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segunda-feira, 28 de junho de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 29

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 29

Rangel Alves da Costa*


Lucas passou a manhã inteirinha consertando os estragos. Sozinho, remexendo de um lado para o outro com uma maleta de ferramentas, puxando paus e movendo folhas e outros objetos, conseguiu aos poucos colocar tudo em ordem novamente. Teve que trocar muita coisa, mas era assim mesmo. Achou melhor ter sido assim, sem que ninguém tivesse aparecido por ali para fazer perguntas.
Não gostaria que os meninos ficassem sabendo do incidente, ao menos por enquanto. Com o Padre Josefo falaria mais tarde, quando fosse ao centro da cidade. Iria resolver logo os problemas criados pela prefeitura e pela delegacia. Talvez fosse até bom prestar uma queixa sobre o ocorrido, mas pensaria nisso depois. Sabia que existem coisas que é melhor relevar do que deixar rendendo, criando até mais problemas. Se ao menos soubesse nomes, tivesse visto quem fez aquilo, se as pistas deixadas fossem esclarecedoras. Mas não, apenas os estragos consumados e os avisos deixados. Estes guardariam sim, pois talvez tivessem grande utilidade mais tarde.
Assim, com tudo no seu lugar novamente, Lucas comeu qualquer coisa, descansou um pouco e depois rumou para o centro da cidade. Primeiro passou na delegacia, onde foi bem recebido pela autoridade policial que disse nem estar lembrado mais daquela intimação e que aquilo ali havia sido apenas um procedimento de praxe para evitar que as pessoas deixem de avisar à polícia todas as vezes que forem reunir grande número de pessoas. Sabendo com antecedência, alguns policiais são enviados para evitar tumultos.
Contudo, perguntou se ele tinha algum inimigo ou recebido alguma ameaça recentemente, vez que chegaram a procurar a delegacia para prestar um boletim de ocorrência dizendo que o barracão poderia colocar em risco a vida de pessoas que porventura estivessem dentro dele. Porém, como a delegacia não era competente para averiguar a segurança estrutural de nenhuma obra, deixou de receber a queixa. Neste ponto, Lucas perguntou quem teria sido, mas lhe foi respondido que o nome ou nomes não poderiam ser citados.
Seria o momento oportuno para falar sobre o ocorrido na madrugada, para prestar a queixa sobre a invasão e destruição e pedir providências. Contudo, resolveu silenciar e se dar por satisfeito na sua passagem ali pela delegacia. E assim que saiu de lá foi diretamente até a prefeitura resolver a questão sobre o licenciamento da obra. Obra, que obra? Grande construção aquela onde vândalos chegam e sem maiores esforços destroem o que querem. Caminhava se perguntando e imaginando.
Ao chegar à sede da prefeitura, nem bem entrou direito para perguntar onde era o setor competente para ser atendido e logo apareceu um almofadinha dizendo que o senhor prefeito desejava muito recebê-lo, e que por favor o acompanhasse. E assim, cercado por mil cordialidades, águas e cafezinhos, foi conduzido até o gabinete da autoridade municipal, o senhor prefeito, que o estava esperando de pé, com um sorriso novelesco e braços abertos parecendo que estava recebendo um velho amigo.
Mas o que é mesmo que está havendo por aqui, se perguntava Lucas. Quantas vezes já tentei falar com esse homem e nunca fui recebido? Quantos ofícios já encaminhei para a prefeitura pedindo apoio para o desenvolvimento de projetos com os alunos e nunca enviaram uma só resposta? E por que agora essa consideração toda? Ficava se perguntando ao mesmo tempo em que começava a se enojar com aquela encenação toda, com aquela falsidade explícita e com o aquele jogo de interesses em desenvolvimento. Foi-lhe puxada uma cadeira e sentou, e começou a ouvir do "grande amigo senhor prefeito":
- Mas que bom tê-lo por aqui meu bom rapaz. Lucas, o seu nome é Lucas não é mesmo? Mas como eu poderia esquecer de um nome tão importante no nosso município, de um amigo fiel, de uma pessoa tão preocupada com as melhores ações sociais, de um amigo que nos pode ser tão útil... – Dizia o prefeito entusiasticamente, tecendo considerações imaginárias sobre ele, quando foi interrompido por este:
- Útil em que senhor prefeito, poderia ser mais claro?
- Ora, meu amigo, os amigos são sempre úteis. E você tem demonstrado que é mais do que um amigo para o prefeito, pois sua obra prodigiosa comprova que na verdade é um grande amigo do município. Sendo amigo do município, das crianças do município, da educação e aprendizagem de todos do município, me é muito útil também...
- Por favor, senhor prefeito, queira ser mais claro, mais objetivo – Insistia Lucas.
- Vou logo ao ponto. É que as eleições se aproximam e pessoas como você pode nos ajudar muito. Sabe como é. Você lida com o povo, com muita gente, construiu aquela obra maravilhosa lá no seu terreninho, coisa que deverá crescer muito mais, e assim é o que podemos chamar de um cabo eleitoral dos bons, daqueles que... – Pareceu não gostar muito, mas foi interrompido por Lucas:
- Desculpe senhor prefeito, mas essa utilidade me deixa muito honrado. Acredito vivamente que uma das maiores honras e virtudes de um homem é servir de capacho, de cabide para as pretensões eleitorais dos outros, nessa realidade vil e nojenta que é a política, e na qual estão inseridos os políticos...
Foi interrompido abruptamente pelo prefeito, que se sentindo desconfortável pediu urgentemente um gole de qualquer coisa. Preferia de uísque.


continua...




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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