EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 26
Rangel Alves da Costa*
Nas suas palavras, Lucas disse ainda da imensa alegria em ter recebido todas aquelas pessoas naquele humilde lugar e acentuou bem que um dos principais objetivos na construção daquele barracão era também possibilitar a todos que ainda não sabiam ler nem escrever uma oportunidade de receberem aprendizagem, pois ele mesmo teria a incumbência de ensinar a cada um, seja de que idade fosse, a magia e o encantamento que estão por trás das palavras.
Terminada aquela pequena programação e quando se esperava que todos os visitantes retornariam para suas casas, o que se viu foi que grande parte dos que estavam ali resolveram ficar por mais tempo, ora se oferecendo para ajudar no que fosse preciso, ora apreciando a natureza ao redor ou sentados em grupos pelo chão ou dentro do barracão jogando conversa ou apreciando uma bebida com algum alimento. Somente quando começou a escurecer é que as últimas pessoas deixaram de vez os arredores da rústica construção.
Na casa de Lucas, após a cerimônia religiosa e os testemunhos proferidos, aos poucos foram se reunindo o próprio Lucas, o Padre Josefo e os meninos. Estavam ali porque era impossível conversar sobre os acontecimentos daquela manhã no barracão, vez que completamente tomado pelos visitantes e curiosos. Mas tanto ver o que ali, se nada mais existia do que quatro paredes arranjadas e alguns tamboretes de três pernas? Perguntava Paulinho aos amigos. Estão vendo no quase nada o tudo que nunca imaginaram existir, sintetizou o sacerdote. E ao final concluíram que aquela manhã havia sido um grande sucesso em todos os aspectos, mesmo com as exigências absurdas da prefeitura e da delegacia.
Quando Lucas trancou as portas do barracão já havia escurecido. Todos já haviam ido embora e estava sozinho nos últimos afazeres do dia. O tempo havia se modificado de repente. O dia inteiro que foi de sol e nuvens azuis pelo céu, a partir do entardecer começou a ter feições de que iria chover. Quanto o vento começou a soprar mais forte, zunindo pelos descampados e espalhando folhas secas pelo ar, não durou muito e a escuridão do céu veio carregada de nuvens pesadas de chuvas. E de repente ouvia-se o barulho da chuva caindo bem forte, intensa e acompanhada de vento assustador.
Na varanda de sua casa, mesmo estando prestes a ficar todo molhado, Lucas permanecia em pé com uma xícara de café quente na mão. Enquanto sorvia, com o rosto molhado pelos pingos que chegavam até ali, ficava olhando para o barracão e se perguntando se suportaria aquela verdadeira tempestade. A chuva forte não causava tanta preocupação; o problema era saber se a frágil construção de ripas e palhas iria suportar a força da ventania. Bastava que a ventania começasse a mover um pouco da cobertura também de palhas e num instante tudo iria pelos ares. Aquele, sem dúvidas, era um teste de arrepiar, pensava.
Uma hora da manhã e a chuvarada ainda continuava incessante. Agora fazia frio e o vento não parava de soprar, só que agora com menos força. Lá fora a escuridão era de não enxergar palmo adiante, de não dar um passo sem tropeçar nas pedras e sem afundar nas poças d'água. Outros bichos não, que estavam recolhidos em suas tocas, mas cobras certamente que boiavam pelas águas rasas à espreita de qualquer presa. Nessas horas adoravam um calcanhar desprevenido.
Duas horas da manhã e Lucas ainda ali, sem sono e preocupado com a situação do barracão diante daquela molhação toda. Ainda bem que não estava acompanhada de raios e trovões, bastava a ventania, ficava imaginando. Foi quando decidiu ir deitar assim mesmo, sob pena de na manhã seguinte estar todo indisposto para as muitas lides que tinha de enfrentar. Mas não iria dormir, talvez até porque não conseguisse, se não fosse primeiro dar uma olhada mais de perto no barracão.
Calçou uma galocha, que é uma espécie de botina de borracha que vai até próximo ao joelho, pegou um guarda-chuva e uma lanterna e foi seguindo cuidadosamente até a construção, onde começou a iluminar de cima abaixo nas partes laterais para ver se tudo ainda estava em pé. Tudo normal, sem maiores estragos, pensou. Nada que não possa ser reparado depois sem maiores problemas. Contudo, ao iluminar a parte frontal, na entrada, percebeu que uma das portas estava entreaberta.
Não podia ser, pois tinha certeza que havia fechado tudo antes de ir para casa. Ficou intrigado com a descoberta. Talvez tivesse sido a força do vento ou até mesmo que ele tivesse esquecido de fechar mais cuidadosamente aquela porta. De qualquer forma, já que estava ali, resolveu entrar para ver como as coisas estavam por dentro. E assim que entrou percebeu uma luz em forma de gente bem atrás da mesinha que serviu de altar, e animais deitados, se protegendo da chuva, por todo o chão do barracão.
continua...
Advogado e poeta
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