NO REINO DO REI MENINO – XVII
Rangel Alves da Costa*
No dia seguinte à coroação do menino Gustavo e à pequena comemoração no castelo, voltada que foi somente para pessoas de outros lugares que estavam presentes ao evento e, principalmente, para saciar a sede do sacerdote e sua comitiva, logo ao amanhecer o pequeno soberano pediu a Bernal que o acompanhasse até as matas ao redor, pois queria ver passarinhos e tomar um banho no córrego que entrecortava as terras do reino.
Antes disso, porém, os dois amigos tiveram um probleminha para resolver: o velho sacerdote, que teria que partir cedinho, não acordava de jeito nenhum. Por mais que os seus ajudantes chamassem, sacolejassem e até dessem uns leves tapas no rosto, a única coisa que ele sonolentamente pronunciava era "O meu cálice está vazio, mais vinho".
Quando ficou sabendo de tal fato o pequeno soberano não pensou duas vezes. Mandou que o feiticeiro providenciasse com urgência um balde cheio de água. Assim que o amigo retornou com a encomenda, ele segurou a vasilha com cuidado e despejou-a por completo em cima do pobre dorminhoco. E quem viu disse que a cena seguinte foi uma coisa espantosa, pois o velho, não se sabe como e com quais forças, deu um grande salto e num instante já estava em pé, se enxugando, envergonhado e pedindo mil perdões e desculpas ao rei, que estava ao lado se embolando de rir.
Quando o soberano e seu criado iam saindo do castelo puderam ver a carruagem do sacerdote pronta para seguir viagem, com o homem de Deus dormindo e a cabeça encoberta com um pano repleto de rodelas de batatinhas e folhas de plantas medicinais. "Coitado – Disse Bernal ao amigo -, este aí tão cedo não exagera no vinho". "Só espero que ele não esqueça de enviar até aqui um bom comprador para a coroa. Mas sei que fará isso em nome do que receberá" – Complementou Gustavo. Resolveram sair pelo portão dos fundos da fortaleza que circundava o castelo. Era o único jeito de não esbarrar com as muitas pessoas que continuavam ao redor comemorando a ascensão do pequeno soberano.
Procuraram não se aproximar muito da floresta fechada, preferindo caminhar pelos descampados e matas menos espessas. Estar ali, naquela bela manhã, livre e sem preocupações maiores era uma grande realização para o menino. Sempre desejou fazer muitas vezes o que estava fazendo agora, saciando sua vontade de criança, mas sempre era impedido ou por seu pai ou pelos guardiões do castelo. Agora sentia que podia ir ali todas as manhãs com outros amigos de sua idade para correr, brincar, apreciar a natureza e os animais, tomar banho nas águas rasas e saborear melhor aquela fase da vida. Gostaria de jamais perder esse espírito radiante e incansável de criança, mas sabia que se tornar adulto seria inevitável, como inevitável também seriam os muitos problemas que por certo surgiriam. Mas venceria a todos, tinha uma forte certeza disso.
- Eles estão aqui, Gustavo, você não está vendo mas eles estão aqui e saíram das entranhas da floresta especialmente para homenagear você. Olha que danados, todos pulando e festejando a sua presença. Pegue umas pedrinhas, vá, pegue umas pedrinhas e jogue em direção àquelas árvores que eles estão por ali. Jogue as pedras que eles gostam, jogue... – Falava todo agitado o feiticeiro.
- Mas tá ficando louco Bernal, jogar pedras em quem, quem você está vendo para ficar com essa maluquice toda, ou acha que também enlouqueci pra ficar jogando pedra por aí? – Indagou assustado.
- Não majestade, são os duendes, gnomos, elfos, hobbits, ninfas, fadas, sátiros, dríades e outros seres fantásticos que habitam as florestas e os reinos mágicos da natureza. Que festa desses espertalhões, adoram uma farra e uma comemoração. Ali, no seu lado direito vem chegando até um centauro e um unicórnio... – Relatava contagiado o feiticeiro.
- Pare de conversa seu bobalhão e use dos seus poderes para fazer essas criaturas aparecerem. Sempre tive vontade de conhecer pessoalmente essas coisas que a gente sabe que existe mas nunca pode ver. Vá, cuida, faça-os visíveis – Ordenou Gustavo.
E num instante, à sua frente ou ao redor, próximos ou mais distantes, surgiu uma diversidade de seres realmente fantásticos: criaturas pequeninas, de orelhas pontiagudas, olhos brilhantes, roupas engraçadas, alguns totalmente nus, de gorros ou outros tipos de chapéus nas cabeças, soltando grunhidos e gritinhos, assobiando, pulando, dançando, trepados nas árvores ou correndo pelas matas, carregando cestinhas, sacos, pequenas varas, tudo parecendo ter saltado de um velho e encantado livro. As fadas pairavam pelo ar, com suas feições meigas, pequeninos e esbeltos corpos, todas com suas varinhas fazendo surgir pequenos sinais de luz. O centauro majestoso, representado por um belo jovem com o corpo de cavalo. O unicórnio com sua brancura de paz, parecendo incandescente e com um chifre brilhante na cabeça. Olhavam para Gustavo e pareciam com ares de imensa satisfação.
Demonstrando estar perplexo com aquilo tudo, num maravilhoso êxtase, ainda assim conseguiu forças para falar ao ouvido de Bernal: "Posso falar com eles?". "Pode, pode sim, será um prazer para eles, mas seja breve, porque eles precisam voltar aos seus afazeres".
- Estou maravilhado com tudo isso e muito agradecido por vocês estarem aqui. Vocês são realmente uns seres fantásticos. Para aproveitar essa oportunidade, eu gostaria de pedir a cada um de vocês que olhassem com carinho toda essa natureza que está ao nosso redor e cuidassem dela como se fosse defendendo a própria vida, a casa, a família de cada um. Essa é nossa casa maior e vocês sabem disso, pois vivem nela e conhecem seus potenciais mais do ninguém. Por isso mesmo, neste momento, quero que vocês escolham entre vocês mesmos quem será o comandante desse exército que crio agora para defender de todas as maneiras a natureza contra os ataques do homem. Quem vocês escolhem?
E todos olhavam para um ser de semblante meio carrancudo que estava um pouco mais distante. "Quem é aquele Bernal?", perguntou o menino. "É um dríade, o ser ideal para defender a floresta e toda essa natureza. Dizem que os seres dessa raça que mora nas árvores são muito zangados com quem maltrata a natureza. Detestam e atacam os lenhadores e quem quiser causar qualquer dano aos bichos, as plantas e aos córregos. Aquele que cortar uma árvore e não plantar outra terá sua casa todinha destruída por cupins, dentre outros castigos que eles impõem. É certeza de que a natureza estará em boas mãos meu rei".
Depois desse inesperado evento e quando já iam em direção ao córrego, onde o pequeno soberano pretendia tomar banho, eis que chega galopando em grande correria um dos guardas do castelo, todo esbaforido e quase sem poder falar:
- Deus nos salve meu rei, pois invadiram o castelo!
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...
A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.
domingo, 21 de fevereiro de 2010
O JARDINEIRO E AS PLANTAS QUE FALAM (CRÔNICA)
O JARDINEIRO E AS PLANTAS QUE FALAM
Rangel Alves da Costa*
Dizem que ser jardineiro é um dos mais belos ofícios da vida. Tem plena razão quem pensa e afirma assim. Remexer a terra, acariciar o solo, dar vida aos canteiros, escolher as sementes, transportar as mudas dos viveiros, semear os grãos, regar a terra e os seus frutos, podar as ramagens, afagar as folhas, as flores e os frutos, tudo isso permite que se tenha um imenso prazer na labuta cotidiana.
Contudo, nada poderá ser comparável à imensa alegria e satisfação em poder dialogar, conversar, ouvir os sentimentos das plantas, e vice-versa. Não se fala aqui no jardineiro que fala sozinho com as avencas, as roseiras, as bromélias etc., supondo que elas estivessem ouvindo e entendendo o que esta sendo dito, mas sim de palavras vivas trocadas entre dois seres de espécies diferentes, porém de profunda amizade cotidianamente construída.
Essa relação de amizade e afeto entre o homem e a planta quem bem conhecia era um velho jardineiro, homem de mais de setenta anos, que vivia há mais de trinta anos prestando seus serviços numa grande mansão de estilo colonial. Morava ali mesmo, numa casinha aos fundos da propriedade, na companhia da solidão e do seu radinho de pilha. Sempre solteiro, jamais quis conviver com mulher por mais de uma noite. Era pra não viciar, dizia.
Seus patrões há muito que vinham insistindo para que recebesse por doação uma casa onde bem quisesse morar, seria o reconhecimento, ao lado de uma boa quantia em dinheiro, dos bons serviços ali prestados durante esses longos anos. Assim, viveria em paz e tranqüilidade os anos que lhe restassem na vida. Mas nunca aceitou. Nem queria mais receber o salário, pedindo somente que lhe deixasse ali cuidando de suas amigas. E assim continuava o velho jardineiro.
Logo cedinho e lá estava ele nos seus afazeres de jardineiro. Com o gadanho, com um balde de adubo ou fertilizante ou simplesmente com a mangueira ou o regador, saía percorrendo os canteiros, os caqueiros, onde as plantas estivessem. Dava preferência ao regador de mão pois, segundo ele, aproximava mais de suas amigas, possibilitava estar bem juntinho a elas. Quando chovia e aquela rotina toda era minimizada, mesmo assim percorria o seu jardim protegido por um guarda-chuva.
Com os seus jeitos diferenciados de ser, o mau humor de umas e o eterno contentamento de outras, mesmo assim todas as plantas conversavam com ele, que estava sempre disposto a ouvir as reclamações, as novidades, as fofocas e até as piadas. Achava a roseira muito egoísta, às vezes metida à besta; a bromélia parecia preguiçosa, amparando-se numa árvore grande; a calêndula ficava quietinha, esperando sempre o início de cada mês para florar lindamente; a avenca, a samambaia, o alfinete, a hera e a trepadeira, tal qual a bromélia, derramavam-se lá do alto espiando o mundo ao redor, eram fofoqueiras que só; o hibisco, o gerânio e o veludo, não se sabe o porquê, mas estavam sempre com ares de tristeza e saudade; diferentes e alegres, sempre sorridentes e perfumadas eram o jasmim, a margarida, o crisântemo, a dália, a violeta, o lírio, a begônia, a acácia e a gardênia; enquanto a bromélia, o girassol, a orquídea, a três-marias, o copo-de-leite e a flor-de-papagaio outra coisa não faziam senão estar sempre reclamando da chuva, do calor, do sol ou do frio.
Dessa amizade construída no dia a dia, desde o amanhecer até o entardecer, é que aos poucos foi surgindo algo inimaginável para as demais pessoas. Se ouvissem pessoalmente o jardineiro e as plantas conversando, mesmo assim não iriam acreditar. Mas isto jamais aconteceria, pois ninguém podia ouvi-los dialogando, a não ser eles mesmos.
Tudo começou quando o jardineiro, displicentemente, ia podando uma folhinha verde de um pé de margarida: "Tá ficando louco, não tá vendo que não há nenhum problema comigo? Até que gosto de você, mas tenha mais cuidado", reclamou imediatamente a planta. O velho senhor fingiu não ter ouvido. Não podia ser, pensou. Porém, quando ia se retirando ouviu: "Ei, meu senhor, por favor jogue um pouquinho de água em mim, senão vou morrer de sede e esse calor todo vai cansar minha beleza". Era uma roseira falando. E o jardineiro não teve mais dúvida; aquelas plantas falavam.
Foi acostumando com esse fato inesperado. Muitas vezes ele mesmo puxava conversa, procurando saber como elas estavam se sentindo naquela manhã ou naquela tarde, se precisavam de mais fertilizante ou adubo, se queriam que fizesse alguma coisa especial, assim como podar de um jeito novo, afastar as formigas, ajeitar melhor os galhos e folhas, fazer com que os beija-flores lhes dessem um pouco mais de sossego.
"Juro por Deus que há uns três dias que não venho me sentindo bem. De repente é como se o clima me deixasse adoecida, com o corpo todo esmorecido. Veja se encontra algum fertilizante bom para girassóis, meu amigo. Pode ser também o sol, que não está me iluminando como deveria. Me mude de posição pra ver se dá jeito" – Era o girassol, dois dias antes de morrer.
"Quero que escolha a rosa mais bonita e perfumada para levar pra sua esposa. Como é ela que nunca vejo? Traga um dia ela aqui" – Dizia a roseira toda esbelta e radiante. "Vou levar uma florzinha pra colocar num copo d'água no meu quarto, pois não tenho esposa não, nunca tive" – Respondeu triste o jardineiro. "Mas por que, se todo mundo namora e casa um dia? Não venha me dizer que você nunca amou" – Insistiu a planta, atiçando os sentimentos do velho. "Mas ora, quem é você pra tá falando dessas coisas? Na verdade eu..., mas deixe pra lá" – Disse o velho, se afastando em seguida e enxugando o canto do olho.
