SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 11 de junho de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 12

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 12

Rangel Alves da Costa*


Naquele diálogo instigante nem percebiam o quanto a noite avançava rapidamente. Através da porta aberta e do surgimento de outros barulhos que não somente os dos pingos da chuva, o Padre Josefo pôde observar que a chuvarada forte agora se resumia a um suave molhar. Decidiu que era o momento de ir embora, seguir adiante em busca dos aposentos da sua igreja. Por mais que Lucas insistisse para que passasse a noite ali, pois lhe garantiria uma cama confortável para descansar tranquilamente, o sacerdote resolveu partir, afirmando que teria de levantar muito cedinho para resolver muitas coisas, principalmente procurar um mecânico para consertar o carro que estava quebrado nas proximidades.
Depois de muita insistência, Lucas conseguiu que ao menos o sacerdote aceitasse que ele o acompanhasse até a matriz da cidade. As ruas estavam desertas, o padre não saberia por onde seguir sem estar pedindo informações a um e outro, além de outras dificuldades próprias da noite, daí ser necessário aquele acompanhamento. Assim seguiram embaixo de guarda-chuvas, na noite molhada e povoada pelo coachar dos sapos nas brenhas do lugar.
À porta da casa paroquial, bem ao lado da igreja, o sorridente Padre Josefo agradeceu pela noite e pela ajuda, bem como pronunciou palavras de despedida que confirmaram as últimas que havia dito ainda na casa de Lucas: "Tenha certeza que és um rapaz iluminado e com um futuro muito promissor. Imploro ao bom Deus que continue te iluminando sempre e enlarguecendo os caminhos por onde deverás passar como um Lucas evangelista, com sua fé e sua igreja viva no coração, como bem dizes. Só peço que não esqueça desse amigo que sempre estará por aqui esperando sua visita e o seu auxílio na difícil condução de almas. Boa noite meu amigo e muito obrigado por tudo". Tantas outras foram as palavras de Lucas, e após dizê-las começou o caminho de volta.
Pelas ruas molhadas, em meio à chuva mais fina que insistia em cair, caminhava pensando como seria bom se aquele propósito da natureza servisse para transformar um pouco aquela dura realidade vivenciada principalmente pelas famílias mais pobres da cidade e das redondezas, nos povoados, fazendas, sítios e taperas de beira de estrada. Todos reclamavam demais da vida, da falta de oportunidades para trabalhar, das estiagens que eram muitas e impediam plantar e colher, da carestia dos produtos que sustentavam o de comer do dia-a-dia, da falta de comida, da violência por todos os lugares, das mazelas sociais que comprometiam a adolescência, da falta de perspectivas, da falta de um tudo talvez. Reclamavam da vida, mas reclamar da vida implicava em vivê-la com dignidade e procurando tirar o melhor proveito das oportunidades que surgissem, era o que pensava Lucas. O problema era que a vida parecia de cabeça pra baixo, difícil de ser compreendida e vivida. Em casos como estes o povo precisava reacender suas chamas da fé, suas certezas de que os seres que persistem na busca do melhor sempre serão agraciados pelas forças divinas, mesmo que para muitos fosse uma obrigação do Senhor colocá-los na vida e dar roupa passada e comida. Gente de pouca fé e de quase nenhum merecimento, era o que pensava Lucas. Mas fazer o que para transformar ao menos um pouquinho esse histórico de sociedade que achou conveniente viver entregue à própria sorte? As famílias, todos e cada um precisavam dar um outro significado à vida, pois não bastava simplesmente viver sem que se tire o melhor da vida que se tem, era o que pensava Lucas. Quem sabe se a chuva que caía e molhava tudo, alagava cidade e campo, carregava pra longe restos de coisas ruins, não traria um novo ar de esperança no dia seguinte. Nesse passo de tanto pensar, de repente já estava novamente na porta de casa.
Ao entrar, e pela primeira vez ter a certeza de que estava só e pela primeira vez saber que deitaria, dormiria e acordaria sozinho, sem ter ninguém para dar boa noite e dar um bom dia na manhã seguinte, percebeu que o sacerdote havia esquecido uma bíblia onde estivera sentado. Resolveu ler um pouco daqueles ensinamentos e ao abri-la aleatoriamente, sem nenhuma pretensão para tal, deparou-se exatamente com uma passagem do Evangelho de São Lucas:
"Todos os que o ouviam conservavam-no no coração, dizendo: Que será este menino? Porque a mão do Senhor estava com ele. Zacarias, seu pai, ficou cheio do Espírito Santo e profetizou, nestes termos: Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e resgatou o seu povo, e suscitou-nos um poderoso Salvador, na casa de Davi, seu servo (como havia anunciado, desde os primeiros tempos, mediante os seus santos profetas), para nos livrar dos nossos inimigos e das mãos de todos os que nos odeiam. Assim exerce a sua misericórdia com nossos pais, e se recorda de sua santa aliança, segundo o juramento que fez a nosso pai Abraão: de nos conceder que, sem temor, libertados de mãos inimigas, possamos servi-lo em santidade e justiça, em sua presença, todos os dias da nossa vida. E tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo, porque precederás o Senhor e lhe prepararás o caminho, para dar ao seu povo conhecer a salvação, pelo perdão dos pecados. Graças à ternura e misericórdia de nosso Deus, que nos vai trazer do alto a visita do Sol nascente, que há de iluminar os que jazem nas trevas e na sombra da morte e dirigir os nossos passos no caminho da paz. O menino foi crescendo e fortificava-se em espírito, e viveu nos desertos até o dia em que se apresentou diante de Israel".
E Lucas ficou pensando: o menino foi crescendo e fortificou-se no espírito, e viveu no deserto até que um dia resolveu caminhar por outras estradas. Ele mesmo ainda teria tempo de sair do deserto e caminhar novos rumos? Indagou a si mesmo e ficou pensando.


continua...




Advogado e poeta
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