roubamos nas urnas. Por isso mesmo essa vitória é dela, por direito e justiça...
E foi quando se ouviu Julieta falar:
- Mesmo assim aceito sua vitória, com a condição de que não finjamos mais e trabalhemos juntos em nome desse povo sofrido.
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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