"Desde que o girassol morreu não paro de pensar no significado da vida e da morte. Num dia ele tava ali, todo amarelinho, lindo, e não demorou muito pra ir definhando, perdendo a cor, ficando meio desbotado e morrer. Esse vai ser o caminho de todas nós um dia, e é por isso mesmo que não vejo sentido nesse orgulho e egoísmo todo de certas plantas. Basta olhar ao redor pra ver que parecem que vivem em outro mundo. E de repente chega uma doença, um raio que cai, uma tempestade que vai derrubando tudo e não tem orgulho nem egoísmo que dê jeito. É morte certa quando se pensava que a vida era infinita, e por isso eu fico...".
"Pare de lamentação orquídea" – Interrompeu o jardineiro, e prosseguiu: "A vida é assim mesmo, nascemos para morrer e essa é a única verdade. Você é novinha e ainda tem muita vida pela frente, tem quem cuide, quem dê água e alimento, sombra ou sol se preciso for. E eu, que vivo sozinho e só tenho vocês como amigas?".
Nesse cotidiano de amizade, de muitos diálogos agradáveis ou tristes e até discussões, o tempo ia caminhando na cadência da normalidade. Até que numa tarde a natureza revoltosa fez cair uma inesperada e violenta tempestade. O jardineiro não teve tempo sequer de colocar lonas de proteção para livrar as plantas da intensidade das chuvas, dos raios e da ventania avassaladora. No dia seguinte mal pôde acreditar no que viu. O seu jardim estava totalmente desfigurado, com plantas estendidas por todos os lados, caídas, machucadas.
Foram quase dois meses para dar novamente vida e alegria ao jardim, mesmo se lamentando do destino do pé de lírio, do hibisco e do copo-de-leite. Morreram no verdor da idade, diziam as outras plantas. Mas ele mesmo estava cansado, alquebrado pelos esforços em demasia para salvar suas amigas. Aquela inesperada tempestade e suas conseqüências deixaram cicatrizes numa pessoa de idade já avançada. Ademais, aquela carta que chegou com muitos anos de atraso e que agora estava debaixo de um copo d'água com uma florzinha, havia deixado o velho jardineiro com um aspecto cada vez mais triste.
Durante um dia inteiro não apareceu no seu jardim. As plantas, alvoroçadas e sem saber os motivos daquela ausência, se perguntavam umas às outras o que teria acontecido. Estavam com sede, com fome e com vontade de conversar com o velho senhor e nada dele aparecer. No dia seguinte foi a mesma coisa, e nos dias posteriores também.
Quem passa pelo jardim não vê mais nenhum sinal da beleza que foi um dia. As ervas daninhas, que alguns chamam de tempo, tomam conta de todo o lugar. Contudo, algumas pessoas juram que já viram ali no terreno um túmulo totalmente coberto por plantas e flores lindas.
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Dizem que ser jardineiro é um dos mais belos ofícios da vida. Tem plena razão quem pensa e afirma assim. Remexer a terra, acariciar o solo, dar vida aos canteiros, escolher as sementes, transportar as mudas dos viveiros, semear os grãos, regar a terra e os seus frutos, podar as ramagens, afagar as folhas, as flores e os frutos, tudo isso permite que se tenha um imenso prazer na labuta cotidiana.
Contudo, nada poderá ser comparável à imensa alegria e satisfação em poder dialogar, conversar, ouvir os sentimentos das plantas, e vice-versa. Não se fala aqui no jardineiro que fala sozinho com as avencas, as roseiras, as bromélias etc., supondo que elas estivessem ouvindo e entendendo o que esta sendo dito, mas sim de palavras vivas trocadas entre dois seres de espécies diferentes, porém de profunda amizade cotidianamente construída.
Essa relação de amizade e afeto entre o homem e a planta quem bem conhecia era um velho jardineiro, homem de mais de setenta anos, que vivia há mais de trinta anos prestando seus serviços numa grande mansão de estilo colonial. Morava ali mesmo, numa casinha aos fundos da propriedade, na companhia da solidão e do seu radinho de pilha. Sempre solteiro, jamais quis conviver com mulher por mais de uma noite. Era pra não viciar, dizia.
Seus patrões há muito que vinham insistindo para que recebesse por doação uma casa onde bem quisesse morar, seria o reconhecimento, ao lado de uma boa quantia em dinheiro, dos bons serviços ali prestados durante esses longos anos. Assim, viveria em paz e tranqüilidade os anos que lhe restassem na vida. Mas nunca aceitou. Nem queria mais receber o salário, pedindo somente que lhe deixasse ali cuidando de suas amigas. E assim continuava o velho jardineiro.
Logo cedinho e lá estava ele nos seus afazeres de jardineiro. Com o gadanho, com um balde de adubo ou fertilizante ou simplesmente com a mangueira ou o regador, saía percorrendo os canteiros, os caqueiros, onde as plantas estivessem. Dava preferência ao regador de mão pois, segundo ele, aproximava mais de suas amigas, possibilitava estar bem juntinho a elas. Quando chovia e aquela rotina toda era minimizada, mesmo assim percorria o seu jardim protegido por um guarda-chuva.
Com os seus jeitos diferenciados de ser, o mau humor de umas e o eterno contentamento de outras, mesmo assim todas as plantas conversavam com ele, que estava sempre disposto a ouvir as reclamações, as novidades, as fofocas e até as piadas. Achava a roseira muito egoísta, às vezes metida à besta; a bromélia parecia preguiçosa, amparando-se numa árvore grande; a calêndula ficava quietinha, esperando sempre o início de cada mês para florar lindamente; a avenca, a samambaia, o alfinete, a hera e a trepadeira, tal qual a bromélia, derramavam-se lá do alto espiando o mundo ao redor, eram fofoqueiras que só; o hibisco, o gerânio e o veludo, não se sabe o porquê, mas estavam sempre com ares de tristeza e saudade; diferentes e alegres, sempre sorridentes e perfumadas eram o jasmim, a margarida, o crisântemo, a dália, a violeta, o lírio, a begônia, a acácia e a gardênia; enquanto a bromélia, o girassol, a orquídea, a três-marias, o copo-de-leite e a flor-de-papagaio outra coisa não faziam senão estar sempre reclamando da chuva, do calor, do sol ou do frio.
Dessa amizade construída no dia a dia, desde o amanhecer até o entardecer, é que aos poucos foi surgindo algo inimaginável para as demais pessoas. Se ouvissem pessoalmente o jardineiro e as plantas conversando, mesmo assim não iriam acreditar. Mas isto jamais aconteceria, pois ninguém podia ouvi-los dialogando, a não ser eles mesmos.
Tudo começou quando o jardineiro, displicentemente, ia podando uma folhinha verde de um pé de margarida: "Tá ficando louco, não tá vendo que não há nenhum problema comigo? Até que gosto de você, mas tenha mais cuidado", reclamou imediatamente a planta. O velho senhor fingiu não ter ouvido. Não podia ser, pensou. Porém, quando ia se retirando ouviu: "Ei, meu senhor, por favor jogue um pouquinho de água em mim, senão vou morrer de sede e esse calor todo vai cansar minha beleza". Era uma roseira falando. E o jardineiro não teve mais dúvida; aquelas plantas falavam.
Foi acostumando com esse fato inesperado. Muitas vezes ele mesmo puxava conversa, procurando saber como elas estavam se sentindo naquela manhã ou naquela tarde, se precisavam de mais fertilizante ou adubo, se queriam que fizesse alguma coisa especial, assim como podar de um jeito novo, afastar as formigas, ajeitar melhor os galhos e folhas, fazer com que os beija-flores lhes dessem um pouco mais de sossego.
"Juro por Deus que há uns três dias que não venho me sentindo bem. De repente é como se o clima me deixasse adoecida, com o corpo todo esmorecido. Veja se encontra algum fertilizante bom para girassóis, meu amigo. Pode ser também o sol, que não está me iluminando como deveria. Me mude de posição pra ver se dá jeito" – Era o girassol, dois dias antes de morrer.
"Quero que escolha a rosa mais bonita e perfumada para levar pra sua esposa. Como é ela que nunca vejo? Traga um dia ela aqui" – Dizia a roseira toda esbelta e radiante. "Vou levar uma florzinha pra colocar num copo d'água no meu quarto, pois não tenho esposa não, nunca tive" – Respondeu triste o jardineiro. "Mas por que, se todo mundo namora e casa um dia? Não venha me dizer que você nunca amou" – Insistiu a planta, atiçando os sentimentos do velho. "Mas ora, quem é você pra tá falando dessas coisas? Na verdade eu..., mas deixe pra lá" – Disse o velho, se afastando em seguida e enxugando o canto do olho.
"Desde que o girassol morreu não paro de pensar no significado da vida e da morte. Num dia ele tava ali, todo amarelinho, lindo, e não demorou muito pra ir definhando, perdendo a cor, ficando meio desbotado e morrer. Esse vai ser o caminho de todas nós um dia, e é por isso mesmo que não vejo sentido nesse orgulho e egoísmo todo de certas plantas. Basta olhar ao redor pra ver que parecem que vivem em outro mundo. E de repente chega uma doença, um raio que cai, uma tempestade que vai derrubando tudo e não tem orgulho nem egoísmo que dê jeito. É morte certa quando se pensava que a vida era infinita, e por isso eu fico...".
"Pare de lamentação orquídea" – Interrompeu o jardineiro, e prosseguiu: "A vida é assim mesmo, nascemos para morrer e essa é a única verdade. Você é novinha e ainda tem muita vida pela frente, tem quem cuide, quem dê água e alimento, sombra ou sol se preciso for. E eu, que vivo sozinho e só tenho vocês como amigas?".
Nesse cotidiano de amizade, de muitos diálogos agradáveis ou tristes e até discussões, o tempo ia caminhando na cadência da normalidade. Até que numa tarde a natureza revoltosa fez cair uma inesperada e violenta tempestade. O jardineiro não teve tempo sequer de colocar lonas de proteção para livrar as plantas da intensidade das chuvas, dos raios e da ventania avassaladora. No dia seguinte mal pôde acreditar no que viu. O seu jardim estava totalmente desfigurado, com plantas estendidas por todos os lados, caídas, machucadas.
Foram quase dois meses para dar novamente vida e alegria ao jardim, mesmo se lamentando do destino do pé de lírio, do hibisco e do copo-de-leite. Morreram no verdor da idade, diziam as outras plantas. Mas ele mesmo estava cansado, alquebrado pelos esforços em demasia para salvar suas amigas. Aquela inesperada tempestade e suas conseqüências deixaram cicatrizes numa pessoa de idade já avançada. Ademais, aquela carta que chegou com muitos anos de atraso e que agora estava debaixo de um copo d'água com uma florzinha, havia deixado o velho jardineiro com um aspecto cada vez mais triste.
Durante um dia inteiro não apareceu no seu jardim. As plantas, alvoroçadas e sem saber os motivos daquela ausência, se perguntavam umas às outras o que teria acontecido. Estavam com sede, com fome e com vontade de conversar com o velho senhor e nada dele aparecer. No dia seguinte foi a mesma coisa, e nos dias posteriores também.
Quem passa pelo jardim não vê mais nenhum sinal da beleza que foi um dia. As ervas daninhas, que alguns chamam de tempo, tomam conta de todo o lugar. Contudo, algumas pessoas juram que já viram ali no terreno um túmulo totalmente coberto por plantas e flores lindas.
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NO REINO DO REI MENINO – XVI
NO REINO DO REI MENINO – XVI
Rangel Alves da Costa*
O pequeno rei parecia que não estava nem aí para as palavras do velho sacerdote e a inquietação de Bernal. Entretanto sabia que mesmo meio embriagado pelas delícias do vinho, os relatos daquele senhor não podiam deixar de ser considerados. Já concebia na mente as atitudes que tomaria em relação à pretensão dos cavaleiros da Ordem. Por enquanto deixaria tudo como estava, sem opinar sobre o que poderia estar certo ou errado, sobre o que achava sobre o fustigante assunto. Quanto ao seu amigo feiticeiro, pediu que ele abrisse imediatamente o desditoso presente.
Bernal rapidamente se incumbiu da tarefa e num instante estava em mãos com a lembrança enviada e um manuscrito enrolado em canudo e preso por uma fita com as insígnias da Ordem. Era uma cabeça de alce empalhada, lindamente trabalhada, presa ao fundo por uma tábua de madeira nobre enfeitada com motivos dourados e gravada com o nome da Ordem. Quem não soubesse das intenções por trás daquela reverência toda diria que era um belo presente.
O manuscrito, cuidadosamente grafado com letras góticas, talvez objetivasse também impressionar o destinatário e transmitir uma ideia de grande importância e seriedade da Grande Ordem dos Rebeldes. No seu conteúdo, dava as boas vindas ao novo soberano do Reino de Oninem, parabenizava o rei Gustavo Oneuqep pela ascensão ao trono e em seguida traçava um breve histórico da Ordem, seus objetivos e suas estratégias de ação. Nada mais nada menos do que o relatado pelo sacerdote, só que através de outras palavras, que não deixassem transparecer fria e cruelmente seus objetivos abomináveis. Ao final, conclamava o rei para se tornar mais um membro daquela classe de soberanos e nobres e informava que brevemente um emissário seria enviado para tratar pessoalmente com o rei.
- Bernal, faça essa baboseira desaparecer imediatamente da minha frente. Mande queimar tudo, essa caixa, esse alce empalhado, essa mensagem, tudo. Não quero ver isso na minha frente nem mais um segundo. Direto pra lareira com essas coisas ridículas Bernal – Ordenou raivoso o pequeno rei, fato que deixou totalmente surpreendidos o feiticeiro e o sacerdote. Contudo, surpreendidos não pelo gesto raivoso, mas sim pela maneira firme e decidida demonstrada pelo menino na sua indignação.
