SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 26 de junho de 2010

DIÁRIOS DA SOLIDÃO (Crônica)

DIÁRIOS DA SOLIDÃO

Rangel Alves da Costa*


Deserto da Judéia, sexta-feira, num tempo muito distante: Fui enviado para este deserto pelo Espírito Santo onde, em meio ao frio e ao calor, ventanias e tempestades de areia, sendo constantemente tentado pelo inimigo que quer ver a todo custo onde estão as minhas fragilidades, estou em jejum já perto dos quarenta dias e quarenta noites e mesmo assim me sinto fortalecido de espírito. A solidão não me atrapalha nem entristece, pois nunca estamos sós em lugar algum, pois são muitas as presenças do desconhecido e do conhecido que não quer aparecer. Estou cumprindo o Plano de Deus, e isto já serve como maior conforto e alento, pois certamente ainda terei muitas obras a fazer pela vida, e todas em nome do Homem e para o homem.
Tsou, China, quinta-feira, 470 a. C.: Verdade é que a minha linhagem nobre e meus pais e os muitos irmãos, e sou o mais novo dentre todos, não conseguiram me segurar no berço familiar. Preferi, como sempre prefiro, vagar pelos reinos com meu jeito humildade de ser. Abdiquei de qualquer bem material para viver onde encontro abrigo e onde me doam algum tipo de alimento. Contudo, na minha fragilidade não pensem que não estou vendo as hostilidades com que os soberanos tratam os seus súditos e as práticas nefastas que humilham ainda mais os mais humildes. Busco, em tudo que faço, que seja garantido a cada um o direito de viver segundo seus pensamentos e em harmonia consigo mesmo, através dos princípios do ren (humanidade), li (cortesia), zhi (sabedoria), xin (integridade), zhing (fidelidade) e yi (honradez).
Bodh Gaya, Índia, quarta-feira, 576 a. C.: Desde os vinte e nove anos que me ausentei do conforto e da suntuosidade do palácio do meu pai, o rei Suddodhana, e agora, já com mais de trinta e cinco anos, suponho, que procurei refúgio embaixo dessa figueira onde vivo a meditar em busca de iluminação para encontrar respostas para as dores do mundo e ajudar as pessoas a encontrarem felicidade através das boas ações. Há muitos dias que uma cobra Naja me importuna, fazendo tentações em nome do mal, do mesmo modo surgem outras aparições buscando me enveredar por outros caminhos. Mas nesta solidão aprendi que toda iluminação é fruto da persistência. Persistirei até alcançar meus objetivos.
Caverna do Monte Hira, Meca, segunda-feira, ano 610: Estou com quarenta anos e já cansado das muitas viagens na minha vida de mercador. Os negócios enriquecem os bolsos, mas nenhuma fortuna faz chegar ao espírito. Aqui nessa caverna, na solidão dessa vastidão de montes, venho meditar sempre guiado por uma força superior que me faz crer que serei escolhido para uma longa e difícil missão, vez que serei desacreditado até mesmo pelo meu povo. Ontem me apareceu o Anjo Gabriel e trouxe consigo uma mensagem difícil de acreditar, dizendo que serei o último profeta enviado por Deus. As escolhas divinas não podem ser ignoradas, por isso mesmo estou disposto a cruzar os desertos cumprindo o que me foi confiado.
Nova Delhi, Índia, quarta-feira, 1915: Não faz muito tempo que regressei da África do Sul, onde em meio a tantas barbaridades impostas pelos colonizadores britânicos na região, consegui esforçar-me o que pude para defender os direitos dos hindus ali vivendo em total menosprezo. Já de volta à minha terra, vejo-me diante dos mesmos problemas e dos mesmos agressores. Minhas armas eles já conhecem, pois não passam do diálogo, da busca da pacificação através do entendimento, da luta pelo reconhecimento dos direitos com desprezo a qualquer forma de violência. Como leitura que me fortalece, tenho cotidianamente no amanhecer O Sermão da Montanha e o Baghavad-Gita, cujas palavras são como sopro de ânimo para continuar lutando pela total independência do meu povo. Viver como estranho na própria terra é como a solidão na alegria da família.
Igreja dos Capuchinhos, Aracaju, 26 de junho de 2007: Eis-me aqui, Senhor, humilde servo para dizer apenas que hoje, nesta noite, mesmo após ter feito durante o dia tudo aquilo que me agrada e agrada à minha, que é a Vossa Igreja, e tendo ouvido os aflitos, ajudado os carentes e celebrado a vossos ensinamentos, não sei bem porque mas me sinto triste e solitário. Eis que me vem uma criança pedinte e me pergunta o que fazer para falar com o Senhor. E respondi que isto somente seria possível através da oração, e foi quando ela me disse que sabia um jeito melhor de fazer isso. Então perguntei qual era e ela respondeu: Não sei se é assim, mas todas as vezes que peço alguma coisa e a pessoa me dá de bom coração, eu acho que o Senhor está me ouvindo.




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: