PASSARIM
Rangel Alves da Costa*
A seca chegou de vez, mil sóis de ardências devoradoras acabaram com tudo, tudo esturricou, tudo acabou. O sertão sumiu e no seu lugar ficou um buraco chamado fim de mundo. Quando João saiu correndo com a família, de tanta pressa corrida trancou a porta, encadeou ferrolho e deixou o passarinho preso na gaiola. Sabiá ainda cantou pra ser lembrado, mas nem tiveram tempo de ouvir Sabiá. Coitado do passarim, iria cantar o que, iria testemunhar o que, iria comer o que, beber o que, viver de que?
Passarim barulhou, passarim espanou asas, cantou bem alto e bonito, mas não restava nem mais um pé de pessoa para ouvir passarim. Joãozinho, o moleque menorzinho ainda olhou pra trás pra lembrar passarim, mas puxaram o seu braço e cá ficou Sabiá. Levaram o cachorro, levaram o papagaio, levaram até a jiboia, mas esqueceram Sabiá passarim. Assim é ruim passarim, pois esquecimento de quem volta a gente até que aguenta, mas partida sem voltar mais é o que mais doi, e doi demais passarim.
A gaiola era velha, daquelas que se pendura no arame e deixa no alto da casa, balançando com o vento. Se ao menos desse ventania e abrisse a porta passarim voava, mas tudo fechado, sem vento pra assoprar, sem mão que mexa na tranca, sem bicho que arrombe porta, sem estranho pra chegar, é muito ruim passarim. E o pior, passarim, é que o caco de água na gaiola só tem um pinguinho, uma porção de milho pisado e um pedaço de fruta já podre. Preso na gaiola, esquecido do mundo, casa fechada, quase sem água, sem comida e sem esperança, o que será de passarim Sabiá?
Ainda entra um facho de sol pelo buraco na parede de taipa, ainda ouve bem longe qualquer coisa como vento que vai arrastando folhas e galhos e de vez em quando um zunido maior como se fosse chegar ventania. Mas nem isso passarim, nada que possa mudar aquela situação de tristeza e desilusão. E mais tarde tudo vai escurecer, vai chegar a noite, vai brilhar a lua e passarim nem pode avistá-la distante. E como doi passarim.
Já tava escuro naquele lugar, quando a noite caiu de vez empreteceu foi tudo e nem fantasma apareceu nas vistas de passarim. Sabiá dormia cedo, logo quando a galinha cantava no poleiro, mas naquela tarde não teve jeito de sono chegar e passarim se deitar. Pelo contrário, de olhos bem abertos na escuridão, voou de um lado pro outro pra ver se cansava, bateu as asas pra ver se afadigava, mas não tinha jeito. Tristeza aviva passarim, coração apertava em Sabiá, uma dor de morte começou a doer e pra não morrer ali passarim começou a cantar bem alto e cada vez mais estridente, e quanto mais cantava somente passarim ouvia e chorava. Passarim amanheceu assim, cantando e chorando.
Conheço alguém assim igualzinho a passarim. Só que do contrário de passarim Sabiá. Se tranca no quarto como se ali fosse sua gaiola, fecha a porta por dentro que é pra ninguém entrar, faz da janela aberta o cenário para ficar enxergando as nuvens, o sol, a noite, os destroços que passam voejando na ventania. Faz da janela a paisagem para inventar aos olhos aquilo que diz querer ter: alguém voltando pela estrada, uma igreja de portas abertas para os noivos entrarem, um enorme buquê de rosas com um cartão com o seu nome, um jardim todo florido, um rio de águas paradas, um córrego de águas azuis, um passarinho voando e pousando na sua mão com um bilhete no bico. Como é besta essa mulher passarinha, que bem poderia voar pela janela.
Tem gente que se entristece porque quer, vive se lamentando pela dor que planta e depois maldiz a vida, o viver e quem tudo criou. Fecha a porta porque quer, sofre porque quer, se diminui na fragilidade que se impõe. Passarim não. Passou a noite voando seu último voar de dois palmos, cantou bem triste e bem alto seu cantar gemido. Ninguém sabe se Sabiá vai sobreviver ou morrer, mas quem dera viver passarim, pra que os outros vejam em você o exemplo do quanto é bom ter liberdade para caminhar, para voar pela vida.
Advogado e poeta
e-mail: rangel-adv1@hotmail.com
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