- Mas majestade não faça isso, em nome do nosso Deus não faça isso. Essa Grande Ordem é muito perigosa e aqueles que estão por trás dela são muito perversos e cruéis. Lembre que um emissário deles virá até aqui e será uma afronta se ele perceber que o presente não está fazendo parte da decoração do castelo. Ademais, como poderá conversar com ele sem estar com o maldito manuscrito em mãos? – Ponderou o velho sacerdote, agitando-se ainda mais pelo vinho que lhe era farto.
Antes de responder, Gustavo puxou Bernal pelo braço e perguntou-lhe no ouvido: "É pecado impedir que o sacerdote continue tomando vinho?". Diante da inesperada pergunta, o feiticeiro outra coisa não fez senão soltar uma sonora gargalhada, assustando até mesmo as outras pessoas que estavam se refestelando com as comidas e as bebidas. O cálice do sacerdote espatifou-se no chão, e o homem da igreja só não teve o mesmo destino porque foi amparado pelo pequeno rei.
Refeitos do pequeno incidente, e providenciado com urgência um novo cálice para o sedento sacerdote, o rei Gustavo voltou-se para este e falou:
- Há pouco o senhor implorava para que eu não mandasse queimar aqueles nojentos objetos que me foram enviados por não sei quem e nem quero mais saber. Só tenho a dizer que realmente mandei e mandarei ao fogo todos que aqui forem enviados com os mesmos objetivos. E por uma razão muito simples, senhor sacerdote: sou ainda menino mas quem manda aqui sou eu e não é nenhum valentão que vai me fazer medo dentro do meu reino ou fora dele. O senhor pode até pensar que não, mas sei como agir como esse tipo de gente. O senhor bem sabe daquela história bíblica do jovem Davi e do gigante Golias. Quem venceu? Foi o jovem e venceu não porque o outro não fizesse medo, mas porque o rapazinho foi mais esperto, como são espertos todos os meninos da minha idade. E por que o senhor acha que todos os meus principais auxiliares serão meninos? Ora, é porque somente nós sabemos como enfrentar e derrotar esses falsos gigantes – Disse o rei, com a maior sensatez e seriedade possíveis.
Ouvindo as palavras do rei, de um lado Bernal emocionava-se sem disfarçar uma lágrima que caiu; e do outro o sacerdote tombava ao chão com o cálice na mão. Jamais imaginaram ouvir tais palavras da boca de um menino, mesmo que esse menino fosse rei.
continua...
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Rangel Alves da Costa*
O pequeno rei parecia que não estava nem aí para as palavras do velho sacerdote e a inquietação de Bernal. Entretanto sabia que mesmo meio embriagado pelas delícias do vinho, os relatos daquele senhor não podiam deixar de ser considerados. Já concebia na mente as atitudes que tomaria em relação à pretensão dos cavaleiros da Ordem. Por enquanto deixaria tudo como estava, sem opinar sobre o que poderia estar certo ou errado, sobre o que achava sobre o fustigante assunto. Quanto ao seu amigo feiticeiro, pediu que ele abrisse imediatamente o desditoso presente.
Bernal rapidamente se incumbiu da tarefa e num instante estava em mãos com a lembrança enviada e um manuscrito enrolado em canudo e preso por uma fita com as insígnias da Ordem. Era uma cabeça de alce empalhada, lindamente trabalhada, presa ao fundo por uma tábua de madeira nobre enfeitada com motivos dourados e gravada com o nome da Ordem. Quem não soubesse das intenções por trás daquela reverência toda diria que era um belo presente.
O manuscrito, cuidadosamente grafado com letras góticas, talvez objetivasse também impressionar o destinatário e transmitir uma ideia de grande importância e seriedade da Grande Ordem dos Rebeldes. No seu conteúdo, dava as boas vindas ao novo soberano do Reino de Oninem, parabenizava o rei Gustavo Oneuqep pela ascensão ao trono e em seguida traçava um breve histórico da Ordem, seus objetivos e suas estratégias de ação. Nada mais nada menos do que o relatado pelo sacerdote, só que através de outras palavras, que não deixassem transparecer fria e cruelmente seus objetivos abomináveis. Ao final, conclamava o rei para se tornar mais um membro daquela classe de soberanos e nobres e informava que brevemente um emissário seria enviado para tratar pessoalmente com o rei.
- Bernal, faça essa baboseira desaparecer imediatamente da minha frente. Mande queimar tudo, essa caixa, esse alce empalhado, essa mensagem, tudo. Não quero ver isso na minha frente nem mais um segundo. Direto pra lareira com essas coisas ridículas Bernal – Ordenou raivoso o pequeno rei, fato que deixou totalmente surpreendidos o feiticeiro e o sacerdote. Contudo, surpreendidos não pelo gesto raivoso, mas sim pela maneira firme e decidida demonstrada pelo menino na sua indignação.
- Mas majestade não faça isso, em nome do nosso Deus não faça isso. Essa Grande Ordem é muito perigosa e aqueles que estão por trás dela são muito perversos e cruéis. Lembre que um emissário deles virá até aqui e será uma afronta se ele perceber que o presente não está fazendo parte da decoração do castelo. Ademais, como poderá conversar com ele sem estar com o maldito manuscrito em mãos? – Ponderou o velho sacerdote, agitando-se ainda mais pelo vinho que lhe era farto.
Antes de responder, Gustavo puxou Bernal pelo braço e perguntou-lhe no ouvido: "É pecado impedir que o sacerdote continue tomando vinho?". Diante da inesperada pergunta, o feiticeiro outra coisa não fez senão soltar uma sonora gargalhada, assustando até mesmo as outras pessoas que estavam se refestelando com as comidas e as bebidas. O cálice do sacerdote espatifou-se no chão, e o homem da igreja só não teve o mesmo destino porque foi amparado pelo pequeno rei.
Refeitos do pequeno incidente, e providenciado com urgência um novo cálice para o sedento sacerdote, o rei Gustavo voltou-se para este e falou:
- Há pouco o senhor implorava para que eu não mandasse queimar aqueles nojentos objetos que me foram enviados por não sei quem e nem quero mais saber. Só tenho a dizer que realmente mandei e mandarei ao fogo todos que aqui forem enviados com os mesmos objetivos. E por uma razão muito simples, senhor sacerdote: sou ainda menino mas quem manda aqui sou eu e não é nenhum valentão que vai me fazer medo dentro do meu reino ou fora dele. O senhor pode até pensar que não, mas sei como agir como esse tipo de gente. O senhor bem sabe daquela história bíblica do jovem Davi e do gigante Golias. Quem venceu? Foi o jovem e venceu não porque o outro não fizesse medo, mas porque o rapazinho foi mais esperto, como são espertos todos os meninos da minha idade. E por que o senhor acha que todos os meus principais auxiliares serão meninos? Ora, é porque somente nós sabemos como enfrentar e derrotar esses falsos gigantes – Disse o rei, com a maior sensatez e seriedade possíveis.
Ouvindo as palavras do rei, de um lado Bernal emocionava-se sem disfarçar uma lágrima que caiu; e do outro o sacerdote tombava ao chão com o cálice na mão. Jamais imaginaram ouvir tais palavras da boca de um menino, mesmo que esse menino fosse rei.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
HOMENS CARNAIS, MULHERES BANAIS
HOMENS CARNAIS, MULHERES BANAIS
Rangel Alves da Costa*
Por incrível que pareça, o sexo, enquanto ato sexual propriamente dito, se tornou motivo de preconceito. Hoje em dia, na sociedade onde tudo é apelação e desvirtuamento nas condutas, resguardar-se no sexo se transformou em causa de suspeita, intolerância e aversão, termos estes que se enquadram no conceito de preconceito: Denominação genérica de uma série de atitudes humanas, que consistem na formação de um juízo antecipado sobre uma pessoa, geralmente de cunho negativo, baseando-se apenas em crenças impostas pelo meio ou por convencionalismos sociais.
E por que acentua-se cada vez mais essa aversão às pessoas que querem resguardar sua moralidade e sua conduta sexual? Ora, simplesmente porque a maioria dos homens carnalizou-se e grande parte das mulheres banalizou-se.
Quando falo em carnalização quero dizer que os indivíduos veem na ideia da fragilidade da carne um meio para satisfazer incontrolavelmente seus impulsos sexuais, como se o sexo fosse a única e mais importante coisa na vida. Há que se dizer, então, que o homem vê sexo em tudo, quer fazer sexo com tudo, vive do sexo e pelo sexo. O pior é que os impulsos doentios nunca são satisfeitos porque encontram sempre resposta e respaldo positivos aos desejos, ou seja, a banalização faz com que a parceria sexual se torne cada vez mais fácil.
Do mesmo modo, quando falo em banalização afirmo sobre a vulgarização que, infelizmente, grande parte das mulheres chama para si como conduta na vida sexual. Sem um mínimo de respeito a si próprias e até às suas famílias, sem o menor pudor em viverem maculadas pelos olhos e línguas ávidos pela fofoca e pela ânsia de desmoralizar, sem pensar nas conseqüências para a vida futura, simplesmente agem como Messalinas, como as prostitutas mais vulgares, como a Geni da música de Chico Buarque: “Ela é boa de apanhar, ela é feita pra cuspir, ela da qualquer um, bendita Geni...”.
Dessa junção da carnalização do homem com a banalização da mulher, outra coisa não se pode esperar senão a vulgaridade nas relações, a perda dos sentimentos afetivos entre o homem e a mulher, qualquer prazer pelo uso, o sexo como reles moeda de troca.
Atualmente é até mesmo usual que as pessoas “transem” sem sequer saberem o nome uma da outra, que “fiquem” nas noitadas sem que uma saiba como é a feição da outra, que façam “rolar” com o único compromisso de que seus esposos, noivos ou namorados não fiquem sabendo. Infelizmente é esta a realidade prevalecente na chamada era do conhecimento, mas onde as pessoas parecem ter perdido a noção e o valor de si próprias.
Do jeito que a coisa anda, não seria estranho que dentro de poucos anos alguns conceitos sejam totalmente banidos, tais como amor, namoro, paixão, noivado, casamento, respeito, etc. Isto poderá ser confirmado a partir da resposta às seguintes indagações: Haveria ainda lugar para o amor puro e verdadeiro? O namoro continuaria sendo uma forma de construção do amor de uma pessoa perante a outra? Haveria motivação para o casamento com véu, grinalda e todo o cerimonial? O juramente de fidelidade persistiria entre ambos? Respondo sem medo de errar: Não.
E não porque ninguém terá mais o trabalho de paquerar, de buscar seduzir, encantar o outro com palavras e gestos. Não porque o outro não se dará nem o respeito de ao menos ser um pouco difícil. Não porque bastará olhar e, mesmo sem conhecer ou jamais ter visto o outro, ter aceito o convite para ir para cama. Não porque a traição dos homens será desculpa para que as esposas também traiam. Não porque ninguém se respeitará, ninguém estará mais nem aí para o que os outros falem, até mesmo porque os outros serão farinha do mesmo saco ou da mesma safadeza.
Quem dera fosse uma visão pessimista que jamais se concretizasse. Contudo, os mais velhos ensinam que não existe mentira naquilo que está adiante, mas somente os olhos não querem acreditar. E basta olhar ao redor para encontrar os sinais contundentes de que o mundo caminha, irremediavelmente e a passos largos, para a total devassidão. E nunca é demais perguntar: o pretendente ainda manda flores para a menina bonita que está na janela? Não precisa mais.
Conheci duas pessoas que morreram de Aids. Era um lindo casal; quem os visse diria que haviam sido feitos um para o outro. Ele morreu porque transava com qualquer uma sem camisinha; ela morreu porque ficava com qualquer um e transava sem camisinha. Quando descobriram que tinham a doença, um começou a culpar o outro, e isto porque ele usava camisinha quando fazia sexo com ela. Na safadeza da vida lá fora ninguém se preocupava com o uso de nada.
Advogado e poeta
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Rangel Alves da Costa*
Por incrível que pareça, o sexo, enquanto ato sexual propriamente dito, se tornou motivo de preconceito. Hoje em dia, na sociedade onde tudo é apelação e desvirtuamento nas condutas, resguardar-se no sexo se transformou em causa de suspeita, intolerância e aversão, termos estes que se enquadram no conceito de preconceito: Denominação genérica de uma série de atitudes humanas, que consistem na formação de um juízo antecipado sobre uma pessoa, geralmente de cunho negativo, baseando-se apenas em crenças impostas pelo meio ou por convencionalismos sociais.
E por que acentua-se cada vez mais essa aversão às pessoas que querem resguardar sua moralidade e sua conduta sexual? Ora, simplesmente porque a maioria dos homens carnalizou-se e grande parte das mulheres banalizou-se.
Quando falo em carnalização quero dizer que os indivíduos veem na ideia da fragilidade da carne um meio para satisfazer incontrolavelmente seus impulsos sexuais, como se o sexo fosse a única e mais importante coisa na vida. Há que se dizer, então, que o homem vê sexo em tudo, quer fazer sexo com tudo, vive do sexo e pelo sexo. O pior é que os impulsos doentios nunca são satisfeitos porque encontram sempre resposta e respaldo positivos aos desejos, ou seja, a banalização faz com que a parceria sexual se torne cada vez mais fácil.
Do mesmo modo, quando falo em banalização afirmo sobre a vulgarização que, infelizmente, grande parte das mulheres chama para si como conduta na vida sexual. Sem um mínimo de respeito a si próprias e até às suas famílias, sem o menor pudor em viverem maculadas pelos olhos e línguas ávidos pela fofoca e pela ânsia de desmoralizar, sem pensar nas conseqüências para a vida futura, simplesmente agem como Messalinas, como as prostitutas mais vulgares, como a Geni da música de Chico Buarque: “Ela é boa de apanhar, ela é feita pra cuspir, ela da qualquer um, bendita Geni...”.
Dessa junção da carnalização do homem com a banalização da mulher, outra coisa não se pode esperar senão a vulgaridade nas relações, a perda dos sentimentos afetivos entre o homem e a mulher, qualquer prazer pelo uso, o sexo como reles moeda de troca.
Atualmente é até mesmo usual que as pessoas “transem” sem sequer saberem o nome uma da outra, que “fiquem” nas noitadas sem que uma saiba como é a feição da outra, que façam “rolar” com o único compromisso de que seus esposos, noivos ou namorados não fiquem sabendo. Infelizmente é esta a realidade prevalecente na chamada era do conhecimento, mas onde as pessoas parecem ter perdido a noção e o valor de si próprias.
Do jeito que a coisa anda, não seria estranho que dentro de poucos anos alguns conceitos sejam totalmente banidos, tais como amor, namoro, paixão, noivado, casamento, respeito, etc. Isto poderá ser confirmado a partir da resposta às seguintes indagações: Haveria ainda lugar para o amor puro e verdadeiro? O namoro continuaria sendo uma forma de construção do amor de uma pessoa perante a outra? Haveria motivação para o casamento com véu, grinalda e todo o cerimonial? O juramente de fidelidade persistiria entre ambos? Respondo sem medo de errar: Não.
E não porque ninguém terá mais o trabalho de paquerar, de buscar seduzir, encantar o outro com palavras e gestos. Não porque o outro não se dará nem o respeito de ao menos ser um pouco difícil. Não porque bastará olhar e, mesmo sem conhecer ou jamais ter visto o outro, ter aceito o convite para ir para cama. Não porque a traição dos homens será desculpa para que as esposas também traiam. Não porque ninguém se respeitará, ninguém estará mais nem aí para o que os outros falem, até mesmo porque os outros serão farinha do mesmo saco ou da mesma safadeza.
Quem dera fosse uma visão pessimista que jamais se concretizasse. Contudo, os mais velhos ensinam que não existe mentira naquilo que está adiante, mas somente os olhos não querem acreditar. E basta olhar ao redor para encontrar os sinais contundentes de que o mundo caminha, irremediavelmente e a passos largos, para a total devassidão. E nunca é demais perguntar: o pretendente ainda manda flores para a menina bonita que está na janela? Não precisa mais.
Conheci duas pessoas que morreram de Aids. Era um lindo casal; quem os visse diria que haviam sido feitos um para o outro. Ele morreu porque transava com qualquer uma sem camisinha; ela morreu porque ficava com qualquer um e transava sem camisinha. Quando descobriram que tinham a doença, um começou a culpar o outro, e isto porque ele usava camisinha quando fazia sexo com ela. Na safadeza da vida lá fora ninguém se preocupava com o uso de nada.
Advogado e poeta
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Distúrbio (Poesia)
Distúrbio
A lua voou e fez ninho
nos galhos do meu quintal
e veio o sol molhando tudo
com seus pingos encharcando
a estrela que dormia quieta
embaixo da goiabeira
e só tive tempo de correr
e abrir a porta para a noite entrar
que estava cansada de tanto
correr atrás do amanhecer
que só apareceu no dia seguinte
acompanhada da natureza
que tinha enlouquecido.
Rangel Alves da Costa
blograngel-sertao.blogspot.com
A lua voou e fez ninho
nos galhos do meu quintal
e veio o sol molhando tudo
com seus pingos encharcando
a estrela que dormia quieta
embaixo da goiabeira
e só tive tempo de correr
e abrir a porta para a noite entrar
que estava cansada de tanto
correr atrás do amanhecer
que só apareceu no dia seguinte
acompanhada da natureza
que tinha enlouquecido.
Rangel Alves da Costa
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NO REINO DO REI MENINO – XV
NO REINO DO REI MENINO – XV
Rangel Alves da Costa*
No instante em que Gustavo e Bernal preparavam-se para abrir o misterioso presente, eis que surge na porta o cambaleante sacerdote, segurando com a mão esquerda uma taça transbordando de vinho.
- Mas o que pensam que vão fazer? Parem, parem imediatamente com isso e deixem esse objeto como ele está. Afinal, vocês não estão vendo que esse presente está embrulhado com as cores e com a fita cravejada da Grande Ordem dos Rebeldes?
- Mas o que significa essa Grande Ordem? – Perguntou Gustavo, assustado com a repentina aparição.
- É uma história muito longa, mas por enquanto posso adiantar que a Grande Ordem dos Rebeldes, como o próprio nome diz, é uma terrível aliança formada por soberanos e poderosos com o objetivo de dividir o País dos Voantes em dois, ou seja, passaria a existir outro país com o nome de Feudantes, e este contando somente com duas classes de pessoas, os reinantes e os escravizados. Assim, neste país só existiria uma classe dos ricos e governantes e outra dos trabalhadores, os escravos. O pior de tudo é que esta outra classe seria totalmente submetida e subjugada, pois teria que trabalhar e sustentar a outra classe recebendo apenas uma esmola que a outra quisesse dar. Aquele que reclamar, não quiser trabalhar ou tentar fugir terá morte certa...
Bernal não se conteve e se aproximou do religioso, indagando-o:
- Mil perdões, mas como o senhor sabe disso tudo, quem são realmente estas pessoas que têm um projeto tão infame e por que eles mandaram este objeto, que ninguém sabe ainda o que é, para cá? Por favor responda, se estiver em condições.
Achando mais seguro sentar um pouco, o sacerdote preparou-se para responder, mas não sem antes pedir que trouxessem mais vinho, mesmo com o cálice cheio.
- Como eu disse há pouco, é uma velha história, mas vamos por parte. Essa tal de Grande Ordem já existe há muito tempo, desde que alguns desses reinados que formam o país começaram a se sentir prejudicados quando os camponeses passaram a ter alguns direitos e não somente deveres. Isso enraiveceu a classe poderosa, que queria fazer da escravidão desse pobre povo um meio fácil para enriquecer ainda mais e com mais facilidade. Assim, foi para fazer com que a escravidão se tornasse permanente nesses reinados que surgiu essa Ordem. Atualmente, quando a maioria dos reinos tende a dar cada vez mais liberdade ao seu povo, respeitá-lo mais e tê-lo como uma classe trabalhadora que merece receber pelo que produz, essa Ordem está fazendo de tudo para buscar adeptos para sua causa, até mesmo intimidando soberanos para que passem a fazer parte do País dos Feudantes, como denominaram essa coisa impossível de ter existência. Porém, o pior é que em muitos casos eles até procuram invadir os reinos que não comungam com as suas nefastas pretensões. Primeiro eles... Mas como foi mesmo a pergunta?
- Boa parte o senhor já respondeu, mas como é que soube disso tudo? – Reiterou o feiticeiro do bem.
- Sim, vamos lá – Tomando um gole de vinho -. Sei de tudo porque homens de Deus como eu sentiram na pele a violência e a crueldade desses chefes da Ordem. Todos os sacerdotes que viviam nos reinos que já aceitaram lutar para formar um novo país foram expulsos de lá, mas não sem antes sofrerem as dores do açoite e de outras crueldades. E por que fizeram isso? È fácil responder, simplesmente porque eles passaram a defender os trabalhadores. Ora, defender o povo pobre e carente de um tudo é uma afronta para eles. Daí que enxotaram de lá, a pau e a pedra, os nossos devotados sacerdotes. Muitos chegaram a morrer por causa disso, outros enlouqueceram, e o que restou com consciência me contou essa história. Aí primeiro eles... Mas como foi mesmo o restante da pergunta?
- Só falta responder duas coisinhas, meu bom senhor: quem são realmente estes homens, estes que estão por trás dessa Ordem e por que eles mandaram este presente para cá? – Bernal insistiu, já impaciente.
- Pelo que eu pude saber, já que todo mundo parece ter medo de falar sobre isso, os cabeças de corja, os que estão arquitetando essa separação e tudo que está por trás disso tudo são os reis de Acnun, um reinado de péssima fama que fica muita adiante dessas montanhas, e os reis de Ojon e Miur, dois ditos soberanos que há muito já deviam ter recebido os merecidos castigos de Deus. Mas os receberá, com certeza. Por favor me passe o vinho meu jovem – Falou para Bernal.
E o feiticeiro, mostrando um leve sorriso, porém demonstrando inquietação, disse:
- O vinho está ao seu lado e o cálice está quase cheio meu senhor, mas procure responder a só mais uma pergunta: o que o senhor queria dizer com mas primeiro, aí primeiro...?
- Ah! foi bom você lembrar porque eu ia esquecendo. Primeiro eles mandam um presente, acompanhado de um convite para fazer parte da Ordem. Mas não é convite coisa nenhuma, pois se o pequeno rei não aceitar corre o risco do seu reino ser atacado. Podem confirmar o que eu estou dizendo, abram a caixa.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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No instante em que Gustavo e Bernal preparavam-se para abrir o misterioso presente, eis que surge na porta o cambaleante sacerdote, segurando com a mão esquerda uma taça transbordando de vinho.
- Mas o que pensam que vão fazer? Parem, parem imediatamente com isso e deixem esse objeto como ele está. Afinal, vocês não estão vendo que esse presente está embrulhado com as cores e com a fita cravejada da Grande Ordem dos Rebeldes?
- Mas o que significa essa Grande Ordem? – Perguntou Gustavo, assustado com a repentina aparição.
- É uma história muito longa, mas por enquanto posso adiantar que a Grande Ordem dos Rebeldes, como o próprio nome diz, é uma terrível aliança formada por soberanos e poderosos com o objetivo de dividir o País dos Voantes em dois, ou seja, passaria a existir outro país com o nome de Feudantes, e este contando somente com duas classes de pessoas, os reinantes e os escravizados. Assim, neste país só existiria uma classe dos ricos e governantes e outra dos trabalhadores, os escravos. O pior de tudo é que esta outra classe seria totalmente submetida e subjugada, pois teria que trabalhar e sustentar a outra classe recebendo apenas uma esmola que a outra quisesse dar. Aquele que reclamar, não quiser trabalhar ou tentar fugir terá morte certa...
Bernal não se conteve e se aproximou do religioso, indagando-o:
- Mil perdões, mas como o senhor sabe disso tudo, quem são realmente estas pessoas que têm um projeto tão infame e por que eles mandaram este objeto, que ninguém sabe ainda o que é, para cá? Por favor responda, se estiver em condições.
Achando mais seguro sentar um pouco, o sacerdote preparou-se para responder, mas não sem antes pedir que trouxessem mais vinho, mesmo com o cálice cheio.
- Como eu disse há pouco, é uma velha história, mas vamos por parte. Essa tal de Grande Ordem já existe há muito tempo, desde que alguns desses reinados que formam o país começaram a se sentir prejudicados quando os camponeses passaram a ter alguns direitos e não somente deveres. Isso enraiveceu a classe poderosa, que queria fazer da escravidão desse pobre povo um meio fácil para enriquecer ainda mais e com mais facilidade. Assim, foi para fazer com que a escravidão se tornasse permanente nesses reinados que surgiu essa Ordem. Atualmente, quando a maioria dos reinos tende a dar cada vez mais liberdade ao seu povo, respeitá-lo mais e tê-lo como uma classe trabalhadora que merece receber pelo que produz, essa Ordem está fazendo de tudo para buscar adeptos para sua causa, até mesmo intimidando soberanos para que passem a fazer parte do País dos Feudantes, como denominaram essa coisa impossível de ter existência. Porém, o pior é que em muitos casos eles até procuram invadir os reinos que não comungam com as suas nefastas pretensões. Primeiro eles... Mas como foi mesmo a pergunta?
- Boa parte o senhor já respondeu, mas como é que soube disso tudo? – Reiterou o feiticeiro do bem.
- Sim, vamos lá – Tomando um gole de vinho -. Sei de tudo porque homens de Deus como eu sentiram na pele a violência e a crueldade desses chefes da Ordem. Todos os sacerdotes que viviam nos reinos que já aceitaram lutar para formar um novo país foram expulsos de lá, mas não sem antes sofrerem as dores do açoite e de outras crueldades. E por que fizeram isso? È fácil responder, simplesmente porque eles passaram a defender os trabalhadores. Ora, defender o povo pobre e carente de um tudo é uma afronta para eles. Daí que enxotaram de lá, a pau e a pedra, os nossos devotados sacerdotes. Muitos chegaram a morrer por causa disso, outros enlouqueceram, e o que restou com consciência me contou essa história. Aí primeiro eles... Mas como foi mesmo o restante da pergunta?
- Só falta responder duas coisinhas, meu bom senhor: quem são realmente estes homens, estes que estão por trás dessa Ordem e por que eles mandaram este presente para cá? – Bernal insistiu, já impaciente.
- Pelo que eu pude saber, já que todo mundo parece ter medo de falar sobre isso, os cabeças de corja, os que estão arquitetando essa separação e tudo que está por trás disso tudo são os reis de Acnun, um reinado de péssima fama que fica muita adiante dessas montanhas, e os reis de Ojon e Miur, dois ditos soberanos que há muito já deviam ter recebido os merecidos castigos de Deus. Mas os receberá, com certeza. Por favor me passe o vinho meu jovem – Falou para Bernal.
E o feiticeiro, mostrando um leve sorriso, porém demonstrando inquietação, disse:
- O vinho está ao seu lado e o cálice está quase cheio meu senhor, mas procure responder a só mais uma pergunta: o que o senhor queria dizer com mas primeiro, aí primeiro...?
- Ah! foi bom você lembrar porque eu ia esquecendo. Primeiro eles mandam um presente, acompanhado de um convite para fazer parte da Ordem. Mas não é convite coisa nenhuma, pois se o pequeno rei não aceitar corre o risco do seu reino ser atacado. Podem confirmar o que eu estou dizendo, abram a caixa.
continua...
Advogado e poeta
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Náufrago (Poesia)
Náufrago
Porque o rio
Passa e eu sorrio
Não passa a mágoa
Na lágrima que deságua
Porque o mar
Silencia o grito do amar
Não silencia a saudade
Que o meu cais invade
Porque o navegante
Do rio e mar adiante
Se perdeu na tempestade
Não naufragou na eternidade
Porque o porto
Recebe o amor que está morto
Não recebe os restos do amante
Porque eu fiquei distante.
Rangel Alves da Costa
blograngel-sertao.blogspot.com
Porque o rio
Passa e eu sorrio
Não passa a mágoa
Na lágrima que deságua
Porque o mar
Silencia o grito do amar
Não silencia a saudade
Que o meu cais invade
Porque o navegante
Do rio e mar adiante
Se perdeu na tempestade
Não naufragou na eternidade
Porque o porto
Recebe o amor que está morto
Não recebe os restos do amante
Porque eu fiquei distante.
Rangel Alves da Costa
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A FORÇA FRÁGIL DO SER
A FORÇA FRÁGIL DO SER
Rangel Alves da Costa*
Somos adultos, grandes, decididos, corajosos, destemidos, intrépidos, valentes, audaciosos, enfim, sem nenhum temor de nada. Quer dizer, de quase nada, pois uma simples palavra pode nos causar espanto e arrepio. Qualquer coisa como, por exemplo, solidão ou bicho-papão.
Solidão até que pode ser um alento diante de palavras outras tais como morte, escuridão, tempestade, traição, abandono, pobreza, suicídio, assalto, roubo, sangue, choro, vendaval, terremoto, avalanche, escombro, dor, guerra, furacão, fantasma, doença, abandono, cemitério, violência, acidente, vítima. infarto, brutalidade, agressão, tiro, facada, agonia, aflição, assombração, fome, miséria. Até filme de terror dá medo em muita gente grande.
Qual a culpa das palavras, dos termos, das designações? Nenhuma, mas quando as pessoas relacionam as palavras com os seus conceitos, com os seus significados, com suas experiências ou com a idealização do que aquilo poderia significar, aí sim, as coisas mudam totalmente e simplesmente porque os indivíduos não querem aprender que as coisas não são somente como eles desejariam que fossem. Se escondem por trás de um escudo para dizer que são a própria essência das coisas positivas, do poder e da perfeição, quando na verdade não passam de fugitivos das palavras e dos conceitos espalhados pela vida.
Os próprios antônimos indicam que algumas palavras fazem oposição a outras, contrastam os seus significados, modificam como o preto no branco o que se quer e o que se tem ou se vê. Isto significa que o maniqueísmo na vida não é somente a teoria que confronta o bem e o mal, a saúde e a doença, a alegria e a tristeza, mas também a demonstração de que existe a pessoa e ela mesma se confrontando. E que confronto é esse? Nada mais é do que a fragilidade escondida na força, a meiguice escondida na sisudez, a bondade escondida na maldade, a carência escondida na realização, o medo escondido na coragem.
Não é difícil encontrar pessoas que fazem de tudo para demonstrar para os outros que são inatacáveis ou inatingíveis. Quem as vê pensa que está diante de uma montanha, de uma rocha, de tanta solidez que procuram apresentar. Contudo, muitas vezes essa demonstração toda de força não suporta olhar uma barata que passa, um rato que corre, uma lagartixa na parede ou uma cobra na fotografia. Não é mentira dizer que musculosos marmanjos sobem em cadeiras, ficam vermelhos de pavor e dão até gritinhos. Certa vez presenciei um que desmaiou porque viu sangue.
Uma análise mais aprofundada de tais aspectos comportamentais certamente que envolveria abordagens psicológicas, sociológicas e até históricas. Psicológica porque os comportamentos da mente humana fazem parte dessa disciplina; sociológica porque as ações humanas são condicionadas pelo meio; e históricas porque as concepções acerca da primazia do homem frente à mulher foram historicamente determinadas. Contudo, o entendimento dessa questão, ou seja, do que se esconde por trás das pessoas diante das palavras e dos conceitos, só é possível, ao meu ver, com a percepção da imposição cultural que sempre marcou os caminhos da sociedade.
Ora, se as pessoas temem, têm vergonha e fazem de tudo para não mostrar o que realmente são diante dos outros, logicamente que é porque introduziu-se na cultura do povo a idéia de que somente será reconhecido socialmente aquele que mostrar força, coragem e destemor. A primeira coisa que se diz é que no mundo não há lugar para medrosos, “mariquinhas” ou dondoquinhas que soltam gritinhos quando o vento bate. É a própria sociedade que procura impor modos de ser, de conviver e de estar. Daí que, como conseqüência, todo mundo quer ser o tal, porque não tem medo de nada, nada poderá atingir, não há lugar para demonstração de fraqueza, de fragilidade ou de expressão de sentimento verdadeiro. Aí, inesperadamente, surge um ratinho qualquer e se vê a maior correria, com mulheres desmaiando e marmanjos subindo em cadeiras aos gritos.
Não adianta fingir, mentir pra si mesmo e para os outros; não adianta querer ser o que o corpo e a mente não suportam; não tem cabimento algum viver da fantasia, da mentira, da ilusão em querer ser o que nunca será. Não adianta fingir que não sabe que as pessoas têm sentimentos, sofrem dores e desilusões, choram só em pensar em determinadas situações, se lamentam diante da tristeza. Não adianta fingir porque a própria carne trai, os olhos não negam e a boca não cala. Não adianta fingir pensando que é somente ferro e pedra, “porque és pó e ao pó hás de retornar”.
Advogado e poeta
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Rangel Alves da Costa*
Somos adultos, grandes, decididos, corajosos, destemidos, intrépidos, valentes, audaciosos, enfim, sem nenhum temor de nada. Quer dizer, de quase nada, pois uma simples palavra pode nos causar espanto e arrepio. Qualquer coisa como, por exemplo, solidão ou bicho-papão.
Solidão até que pode ser um alento diante de palavras outras tais como morte, escuridão, tempestade, traição, abandono, pobreza, suicídio, assalto, roubo, sangue, choro, vendaval, terremoto, avalanche, escombro, dor, guerra, furacão, fantasma, doença, abandono, cemitério, violência, acidente, vítima. infarto, brutalidade, agressão, tiro, facada, agonia, aflição, assombração, fome, miséria. Até filme de terror dá medo em muita gente grande.
Qual a culpa das palavras, dos termos, das designações? Nenhuma, mas quando as pessoas relacionam as palavras com os seus conceitos, com os seus significados, com suas experiências ou com a idealização do que aquilo poderia significar, aí sim, as coisas mudam totalmente e simplesmente porque os indivíduos não querem aprender que as coisas não são somente como eles desejariam que fossem. Se escondem por trás de um escudo para dizer que são a própria essência das coisas positivas, do poder e da perfeição, quando na verdade não passam de fugitivos das palavras e dos conceitos espalhados pela vida.
Os próprios antônimos indicam que algumas palavras fazem oposição a outras, contrastam os seus significados, modificam como o preto no branco o que se quer e o que se tem ou se vê. Isto significa que o maniqueísmo na vida não é somente a teoria que confronta o bem e o mal, a saúde e a doença, a alegria e a tristeza, mas também a demonstração de que existe a pessoa e ela mesma se confrontando. E que confronto é esse? Nada mais é do que a fragilidade escondida na força, a meiguice escondida na sisudez, a bondade escondida na maldade, a carência escondida na realização, o medo escondido na coragem.
Não é difícil encontrar pessoas que fazem de tudo para demonstrar para os outros que são inatacáveis ou inatingíveis. Quem as vê pensa que está diante de uma montanha, de uma rocha, de tanta solidez que procuram apresentar. Contudo, muitas vezes essa demonstração toda de força não suporta olhar uma barata que passa, um rato que corre, uma lagartixa na parede ou uma cobra na fotografia. Não é mentira dizer que musculosos marmanjos sobem em cadeiras, ficam vermelhos de pavor e dão até gritinhos. Certa vez presenciei um que desmaiou porque viu sangue.
Uma análise mais aprofundada de tais aspectos comportamentais certamente que envolveria abordagens psicológicas, sociológicas e até históricas. Psicológica porque os comportamentos da mente humana fazem parte dessa disciplina; sociológica porque as ações humanas são condicionadas pelo meio; e históricas porque as concepções acerca da primazia do homem frente à mulher foram historicamente determinadas. Contudo, o entendimento dessa questão, ou seja, do que se esconde por trás das pessoas diante das palavras e dos conceitos, só é possível, ao meu ver, com a percepção da imposição cultural que sempre marcou os caminhos da sociedade.
Ora, se as pessoas temem, têm vergonha e fazem de tudo para não mostrar o que realmente são diante dos outros, logicamente que é porque introduziu-se na cultura do povo a idéia de que somente será reconhecido socialmente aquele que mostrar força, coragem e destemor. A primeira coisa que se diz é que no mundo não há lugar para medrosos, “mariquinhas” ou dondoquinhas que soltam gritinhos quando o vento bate. É a própria sociedade que procura impor modos de ser, de conviver e de estar. Daí que, como conseqüência, todo mundo quer ser o tal, porque não tem medo de nada, nada poderá atingir, não há lugar para demonstração de fraqueza, de fragilidade ou de expressão de sentimento verdadeiro. Aí, inesperadamente, surge um ratinho qualquer e se vê a maior correria, com mulheres desmaiando e marmanjos subindo em cadeiras aos gritos.
Não adianta fingir, mentir pra si mesmo e para os outros; não adianta querer ser o que o corpo e a mente não suportam; não tem cabimento algum viver da fantasia, da mentira, da ilusão em querer ser o que nunca será. Não adianta fingir que não sabe que as pessoas têm sentimentos, sofrem dores e desilusões, choram só em pensar em determinadas situações, se lamentam diante da tristeza. Não adianta fingir porque a própria carne trai, os olhos não negam e a boca não cala. Não adianta fingir pensando que é somente ferro e pedra, “porque és pó e ao pó hás de retornar”.
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Coração vazio (Poesia)
Coração vazio
Não me pertence mais
o que tinha por amar
e não tinha
e não me pertence mais
o que tinha por amor
e lhe dei
e não me pertence mais
o que já não tinha
e o que eu lhe dei
porque esse coração vazio
nunca teve nada meu
a não ser o que roubei.
Rangel Alves da Costa
blograngel-sertao.blogspot.com
Não me pertence mais
o que tinha por amar
e não tinha
e não me pertence mais
o que tinha por amor
e lhe dei
e não me pertence mais
o que já não tinha
e o que eu lhe dei
porque esse coração vazio
nunca teve nada meu
a não ser o que roubei.
Rangel Alves da Costa
blograngel-sertao.blogspot.com
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010
A CADEIRA DE BALANÇO E A VELHA SENHORA (CRÔNICA)
A CADEIRA DE BALANÇO E A VELHA SENHORA
Rangel Alves da Costa*
Não sei bem o porquê, mas quando vejo uma cadeira de balanço me vem logo ao pensamento lembranças de tardes, de sombreado de árvores, de idosos rememorando tempos idos, de vento brisa soprando, de recordações distantes, de lembranças e saudades.
Ao entardecer, quando o sol se cansa de fazer sua festa, é hora de colocar a cadeira de balanço na calçada, na varanda, arrastá-la pra debaixo da árvore frondosa, posicioná-la estrategicamente onde o vento avança, onde possa ver o que se passa adiante ou simplesmente onde a solidão do lugar e a paisagem sejam o cenário propício para o reviver da vida inteira.
No sertão da minha meninice, a cadeira de balanço possuía – e creio que ainda possui – um significado especial, até mesmo sociológico. Ora, a vida não é somente trabalhar, comer, deitar numa cama e dormir. Ao entardecer, assim que o sol vai esmorecendo, as portas vão se abrindo e as cadeiras vão pontuando, uma aqui outra mais adiante, e de repente as pessoas começam a se balançar, tricoteando, lendo a velha bíblia, vendo o artista famoso na revista antiga, brigando com os netos que brincam ao lado, olhando se vai chover ou se vai ser mais um ano de seca, se abanando pelo calor ainda insuportável, dando boas tardes para os que passam, proseando com a vizinha que chega, cochilando. Êta vidinha besta, como diria Manuel Bandeira, que é essa encantadora vida na cidadezinha sertaneja, com suas tardes e cadeiras de balanço.
Meninote sapeca, quando ia fazer sua ronda ao entardecer pra caçar passarinho, tomar banho de riacho ou roubar goiaba nos quintais das redondezas, Joãozinho sempre passava pelos quintais, grandes, com árvores frutíferas e galinhas ciscando perto do cercadinho das plantas medicinais. Quintal sertanejo é quase sempre assim. Seguindo seu itinerário, o garoto passava por um local que lhe despertava especial atenção.
Diferentemente do que as outras pessoas geralmente faziam, que era sentar nas suas cadeiras na parte da frente da casa, uma velha senhora preferia ficar na cadeira de balanço de vime embaixo de um pé de umbu-cajá, deixada dia e noite ali no quintal. Toda vez que passava lá estava ela, se balançando levemente, com o seu pano amarrado na cabeça, a face enrugada tristonha e os olhos mirando o alto, o horizonte, e enxergando todo um passado. Joãozinho tinha certeza que muitas vezes ela chorava.
Sempre investigativo, querendo saber de tudo, o molecote resolveu perguntar à sua mãe sobre a vida daquela velha senhora que via todas as tardes. A mãe foi logo dizendo que, pelo que sabia, aquilo era uma história longa e triste. Aquela senhora, conhecida como Dona Maroca, havia sido muito rica no passado. De família abastada e dona de muitas terras e rebanhos, estudou na capital, sabia como ninguém o latim e outras línguas e tocava piano como ninguém. Até que teve a desdita de se apaixonar por um moço humilde ali mesmo do sertão, com quem fugiu, vez que o pai havia ameaçado expulsá-la de casa se continuasse com aquela loucura. A mãe, como não podia fazer nada, o jeito que deu foi enviar às escondidas um bom dinheiro para que sua filha ao menos comprasse uma casa para viver com dignidade junto àquele que ela escolheu como companheiro. E assim comprou aquela casa, onde até hoje residia. Perdeu seu marido ainda cedo, encontrado morto em circunstâncias que até hoje não foram bem explicadas. E assim ela ficou sozinha, sem filhos, somente com o seu piano e o seu dia-a-dia de recordações e tristezas.
No outro dia, Joãozinho tomou coragem e resolveu conversar com aquela senhora. Passando por ali, pediu licença para entrar no quintal e foi se aproximando da cadeira de balanço. Mesmo com ar tristonho, com uma leve marca de uma lágrima esquecida, ela foi agradável e acolhedora com o garoto. Disse que podia vê-lo todas as tardes quando passava por ali, perguntou se estava estudando, do que gostava, enfim, fez surgir um pequeno e agradável diálogo. Ele respondeu muito mais do que perguntou, porém fez uma pergunta interessante: "É verdade que a senhora tem um piano, como é um piano?". E ela respondeu que há muito tempo não cuidava do seu piano e que o mesmo vivia coberto por lençóis, mas que no dia seguinte prometia que mostraria a ele como era um piano e até poderia tocar umas duas notas para ele ouvir. Isso iria lhe doer muito, mas jurou que faria.
Ansioso para matar a curiosidade, ao entardecer do dia seguinte Joãozinho tomou apressadamente o rumo do quintal da velha senhora. Para surpresa sua, avistou somente a cadeira levemente se balançando, mas nada da senhora.Viu que a porta dos fundos da casa estava fechada e nenhum sinal da presença da velha pianista. Ficou rondando por ali mais de uma hora e nada. Voltou para casa e imediatamente contou o ocorrido à sua mãe. E ela, olhando firmemente e acariciando o cabelo do filho, disse: "Você não vai mais encontrar ela lá, pois hoje de manhã encontraram ela caída morta junto ao seu piano".
Joãozinho passou muitos dias entristecido, pela morte da senhora e porque não pôde conhecer como era um piano. Durante duas semanas mudou sua rota de caminhada, evitando passar pelo quintal. Um dia, porém, quando resolveu retomar seu caminho habitual, ao passar pelo quintal ouviu uma bela música vindo de dentro da casa. Era uma suave música tocada ao piano. Todos os dias ele passava para ouvir. E somente ele ouvia...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Não sei bem o porquê, mas quando vejo uma cadeira de balanço me vem logo ao pensamento lembranças de tardes, de sombreado de árvores, de idosos rememorando tempos idos, de vento brisa soprando, de recordações distantes, de lembranças e saudades.
Ao entardecer, quando o sol se cansa de fazer sua festa, é hora de colocar a cadeira de balanço na calçada, na varanda, arrastá-la pra debaixo da árvore frondosa, posicioná-la estrategicamente onde o vento avança, onde possa ver o que se passa adiante ou simplesmente onde a solidão do lugar e a paisagem sejam o cenário propício para o reviver da vida inteira.
No sertão da minha meninice, a cadeira de balanço possuía – e creio que ainda possui – um significado especial, até mesmo sociológico. Ora, a vida não é somente trabalhar, comer, deitar numa cama e dormir. Ao entardecer, assim que o sol vai esmorecendo, as portas vão se abrindo e as cadeiras vão pontuando, uma aqui outra mais adiante, e de repente as pessoas começam a se balançar, tricoteando, lendo a velha bíblia, vendo o artista famoso na revista antiga, brigando com os netos que brincam ao lado, olhando se vai chover ou se vai ser mais um ano de seca, se abanando pelo calor ainda insuportável, dando boas tardes para os que passam, proseando com a vizinha que chega, cochilando. Êta vidinha besta, como diria Manuel Bandeira, que é essa encantadora vida na cidadezinha sertaneja, com suas tardes e cadeiras de balanço.
Meninote sapeca, quando ia fazer sua ronda ao entardecer pra caçar passarinho, tomar banho de riacho ou roubar goiaba nos quintais das redondezas, Joãozinho sempre passava pelos quintais, grandes, com árvores frutíferas e galinhas ciscando perto do cercadinho das plantas medicinais. Quintal sertanejo é quase sempre assim. Seguindo seu itinerário, o garoto passava por um local que lhe despertava especial atenção.
Diferentemente do que as outras pessoas geralmente faziam, que era sentar nas suas cadeiras na parte da frente da casa, uma velha senhora preferia ficar na cadeira de balanço de vime embaixo de um pé de umbu-cajá, deixada dia e noite ali no quintal. Toda vez que passava lá estava ela, se balançando levemente, com o seu pano amarrado na cabeça, a face enrugada tristonha e os olhos mirando o alto, o horizonte, e enxergando todo um passado. Joãozinho tinha certeza que muitas vezes ela chorava.
Sempre investigativo, querendo saber de tudo, o molecote resolveu perguntar à sua mãe sobre a vida daquela velha senhora que via todas as tardes. A mãe foi logo dizendo que, pelo que sabia, aquilo era uma história longa e triste. Aquela senhora, conhecida como Dona Maroca, havia sido muito rica no passado. De família abastada e dona de muitas terras e rebanhos, estudou na capital, sabia como ninguém o latim e outras línguas e tocava piano como ninguém. Até que teve a desdita de se apaixonar por um moço humilde ali mesmo do sertão, com quem fugiu, vez que o pai havia ameaçado expulsá-la de casa se continuasse com aquela loucura. A mãe, como não podia fazer nada, o jeito que deu foi enviar às escondidas um bom dinheiro para que sua filha ao menos comprasse uma casa para viver com dignidade junto àquele que ela escolheu como companheiro. E assim comprou aquela casa, onde até hoje residia. Perdeu seu marido ainda cedo, encontrado morto em circunstâncias que até hoje não foram bem explicadas. E assim ela ficou sozinha, sem filhos, somente com o seu piano e o seu dia-a-dia de recordações e tristezas.
No outro dia, Joãozinho tomou coragem e resolveu conversar com aquela senhora. Passando por ali, pediu licença para entrar no quintal e foi se aproximando da cadeira de balanço. Mesmo com ar tristonho, com uma leve marca de uma lágrima esquecida, ela foi agradável e acolhedora com o garoto. Disse que podia vê-lo todas as tardes quando passava por ali, perguntou se estava estudando, do que gostava, enfim, fez surgir um pequeno e agradável diálogo. Ele respondeu muito mais do que perguntou, porém fez uma pergunta interessante: "É verdade que a senhora tem um piano, como é um piano?". E ela respondeu que há muito tempo não cuidava do seu piano e que o mesmo vivia coberto por lençóis, mas que no dia seguinte prometia que mostraria a ele como era um piano e até poderia tocar umas duas notas para ele ouvir. Isso iria lhe doer muito, mas jurou que faria.
Ansioso para matar a curiosidade, ao entardecer do dia seguinte Joãozinho tomou apressadamente o rumo do quintal da velha senhora. Para surpresa sua, avistou somente a cadeira levemente se balançando, mas nada da senhora.Viu que a porta dos fundos da casa estava fechada e nenhum sinal da presença da velha pianista. Ficou rondando por ali mais de uma hora e nada. Voltou para casa e imediatamente contou o ocorrido à sua mãe. E ela, olhando firmemente e acariciando o cabelo do filho, disse: "Você não vai mais encontrar ela lá, pois hoje de manhã encontraram ela caída morta junto ao seu piano".
Joãozinho passou muitos dias entristecido, pela morte da senhora e porque não pôde conhecer como era um piano. Durante duas semanas mudou sua rota de caminhada, evitando passar pelo quintal. Um dia, porém, quando resolveu retomar seu caminho habitual, ao passar pelo quintal ouviu uma bela música vindo de dentro da casa. Era uma suave música tocada ao piano. Todos os dias ele passava para ouvir. E somente ele ouvia...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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NO REINO DO REI MENINO – XIV
NO REINO DO REI MENINO – XIV
Rangel Alves da Costa*
O velho sacerdote ficou encarregado de espalhar por todo o País dos Voantes que a coroa do Reino de Oninem estava à venda. Só aceitou o encargo a duras custas e somente depois que o rei Gustavo lhe cochichou algo no ouvido. Já estavam na casa real, onde o novo soberano havia mandado servir assados com um bom vinho da própria e quase vazia adega do castelo. Enquanto o serviçal de Deus e outros convidados se esbaldavam com os quitutes e a bebida, o rei conversava separadamente com Bernal. Parecia gente grande, se poderia dizer.
- Bernal, amanhã de manhã quero que me faça um favor. Preciso que você faça um daqueles truques, magias ou encantamentos, ou qualquer coisa parecida, para trazer até o castelo um daqueles duendes que vivem na floresta...
- Mas por que, o que é que tá pensando fazer dessa vez? – Perguntou o feiticeiro do bem.
- É simples. Quando os meninos chegarem amanhã, aqueles dentre os quais vou escolher os melhores para serem meus auxiliares, quero que deixe eles sozinhos comigo nesta sala. Quando todos eles estiverem em pé à minha frente, quero que o duende apareça do nada pulando e fazendo estripulias. Os que não tiverem medo ficam, são escolhidos; os que se mostrarem amedrontados ou correrem serão eliminados. Só isso – Concluiu o menino rei.
Bernal aproveitou a oportunidade para tecer comentários e fazer algumas perguntas:
- Majestade, já que tocou nessa questão vou logo dizer o que penso. Sem querer ir de encontro ao seu pensamento e à sua decisão, tenho a humilde opinião que é uma atitude por demais arriscada, não porque meninos não sejam capazes de dar conta do recado quando exigidos. Nosso rei é o maior exemplo. Só que não sei como todo o País dos Voantes e o resto do mundo irão reagir quando souberem que um rei menino vai reinar tendo outros meninos como seus principais auxiliares, certamente irão dizer que é um reino de brincadeira. Acho que conselheiros experientes, escolhidos dentre aqueles que prestavam bons serviços ao reino, devem continuar, até mesmo para repassar suas experiências para os que estão chegando. Ademais, meu rei, o que realmente cada um dos escolhidos fará, poderá decidir sobre o quê e até que ponto? Outra questão é saber se, por exemplo, o rei tem consciência de que tem situações que somente um adulto experiente pode se envolver. Disso vem uma pergunta: será que pensa em deixar um menino comandando nosso exército, tendo a responsabilidade de comandar adultos guerreiros para nos defender?
- Asneiras, asneiras Bernal, um feiticeiro como você não poderia falar tantas bobagens, pois até eu, que ainda sou menino, sei que as coisas podem ser diferentes. Em primeiro lugar, é você que terá a responsabilidade de comandar todos esses meninos. Não você dando ordens, mas agindo por trás, às escondidas para que tudo dê certo. E isso é muito fácil e á assim que vai funcionar: Use de suas forças e poderes mágicos para ter sempre ao seu lado, lá na torre, aqueles seres mágicos ou encantados que você tanto conhece. Esses danadinhos, que são muito afoitos e brincalhões, porém destemidos, acompanharão meus auxiliares, com cada um acompanhando um menino, de modo que os menores não percebam que suas ações são influenciadas e até comandadas por outros seres. De repente, cada um vai ficar até mesmo surpreso com o que é capaz de fazer e tomará coragem para fazer muito mais. É assim que deve funcionar. Em segundo... – E foi interrompido por Bernal, que estava inquieto.
