EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 31
Rangel Alves da Costa*
Mesmo antes de entrar na igreja, lá dentro os anjos dispersos pelo ar se reuniram imediatamente para comentar sobre sua chegada. Era um silencioso bater de asas que iluminava, mesmo em pleno dia, todo o templo cristão, com as vozes dos querubins, serafins e seres espirituais de toda ordem se elevando pelo ambiente e se espalhando pelas distâncias. Aquietaram-se em silêncio, olhando em sua direção, assim que Lucas entrou. Reverenciaram amigavelmente os outros dois anjos que acompanhavam o rapaz, que eram o seu anjo da guarda e o anjo superior que ainda estava cumprindo sua missão especial.
Ajoelhado no centro da igreja e sua solidão de fiéis, orando a oração que o Senhor ensinou, distante do mundo presencial naquele momento, após alguns instantes sentiu uma mão tocar-lhe o ombro. Levantou o olhar ainda contrito e enxergou o Padre Josefo ao seu lado. "Desculpe interromper suas orações, mas sei que bastam suas invocações de fé neste coração grandioso. Como vai Lucas?", se apresentou o amigo.
Lucas levantou com um sorriso nos lábios e fez uma rápida reverência ao religioso, sendo repreendido por este e convidado a se dirigir até à sacristia, onde poderiam conversar mais calmamente e sem interrupções de pessoas que poderiam chegar a qualquer instante.
Padre Josefo sentiu logo no semblante do rapaz que este não estava ali somente para uma visita ao templo e a ele. O próprio Lucas havia dito várias vezes que a sua igreja estava dentro de si, o que significava que os seus problemas religiosos a ele mesmo eram confessados e resolvidos. Achava bonito isso, essa ideia de que a religião e a fé são feitas pelo próprio homem, dentro de si, e não externamente, através da ritualização forjada nas igrejas e catedrais da vida.
Era padre e se sentia até estranho por pensar assim, porém o seu íntimo confirmava que as coisas de fé estão muito além de uma missa ou de um testemunho. A missa é o próprio homem e os seus caminhos diante das dificuldades em busca da proteção e salvação divinas. E o seu testemunho é a sua voz, o seu canto, o seu dizer interno, com os seus gritos de alegria ou de pavor. Mas a verdade é que Lucas estava ali e era preciso ouvi-lo, sem necessariamente dizer que tinha problemas e precisava relatá-los para que soluções pudessem ser encontradas.
- Depois daquele pânico com a chuvarada toda e da rápida visita que fiz, já faz algum tempo que não vou até o barracão. Como vão as coisas por lá Lucas, e como está você? – Perguntou o Padre Josefo, se servindo de um pequeno cálice de vinho, já oferecido ao rapaz e agradecido por este.
- Como dizem as palavras bíblicas, em verdade em verdade vos digo... – E contou tudo, desde os estranhos que chegaram destruindo parte do barracão e deixando avisos, até a ida até a delegacia e à prefeitura, relatando minuciosamente a conversa com o prefeito e a proposta recebida, bem como o encontro com a diretora.
E o Padre Josefo, sem demonstrar reação alguma de surpresa ou temor, foi logo falando:
- Nada disso me surpreende meu caro Lucas, nada disso é algo novo debaixo desse sol. Os ensinamentos bíblicos são claros ao nos revelar que o inimigo não quer ver ninguém construindo nada, erguendo o menor alicerce de felicidade, querendo subir pela vida pelos próprios esforços, e fazendo o bem muito pior. Contudo, o que me é estranho é que começaram a agir cedo demais, sem esperar ao menos se aquele humilde projeto de vocês vingaria. Certamente eles querem se antecipar aos fatos, começando a destruir pela raiz, mas não conseguirão e por diversos fatores...
- E que fatores seriam estes, Padre Josefo – Perguntou Lucas, interrompendo.
- Inúmeros são estes fatores, porém nenhum pode ser nomeado, pois não existem em palavras, mas através das ações imperceptíveis de Deus. O Senhor já está agindo diante disso tudo, já está intercedendo ao seu modo. Não esperemos, porém, respostas imediatas, aqui e agora, pois ele age na conformidade do destino que ele mesmo criou para cada um e para todos. Por isso mesmo, não haveremos de nos espantar se hoje à noite, amanhã ou outro dia, o mesmo inimigo retorne e não se contente derrubar somente uma porta ou outra parede, mas sim todo barracão...
- Seria como diz parte daquele poema de Eduardo Alves da Costa, que é mais ou menos assim: "Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada..." – Disse Lucas.
- É isso mesmo, chama-se "No caminho, com Maiakóvski" e é uma maravilha de poema, devendo ser lido por inteiro e todos os dias. Existem poesias que são como palavras bíblicas, mas a própria Bíblia é um grande poema, épico, lírico. Sim, mas voltando ao assunto. Não nos espantemos também se, após derrubarem o barracão, quiserem amedrontar você. Por isso mesmo devemos estar precavidos contra tudo isso. Mas digo mais uma vez, por mais que façam jamais destruirão o plano maior de Deus para com você, e disso eu tenho certeza. Quantos templos, Lucas, não foram derrubados diante de Cristo para impedir que Deus se expressasse em sua força? Derrubaram os templos, porém nunca derrubaram o homem.
continua....
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário