SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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terça-feira, 8 de junho de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 9

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 9

Rangel Alves da Costa*


Antes de responder ao então nervoso sacerdote, Lucas se dirigiu até a porta, abriu e deixou que o vapor de chuva entrasse e até que pingos chegassem arremessados pelo vento. Já havia trocado a roupa molhada, mas não importava em se molhar novamente. E assim ficou por algum instante, com a chuva chegando até onde estava, para a preocupação do inesperado visitante. Sabia que tinha uma resposta a dar, mas não se preocupava que ele aguardasse um pouquinho. Até que o padre falou novamente: "Acho por bem sair daí, pois essa chuva pode não lhe fazer bem". Parece até que estava somente esperando ouvir isso, pois em seguida virou-se de rosto molhado e começou a falar:
- Como foi mesmo a sua indagação, meu senhor? Ah!, lembro, perguntou-me como é o templo de fé que tenho erguido em meu coração, não foi isso mesmo? Pois bem. Está vendo e sentindo toda essa chuvarada que cai lá fora e até aqui dentro nessas goteiras, que molhou o meu rosto e a minha roupa, que está molhando a terra, jorrando pelas ruas e campos, inundando tudo, fazendo tremer animais sem abrigo, fazendo com que outros estejam recolhidos mesmo que não tenham a consciência exata dos motivos, e que até permitiu, por uma dessas interferências superiores, que o senhor estivesse aqui neste momento, justamente procurando abrigo? Pois saiba que nisso tudo estará a minha resposta...
- Não estou compreendendo meu rapaz, queira ser claro, por favor – O padre buscava entender o que Lucas estava dizendo, já temendo que este o colocasse numa situação difícil.
- Sim, serei claro meu bom homem da igreja. Perguntou-me sobre o templo de fé que tenho erguido no meu coração e que afirmei que é mais poderoso e importante que uma igreja, a sua igreja ou qualquer outra igreja. E perguntei se estava sentindo toda essa força da chuva que cai, não foi isso mesmo? Pois direi que a igreja do mundo, a igreja enquanto templo de fé que todos procuram por devoção a Deus é a que está aqui dentro se protegendo da chuva, sabendo que ela existe mas que não quer suportar seus efeitos, enquanto que a igreja que existe em meu coração é aquela que se molha, que está viva e que me faz sentir seus efeitos...
O Padre Josefo quase dá pulos no sofá onde estava sentado, e logo interrompeu Lucas para perguntar:
- Então dizes da fragilidade da minha igreja, da igreja do povo, do templo do Senhor, é isto mesmo?...
- Com todas as letras. Existe uma igreja passiva, inerte, que apenas procura se proteger e não age, não sente o que tem de sentir com os fiéis, que é a sua igreja, e existe uma igreja viva, que fala, que sente, que molha, que reclama ação e devoção, que é a minha, mas que pode ser também a de qualquer um que tenha realmente fé em Deus e nos seus ensinamentos...
A essa altura, o padre abanava-se, estava totalmente ruborizado, só faltava desmaiar ali mesmo sentado. "De onde tiraste estas ideias, meu filho?", perguntou quase que sem fôlego. E Lucas imediatamente respondeu:
- Não são ideias, mas sentimentos; não são palavras por palavras, mas verdades incontidas; não são ilações, mas a prova do que diz o coração. A minha igreja, esta que guardo aqui dentro, é verdadeiramente a única onde está toda a crença, toda a fé, todo acreditar que Deus realmente existe e que dos seus ensinamentos podemos realmente transformar o mundo, mover pedras e montanhas, transformar a sabedoria em algo útil, transformar as ideias em realidades visíveis, palpáveis e que tragam benefícios a todos. E esta igreja, este vivo templo que está em meu coração, está também em cada um que pretenda simplesmente abrir as portas para a sua existência. E me desculpe meu bom pastor, mas a igreja da qual faz parte, que não passa de uma construção física regrada por ordens humanas superiores, bulas e proibições vaticanas, não passa de uma encenação, de uma ilusão confirmada nas vestimentas imponentes, nos rituais inacessíveis, nos temores que são infundidos, na ideia de pecado na qual está fundamentada. Nada mais é do que uma igreja que só tem valia para os que fazem parte do seu meio, pois conduzida como se fosse um negócio, um comércio de almas, mas que não tem nenhuma validade prática, pois, reafirmo, não é viva, não está nas ruas ouvindo, sentindo os clamores do povo e vendo seu sofrimento, não estende a mão para ajudar e nem acolhe os necessitados dentro do seu espaço como deveria. Direi mais: a vossa igreja só existe enquanto instituição religiosa, burocrática e egoísta, e jamais como um espaço de vida onde todos possam verdadeiramente encontrar o Senhor. Por isso mesmo é que cada um deve seguir, acima de tudo, a igreja que está erguida dentro do próprio coração.
Lucas gostaria que o padre tivesse ouvido claramente o que tinha dito, para refutar se quisesse, mas não, pois quando olhou para o religioso percebeu que ele estava desmaiado. Não havia suportado ouvir as suas últimas palavras.


continua...



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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