- Mas isso é loucura pequeno rei. Às vezes esses seres mágicos são incontroláveis e podendo comandar as ações de um menino certamente que farão muito mais maluquices do que a gente pode imaginar, colocando até mesmo o reinado em risco. Certa vez....
- Está decido e vai ser assim, palavra de rei, e nem pense em fazer diferente do que estou mandando. Mas, em segundo lugar, quero que me traga aquele presente estranho que me foi enviando por não sei quem. Traga agora mesmo porque quero abrir aquela caixa pra ver o que tem dentro. Leve para a sala dos despachos ao lado, aqui não, que não é pra atiçar a atenção desses bisbilhoteiros beberrões.
Não demorou dois minutos e o feiticeiro já estava na sala indicada acenando para o rei, que havia acabado de dar um murro nas costas do velho sacerdote, que estava se engasgando com a boca cheia de pernil. Assim que o homem da igreja se recuperou do susto e já ia cambaleante novamente em direção aos assados e ao vinho, Gustavo correu em direção ao feiticeiro. Seria o momento de desvendar o que significava aquele inesperado presente.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
O velho sacerdote ficou encarregado de espalhar por todo o País dos Voantes que a coroa do Reino de Oninem estava à venda. Só aceitou o encargo a duras custas e somente depois que o rei Gustavo lhe cochichou algo no ouvido. Já estavam na casa real, onde o novo soberano havia mandado servir assados com um bom vinho da própria e quase vazia adega do castelo. Enquanto o serviçal de Deus e outros convidados se esbaldavam com os quitutes e a bebida, o rei conversava separadamente com Bernal. Parecia gente grande, se poderia dizer.
- Bernal, amanhã de manhã quero que me faça um favor. Preciso que você faça um daqueles truques, magias ou encantamentos, ou qualquer coisa parecida, para trazer até o castelo um daqueles duendes que vivem na floresta...
- Mas por que, o que é que tá pensando fazer dessa vez? – Perguntou o feiticeiro do bem.
- É simples. Quando os meninos chegarem amanhã, aqueles dentre os quais vou escolher os melhores para serem meus auxiliares, quero que deixe eles sozinhos comigo nesta sala. Quando todos eles estiverem em pé à minha frente, quero que o duende apareça do nada pulando e fazendo estripulias. Os que não tiverem medo ficam, são escolhidos; os que se mostrarem amedrontados ou correrem serão eliminados. Só isso – Concluiu o menino rei.
Bernal aproveitou a oportunidade para tecer comentários e fazer algumas perguntas:
- Majestade, já que tocou nessa questão vou logo dizer o que penso. Sem querer ir de encontro ao seu pensamento e à sua decisão, tenho a humilde opinião que é uma atitude por demais arriscada, não porque meninos não sejam capazes de dar conta do recado quando exigidos. Nosso rei é o maior exemplo. Só que não sei como todo o País dos Voantes e o resto do mundo irão reagir quando souberem que um rei menino vai reinar tendo outros meninos como seus principais auxiliares, certamente irão dizer que é um reino de brincadeira. Acho que conselheiros experientes, escolhidos dentre aqueles que prestavam bons serviços ao reino, devem continuar, até mesmo para repassar suas experiências para os que estão chegando. Ademais, meu rei, o que realmente cada um dos escolhidos fará, poderá decidir sobre o quê e até que ponto? Outra questão é saber se, por exemplo, o rei tem consciência de que tem situações que somente um adulto experiente pode se envolver. Disso vem uma pergunta: será que pensa em deixar um menino comandando nosso exército, tendo a responsabilidade de comandar adultos guerreiros para nos defender?
- Asneiras, asneiras Bernal, um feiticeiro como você não poderia falar tantas bobagens, pois até eu, que ainda sou menino, sei que as coisas podem ser diferentes. Em primeiro lugar, é você que terá a responsabilidade de comandar todos esses meninos. Não você dando ordens, mas agindo por trás, às escondidas para que tudo dê certo. E isso é muito fácil e á assim que vai funcionar: Use de suas forças e poderes mágicos para ter sempre ao seu lado, lá na torre, aqueles seres mágicos ou encantados que você tanto conhece. Esses danadinhos, que são muito afoitos e brincalhões, porém destemidos, acompanharão meus auxiliares, com cada um acompanhando um menino, de modo que os menores não percebam que suas ações são influenciadas e até comandadas por outros seres. De repente, cada um vai ficar até mesmo surpreso com o que é capaz de fazer e tomará coragem para fazer muito mais. É assim que deve funcionar. Em segundo... – E foi interrompido por Bernal, que estava inquieto.
- Mas isso é loucura pequeno rei. Às vezes esses seres mágicos são incontroláveis e podendo comandar as ações de um menino certamente que farão muito mais maluquices do que a gente pode imaginar, colocando até mesmo o reinado em risco. Certa vez....
- Está decido e vai ser assim, palavra de rei, e nem pense em fazer diferente do que estou mandando. Mas, em segundo lugar, quero que me traga aquele presente estranho que me foi enviando por não sei quem. Traga agora mesmo porque quero abrir aquela caixa pra ver o que tem dentro. Leve para a sala dos despachos ao lado, aqui não, que não é pra atiçar a atenção desses bisbilhoteiros beberrões.
Não demorou dois minutos e o feiticeiro já estava na sala indicada acenando para o rei, que havia acabado de dar um murro nas costas do velho sacerdote, que estava se engasgando com a boca cheia de pernil. Assim que o homem da igreja se recuperou do susto e já ia cambaleante novamente em direção aos assados e ao vinho, Gustavo correu em direção ao feiticeiro. Seria o momento de desvendar o que significava aquele inesperado presente.
continua...
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A MENINA QUE CHOVIA (CRÔNICA)
A MENINA QUE CHOVIA
Rangel Alves da Costa*
De início, os pais não demonstravam nenhuma preocupação, afinal de contas é coisa de adolescente gostar de ficar trancada no quarto durante quase todo o tempo que está em casa. Ademais, são inúmeras as mocinhas que só saem do seus quartos porque é o jeito, só vão à escola porque não tem jeito, só não ficam dias e dias trancadas porque ainda não arrumaram um jeito.
Os demais, familiares e outros adultos, esperam que deem satisfação à vida e acham que isto somente é possível convivendo próximas e eles, sempre alegres e “normais”, como dizem. Outros acham que lugar de adolescente é na rua, curtindo, se divertindo nas baladas. Desrespeitando a privacidade, o jeito próprio de ser e o instinto de cada uma, acham que deve ser assim para afastar de suas mentes pensamentos impróprios para a idade ou mesmo que a “síndrome da moça velha” não recaia sobre elas. Puro engano, pois é na liberdade de ser e de pensar que todo o sentido da existência vai sendo construído e reconstruído. E a liberdade de querer se trancar no seu quarto e repassar as páginas da vida é tão significante quanto a liberdade de ir e vir.
Ora, a vida pede que cada um encontre momentos para a reflexão, para fazer um balanço das ações, para partilhar intimamente com o próprio íntimo. É que as pessoas que não conhecem a si mesmas não sabem compreender o outro, não sabem distinguir o que lhes possa fazer bem ou mal, não sabem sequer de suas necessidades. E não importa que desse auto-encontro venha a tristeza, a angústia, a saudade que dói, a lembrança que amarga. Pelo contrário, é sempre bom que as dores da vida digam que estão presentes para que cada um valorize mais suas ações e saiba fazer o mesmo de outro modo.
Verdade é que muitos querem fazer dessa loucura cotidiana, desse corre-corre do dia a dia um motivo para deixar de lado a si mesmos. São conscientes de que precisam parar para refletir, mas insistem em deixar esse diálogo interno sempre para depois. De repente, uma situação não resolvida juntando-se a um erro banal transforma-se num problema muito maior, psicológico até e com graves conseqüências.
Agora me digam que mal faz a alguém procurar no entardecer um cenário ideal para mirar o horizonte e pensar no que foi feito, nas pessoas que ama ou desama, nos problemas, nas alegrias e nos muitos sonhos que vem à mente? Me respondam se é feio recolhecer-se num ambiente propício e sorrir com o que faça sorrir, chorar com o que faça chorar, lembrar daquilo que dá saudade. Se for possível, porque não gritar, cantar, pular, erguer os braços, correr, fazer assim porque o instinto quer se manifestar desse jeito. Mas isto só é possível quando você dialoga com ele, com o seu interior. Ora, se você diz que tem tempo pra tudo, nada mais justo que tenha tempo também pra você mesmo.
Certa feita, porque pessoas viviam somente para os outros, para olhar e falar da vida dos outros, uma bela mocinha foi acusada de ter enlouquecido, de ter perdido de vez suas faculdades mentais e necessitando de ser internada urgentemente. E por que tal acusação?
Simplesmente porque esta mocinha era diferente das outras, gostava de ficar sozinha, passava grande parte do tempo trancada em seu quarto, ficava triste quando devia entristecer, alegrava-se quando seu coração sorria, conversava com o jardim e cochichava com as flores e os espinhos, dava adeus aos pássaros que passavam voando, gostava de ficar minutos a fio olhando o entardecer, a lua e as estrelas. Quiseram chamar o médico quando ela disse que naquele dia estava chovendo por dentro.
Não se sabe como, mas arrumaram um jeito de espreitar a menina quando ela se trancava no seu quarto. Diziam que era pra ter certeza que o caso dela era de internamento mesmo. Sem saber, a bela mocinha, ali dentro e sozinha, comportava-se normalmente, do jeito que se comporta pessoas na sua idade, ora lendo uma carta ou um livro, escrevendo um bilhete, vendo uma fotografia, ouvindo música, deitando na cama e pensando e pensando, ora caminhando de um lado para o outro, angustiada ou debruçada em qualquer lugar triste e pensativa. E nessa tristeza a lágrima lentamente escorrendo pela bela face juvenil.
Numa tarde, dessas de sol impiedoso, a menina estava trancada no seu quarto mais triste do que nunca. Andando de um lado para o outro, ao se aproximar da janela a chuva começou a molhar a vidraça; mas não chovia; os pingos caíam pelo quarto; mas não chovia. A menina estava triste de doer, de fazer chorar, mas quem estava chorando era quem observava aquela tristeza doce na menina que vivia apenas as dúvidas da sua idade. E quem visse a tristeza da menina dizia que ela também chovia.
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
De início, os pais não demonstravam nenhuma preocupação, afinal de contas é coisa de adolescente gostar de ficar trancada no quarto durante quase todo o tempo que está em casa. Ademais, são inúmeras as mocinhas que só saem do seus quartos porque é o jeito, só vão à escola porque não tem jeito, só não ficam dias e dias trancadas porque ainda não arrumaram um jeito.
Os demais, familiares e outros adultos, esperam que deem satisfação à vida e acham que isto somente é possível convivendo próximas e eles, sempre alegres e “normais”, como dizem. Outros acham que lugar de adolescente é na rua, curtindo, se divertindo nas baladas. Desrespeitando a privacidade, o jeito próprio de ser e o instinto de cada uma, acham que deve ser assim para afastar de suas mentes pensamentos impróprios para a idade ou mesmo que a “síndrome da moça velha” não recaia sobre elas. Puro engano, pois é na liberdade de ser e de pensar que todo o sentido da existência vai sendo construído e reconstruído. E a liberdade de querer se trancar no seu quarto e repassar as páginas da vida é tão significante quanto a liberdade de ir e vir.
Ora, a vida pede que cada um encontre momentos para a reflexão, para fazer um balanço das ações, para partilhar intimamente com o próprio íntimo. É que as pessoas que não conhecem a si mesmas não sabem compreender o outro, não sabem distinguir o que lhes possa fazer bem ou mal, não sabem sequer de suas necessidades. E não importa que desse auto-encontro venha a tristeza, a angústia, a saudade que dói, a lembrança que amarga. Pelo contrário, é sempre bom que as dores da vida digam que estão presentes para que cada um valorize mais suas ações e saiba fazer o mesmo de outro modo.
Verdade é que muitos querem fazer dessa loucura cotidiana, desse corre-corre do dia a dia um motivo para deixar de lado a si mesmos. São conscientes de que precisam parar para refletir, mas insistem em deixar esse diálogo interno sempre para depois. De repente, uma situação não resolvida juntando-se a um erro banal transforma-se num problema muito maior, psicológico até e com graves conseqüências.
Agora me digam que mal faz a alguém procurar no entardecer um cenário ideal para mirar o horizonte e pensar no que foi feito, nas pessoas que ama ou desama, nos problemas, nas alegrias e nos muitos sonhos que vem à mente? Me respondam se é feio recolhecer-se num ambiente propício e sorrir com o que faça sorrir, chorar com o que faça chorar, lembrar daquilo que dá saudade. Se for possível, porque não gritar, cantar, pular, erguer os braços, correr, fazer assim porque o instinto quer se manifestar desse jeito. Mas isto só é possível quando você dialoga com ele, com o seu interior. Ora, se você diz que tem tempo pra tudo, nada mais justo que tenha tempo também pra você mesmo.
Certa feita, porque pessoas viviam somente para os outros, para olhar e falar da vida dos outros, uma bela mocinha foi acusada de ter enlouquecido, de ter perdido de vez suas faculdades mentais e necessitando de ser internada urgentemente. E por que tal acusação?
