SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 11 de junho de 2010

ELES QUE ENGANAVAM A FOME (Crônica)

ELES QUE ENGANAVAM A FOME

Rangel Alves da Costa*


Era uma família de cinco, os pais Bertino e Lindaura, e os três filhos menores, Bertulino, Lindalvo e Berlinda. O maior tinha seis anos, e descia numa escadinha até chegar à menorzinha, que parecia criança ainda de colo nas suas feições pequeninas, sem desenvolvimento físico nenhum e até raquítica. Por sinal, todos ali pareciam raquíticos, com uma magrez e palidez que entristecia coração de quem visse.
Uns diziam que só podia ser doença, coisa de verme ou lombriga; outros opinavam que era a fome maltratando aquela pobre família; mas a verdade verdadeira é que tudo se resumia à pobreza absoluta, à miséria humana no seu estágio de piedade, que no fim das contas causa todo tipo de doença e de sofrimento.
Há mais de dois anos que Bertino não encontrava um emprego que durasse mais de dois meses. No último, foi despedido porque se recusou a podar as árvores bonitas e que davam sombra na praça. O prefeito mandou colocá-lo no olho da rua com a promessa de que naquela região ninguém lhe daria mais emprego. Dito e feito. Quando arrumava alguma coisa para fazer não passava de um ou dois dias, quando muito, plantando uma tarefa de terra para os outros, limpando um quintal ou coivarando a mataria seca para tocar fogo.
Doistões é o que ganhava; gastava muito mais do que três e ficava aumentando a dívida na mercearia. Agora não tem mais crédito, a dívida já está velha e ninguém quer mais ajudar. Antes dava pra levar pra família uma massa de milho ou um pacote de arroz, mas agora nem mais uma caixa de fósforo. Não vota no prefeito e por isso mesmo não aceitam que seu nome seja incluído na lista dos apadrinhados que todo mês recebe uma cesta de alimentos.
Do mesmo modo, já fez de tudo pra incluir seus filhos no programa governamental que paga todo mês uma quantia a quem tem filhos na escola. Os dois meninos até que estão em idade de estudar, mas o problema é que em toda escola que vai dizem que não aceitam receber ali crianças esfarrapadas e de pés no chão. Chegaram até a dizer que ali não era meio de pobre e feio arrumar dinheiro fácil não.
Revoltado, disse que falaria ao promotor da comarca que estavam negando estudo aos seus filhos e como resposta recebeu muitos deboches e a promessa de que se fizesse isso iriam fazer de tudo para que perdesse a guarda dos filhos por estar deixando eles com fome. Tomariam as crianças e entregariam a um casal de estrangeiros para criar, foi o que ressaltaram. Ele até poderia ser preso, acusado de abandono de menor incapaz. Ele que fosse falar ao promotor para ver o que era bom pra tosse. E mostraram o caminho da rua. E como é estreito esse caminho...
Antes mesmo de entrar no barraco já ouvia Berlinda chorando, a menorzinha. Quando entrou, encontrou os dois outros filhos amuados pelos cantos. A esposa Lindaura estava com uma feição de sofrimento que até doía olhar nos seus olhos. Olhou para o fogão, revirou as panelas, procurou pelos cantos e nada de comida. Lindaura não precisava dizer mais nada, já sabia o que era, e nada mais era do que a fome que havia batido à porta e entrado.
Chamou a mulher num canto e perguntou se ela sabia o que poderiam fazer diante daquela situação, para ao menos arranjar alguma coisa para os filhos não ficar com fome. Eles poderiam suportar, mas os pequeninos não; eles não tinham culpa de nada. Os pais também não tinham culpa, mas eles não entenderiam essas coisas. A mulher disse que só tinham um restinho de farinha e com ela só poderia fazer uma papa d'água. Foi uma festa e todo mundo ficou lambendo os beiços.
No dia seguinte, logo cedinho ele foi até à mercearia implorar ao menos que vendessem no caderninho um pacote de bolachão, mas lhe foi negado. Ninguém quis emprestar uma moeda sequer. Retornando para casa mais triste do que nunca, sem ter arrumado ao menos uma cuia de farinha, avistou na estrada alguns pés de palma logo ao seu alcance e não teve dúvidas: a primeira comida do dia teria que ser aquele cacto nordestino. Cortou uns quatro pedaços, retirou os espinhos e a pele e a carne ficou fininha, parecendo chuchu. Chegou em casa e disse que uma amiga havia dado uns pedaços de chuchu e que era muito bom, que todos experimentassem. Bicho come e não reclama, mas com gente é diferente. Mesmo assim os meninos tiveram que engolir. Não tinha outro jeito mesmo.
Nessa agonia, no dia seguinte matou uma cobra, tratou direitinho da serpente sem que os meninos vissem, e temperou pedaço a pedaço para assar no fogo aceso no quintal. O pai disse que era carne de teiú, uma caça que comiam sempre, e os meninos mataram a fome naquele instante. Nesse passo, foram comendo miolo de urtiga e outras coisas que nem animal se atreve a comer.
A mãe procurava se refugiar num cantinho e chorava sem parar; o pai já estava a ponto de enlouquecer. E num dia que não conseguiu encontrar realmente nada para matar a fome dos filhinhos, a loucura chegou com sua feição calma e alegre, sorridente e dissimulada. Nesse dia não saiu de casa e quando os meninos começaram a reclamar da fome e a menorzinha desandou a chorar, a mãe perguntou ao marido o que comeriam naquele dia. E ele respondeu: Hoje só tem vento, só vamos comer vento... Estava completamente louco.




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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