EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 15
Rangel Alves da Costa*
Mesmo não sendo o local mais adequado para uma boa noite de sono, dormiu ali como se estivesse com o corpo cansado que deita na mais confortável das camas. Despertou cedinho, por volta das cinco horas da manhã, como costumeiramente fazia. Só que acordou assustado, procurando entender porque havia passado a noite e dormido naquele local, sem estar completamente deitado e com uma bíblia no colo.
Mais estranho ainda achou ver a porta entreaberta e as luzes acesas, com parte do chão da sala ainda um pouco molhado dos pingos da chuva que ainda caía de mansinho. Lembrou bem da noite passada, do encontro inesperado com o padre, das conversas que mantiveram, de ter ido até à igreja com o sacerdote e também da chuva persistente que caía, mas não atinava para os motivos que fizeram com que adormecesse na poltrona da sala, com o seu quarto estando bem ao lado, e principalmente o fato de ter deixado a porta aberta numa noite de chuva. Agora não adiantava relembrar tudo isso, restando somente despertar de vez para o dia ainda escurecido pela chuva que se iniciava.
Naquela manhã estava difícil de fazer sua caminhada matinal como costumava fazer. Estava difícil. O tempo ainda chuvoso não deixava. Há muito que não via cair da tanta água de uma só vez, pensou. Mas o lugar estava precisando, pois o povo já temia que naquela época de preparar a terra e plantar tudo ainda estivesse tão seco. Chuva naquele lugar era como sangue que devia escorrer pelas veias da terra e molhar os sonhos de sobrevivência, de produzir o alimento para viver com dignidade, de cuidar das plantas e animais, de ter água limpa para consumir. Ainda bem que a chuva chegou, ficava imaginando enquanto tomava uma xícara de café. Bastava ver adiante e tudo estava bonito, com aquele cheiro forte e misterioso de terra molhada e a natureza dando seus sinais de satisfação com os seus sons inconfundíveis. Que bela é a vida, quanta beleza nessa natureza alimentada que canta feliz.
Pegou sua mochila com material de trabalho, abriu o guarda-chuva e saiu. A escolinha onde daria aulas naquela manhã era próxima, nem bem uns dez minutos caminhando. Se fosse ainda um pouco mais longe acharia melhor, pois gostava de andar observando as novidades apresentadas em cada manhã. Mas nada de novo naquele dia, a não ser a chuva que continuava caindo e pessoas olhando a vida por trás das janelas e das portas entreabertas. Até que percebeu um menino aparecer correndo em sua direção, já completamente molhado e com ares de seriedade. Era um dos seus alunos, logo reconheceu. "Mas o que foi que houve Paulinho, para estar correndo desse jeito nessa chuva?", perguntou, puxando o menino para debaixo do guarda-chuva.
- Professor, professor, a diretora da escola mandou o vigia avisar que o senhor não vai ensinar mais lá não porque o senhor foi despedido. Foi mesmo professor? – Indagou o arfante menino, para surpresa de Lucas.
- Mas que história é essa Paulinho? Não sei de nada disso e não fui informado de nada, a não ser pelo que você está me dizendo agora. Mas vamos até lá para sabermos disso direito.
Assim que se aproximaram do pequeno prédio que servia como escola, Lucas percebeu que os seus alunos estavam reunidos bem em frente, em plena chuva, talvez esperando que ele chegasse. A primeira coisa que fez foi mandar que entrassem imediatamente, sob pena de ficarem gripados ou com outras doenças. Teve até que falar mais alto para que atendessem. E assim que ele mesmo entrou na escola junto com Paulinho, o vigia se aproximou e falou:
- A diretora mandou dizer que não vem hoje por causa dessa chuva, está se cuidando para uma festa e não pode nem pensar em molhar hoje os cabelos, mas mandou também lhe dizer que o senhor perdeu o emprego de professor, que não precisa mais vim aqui para ensinar não, bastando que passe na prefeitura para acertar suas contas. Até mandou que lhe entregasse esse bilhete aqui, tome – Foi o que disse o vigilante, logicamente fazendo apenas o que mandaram que fizesse.
Lucas, cercado pelos alunos que não paravam de reclamar, abriu o bilhete e leu, primeiro baixinho e depois em voz alta: "Escola é lugar para ensinar o bê-a-bá e não para ser bonzinho demais e nem querer ser pai dos alunos. Se quiser repassar suas lições de vida que vá ensinar em outra freguesia. A direção".
"O que isso quer dizer, professor?", perguntou em seguida um dos alunos. Lucas dobrou o bilhete e o devolveu ao vigia, depois chamou as crianças para um canto e pediu que ouvissem com atenção o que tinha a dizer.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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