Simplesmente porque esta mocinha era diferente das outras, gostava de ficar sozinha, passava grande parte do tempo trancada em seu quarto, ficava triste quando devia entristecer, alegrava-se quando seu coração sorria, conversava com o jardim e cochichava com as flores e os espinhos, dava adeus aos pássaros que passavam voando, gostava de ficar minutos a fio olhando o entardecer, a lua e as estrelas. Quiseram chamar o médico quando ela disse que naquele dia estava chovendo por dentro.
Não se sabe como, mas arrumaram um jeito de espreitar a menina quando ela se trancava no seu quarto. Diziam que era pra ter certeza que o caso dela era de internamento mesmo. Sem saber, a bela mocinha, ali dentro e sozinha, comportava-se normalmente, do jeito que se comporta pessoas na sua idade, ora lendo uma carta ou um livro, escrevendo um bilhete, vendo uma fotografia, ouvindo música, deitando na cama e pensando e pensando, ora caminhando de um lado para o outro, angustiada ou debruçada em qualquer lugar triste e pensativa. E nessa tristeza a lágrima lentamente escorrendo pela bela face juvenil.
Numa tarde, dessas de sol impiedoso, a menina estava trancada no seu quarto mais triste do que nunca. Andando de um lado para o outro, ao se aproximar da janela a chuva começou a molhar a vidraça; mas não chovia; os pingos caíam pelo quarto; mas não chovia. A menina estava triste de doer, de fazer chorar, mas quem estava chorando era quem observava aquela tristeza doce na menina que vivia apenas as dúvidas da sua idade. E quem visse a tristeza da menina dizia que ela também chovia.
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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O sexo (Poesia)
O sexo
O sexo
se apaixona
e enlouquece
O sexo
sabe amar
e corresponde
O sexo
tem saudades
e entristece
O sexo
tem desejos
e quer
O sexo
tem dúvidas
e escolhe
O sexo
quer sabor
e experimenta
O sexo
tem sede
e bebe
O sexo
tem fome
e pede
O sexo
é faminto
e quer mais
O sexo
quer mais
e quer mais
mais
s
e
x
o
s e x o...
Rangel Alves da Costa
O sexo
se apaixona
e enlouquece
O sexo
sabe amar
e corresponde
O sexo
tem saudades
e entristece
O sexo
tem desejos
e quer
O sexo
tem dúvidas
e escolhe
O sexo
quer sabor
e experimenta
O sexo
tem sede
e bebe
O sexo
tem fome
e pede
O sexo
é faminto
e quer mais
O sexo
quer mais
e quer mais
mais
s
e
x
o
s e x o...
Rangel Alves da Costa
NO REINO DO REI MENINO – XIII
NO REINO DO REI MENINO – XIII
Rangel Alves da Costa*
“Alguém me ensinou que para ser um rei não é preciso viver rodeado de luxo e riqueza, rodeado de certas pessoas que só querem tirar proveito do poder e longe das pessoas que formam o seu reino e dão vida ao reinado. Alguém me disse também que para ser rei não é necessário ter uma coroa que tenha valor maior que o próprio reino, roupas luxuosas que são mais caras do que aquilo que possui e veste toda a população e comida que só tem boniteza e custa uma fortuna, mas que não tem o mesmo sabor da comida que o povo prepara em suas casas e come, mesmo que seja pouca ou quase nada. Quem me disse tudo isso foi um grande amigo meu, que todos chamam de feiticeiro do bem, mas eu chamo simplesmente de amigo. Vocês vão conhecer ele melhor e saber o que estou dizendo. Mas esse amigo não me ensinou a dizer o que vou dizer agora e quero que todos ouçam isso como palavras de rei. Pois bem, vamos lá. A primeira coisa é que esta coroa toda feita de ouro e enfeitada de jóias e pedras preciosas que vocês estão vendo ali, deixará de pertencer ao rei e ao Reinado de Oninem...”.
Um murmurejar se formou. As pessoas presentes olhavam umas para as outras sem entender nada, procurando uma resposta para saber o que o rei menino queria dizer com a coroa deixar de pertencer ao reino. Alguns diziam baixinho que era isso que dava colocar um frangote daquele como rei; outros diziam que não passava de brincadeira de criança; e ainda outros afirmavam que mesmo novinho o menino já estava enlouquecendo. O velho sacerdote exigiu silêncio para que o rei continuasse a falar.
“Como eu estava dizendo, aquela coroa deixará de pertencer ao Reino de Oninem porque iremos vendê-la para investir o valor de sua venda no próprio reino. Quem trabalha para o reino não precisa receber? Os nossos valentes comandantes e soldados não precisam viver com dignidade? O povo não precisa de terras apropriadas para plantar e colher seu ganha pão? Os pequenos artesãos não precisam de incentivo para ampliar seus negócios? O reino não precisa de armas mais modernas para se proteger? Então, o dinheiro recebido com a venda da coroa será investido em tudo isso e muito mais, até que a gente possa colocar o reinado em ordem e fazer com que ele seja novamente invejado e respeitado por todos...”.
Neste momento os gritos e os aplausos eram ensurdecedores. Muitos coravam e choravam de alegria; alguns desmaiaram e tiveram que ser amparados pelos outros de feições também combalidas de emoção. O velho sacerdote se benzeu ao ver, por um só instante, Bernal surgir como aparição atordoada ao lado do rei. Foi novamente exigido que fizessem silêncio para que o rei prosseguisse com suas palavras.
“Vocês podem até achar loucura o que vou dizer agora, mas tenho que dizer logo para que não tomem como surpresa depois. Amanhã, a partir das dez horas, os pais que tiverem filhos homens entre seis e oito anos, nem menos nem mais que isso, deverão levá-los ao castelo, ao meu encontro, pois todo o conselho do reino passará a ser formada por meninos entre os seis e os oito anos, na faixa da minha idade, que tenho sete. Eu mesmo escolherei a dedo, olhando no olho de cada um, escolhendo aqueles que me auxiliarão no comando dos destinos de Oninem...”
E revirou tudo novamente. O que antes era demonstração de júbilo e alegria agora se transformava em gestos de dúvida e preocupação. “Eu não disse que o menino tava doidinho? Olhe aí o resultado”, disse um. “Quem é que vai acreditar e respeitar um rei menino, com o juízo doente, e um reinado de meninada?”, indagou outro. “Me perdoe meu Deus, mas nunca ouvi tanta asneira em toda minha vida. Amanhã mesmo vou me aposentar de minhas funções religiosas, sob pena de morrer numa situação como essa”, disse o velho sacerdote olhando para o alto. E continuou o rei Gustavo de Oninem:
“Vou provar a todos do que somos capazes. E isto é palavra de rei. Só mais uma coisa. Agora podem ir se divertir, beber com cuidado e brincar, mas só acho que ao invés de comerem a carne toda na festa melhor seria se levassem a parte que caberá a cada um para casa, pois lá terá maior serventia na alimentação dos seus filhos e do restante da família. Era somente isso que tinha a dizer e muito obrigado pela presença de todos. O rei fará o que tiver ao seu alcance por vocês, e isso eu garanto”.
Como é de praxe em cerimônias de coroação, após o ritual muitos foram os presentes para o rei, colocados ao lado do altar. Naquela ocasião consistiam apenas em pequenas lembranças oferecidas por um povo que não tinha como agradar ao seu novo soberano com presentes mais valiosos. Contudo, em meio aos humildes agrados realçava um caixote mediano, embrulhado com seda da fina textura e enlaçado por fitas com acabamento dourado. Era um misterioso presente enviado por um desconhecido rei.
No retorno ao castelo, andando animadamente junto ao povo, Gustavo não pode perceber um cavaleiro posicionado além dos portões da fortaleza real. Aquele não havia trazido presente algum, mas fora enviado como espião pelo rei mal-afamado que dera guarida ao se pai, o fugitivo Lucius. O que estaria espionando tal cavaleiro?
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
“Alguém me ensinou que para ser um rei não é preciso viver rodeado de luxo e riqueza, rodeado de certas pessoas que só querem tirar proveito do poder e longe das pessoas que formam o seu reino e dão vida ao reinado. Alguém me disse também que para ser rei não é necessário ter uma coroa que tenha valor maior que o próprio reino, roupas luxuosas que são mais caras do que aquilo que possui e veste toda a população e comida que só tem boniteza e custa uma fortuna, mas que não tem o mesmo sabor da comida que o povo prepara em suas casas e come, mesmo que seja pouca ou quase nada. Quem me disse tudo isso foi um grande amigo meu, que todos chamam de feiticeiro do bem, mas eu chamo simplesmente de amigo. Vocês vão conhecer ele melhor e saber o que estou dizendo. Mas esse amigo não me ensinou a dizer o que vou dizer agora e quero que todos ouçam isso como palavras de rei. Pois bem, vamos lá. A primeira coisa é que esta coroa toda feita de ouro e enfeitada de jóias e pedras preciosas que vocês estão vendo ali, deixará de pertencer ao rei e ao Reinado de Oninem...”.
Um murmurejar se formou. As pessoas presentes olhavam umas para as outras sem entender nada, procurando uma resposta para saber o que o rei menino queria dizer com a coroa deixar de pertencer ao reino. Alguns diziam baixinho que era isso que dava colocar um frangote daquele como rei; outros diziam que não passava de brincadeira de criança; e ainda outros afirmavam que mesmo novinho o menino já estava enlouquecendo. O velho sacerdote exigiu silêncio para que o rei continuasse a falar.
“Como eu estava dizendo, aquela coroa deixará de pertencer ao Reino de Oninem porque iremos vendê-la para investir o valor de sua venda no próprio reino. Quem trabalha para o reino não precisa receber? Os nossos valentes comandantes e soldados não precisam viver com dignidade? O povo não precisa de terras apropriadas para plantar e colher seu ganha pão? Os pequenos artesãos não precisam de incentivo para ampliar seus negócios? O reino não precisa de armas mais modernas para se proteger? Então, o dinheiro recebido com a venda da coroa será investido em tudo isso e muito mais, até que a gente possa colocar o reinado em ordem e fazer com que ele seja novamente invejado e respeitado por todos...”.
Neste momento os gritos e os aplausos eram ensurdecedores. Muitos coravam e choravam de alegria; alguns desmaiaram e tiveram que ser amparados pelos outros de feições também combalidas de emoção. O velho sacerdote se benzeu ao ver, por um só instante, Bernal surgir como aparição atordoada ao lado do rei. Foi novamente exigido que fizessem silêncio para que o rei prosseguisse com suas palavras.
“Vocês podem até achar loucura o que vou dizer agora, mas tenho que dizer logo para que não tomem como surpresa depois. Amanhã, a partir das dez horas, os pais que tiverem filhos homens entre seis e oito anos, nem menos nem mais que isso, deverão levá-los ao castelo, ao meu encontro, pois todo o conselho do reino passará a ser formada por meninos entre os seis e os oito anos, na faixa da minha idade, que tenho sete. Eu mesmo escolherei a dedo, olhando no olho de cada um, escolhendo aqueles que me auxiliarão no comando dos destinos de Oninem...”
E revirou tudo novamente. O que antes era demonstração de júbilo e alegria agora se transformava em gestos de dúvida e preocupação. “Eu não disse que o menino tava doidinho? Olhe aí o resultado”, disse um. “Quem é que vai acreditar e respeitar um rei menino, com o juízo doente, e um reinado de meninada?”, indagou outro. “Me perdoe meu Deus, mas nunca ouvi tanta asneira em toda minha vida. Amanhã mesmo vou me aposentar de minhas funções religiosas, sob pena de morrer numa situação como essa”, disse o velho sacerdote olhando para o alto. E continuou o rei Gustavo de Oninem:
“Vou provar a todos do que somos capazes. E isto é palavra de rei. Só mais uma coisa. Agora podem ir se divertir, beber com cuidado e brincar, mas só acho que ao invés de comerem a carne toda na festa melhor seria se levassem a parte que caberá a cada um para casa, pois lá terá maior serventia na alimentação dos seus filhos e do restante da família. Era somente isso que tinha a dizer e muito obrigado pela presença de todos. O rei fará o que tiver ao seu alcance por vocês, e isso eu garanto”.
Como é de praxe em cerimônias de coroação, após o ritual muitos foram os presentes para o rei, colocados ao lado do altar. Naquela ocasião consistiam apenas em pequenas lembranças oferecidas por um povo que não tinha como agradar ao seu novo soberano com presentes mais valiosos. Contudo, em meio aos humildes agrados realçava um caixote mediano, embrulhado com seda da fina textura e enlaçado por fitas com acabamento dourado. Era um misterioso presente enviado por um desconhecido rei.
No retorno ao castelo, andando animadamente junto ao povo, Gustavo não pode perceber um cavaleiro posicionado além dos portões da fortaleza real. Aquele não havia trazido presente algum, mas fora enviado como espião pelo rei mal-afamado que dera guarida ao se pai, o fugitivo Lucius. O que estaria espionando tal cavaleiro?
continua...
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Amor demais (Poesia)
Amor demais
Te amo meu amor
Bem sabes
Conheces bem as verdades
Do meu coração
E se digo
Desse amor em verso
É porque as palavras
Foram para Sueli
As cartas
Foram para Carmem
Com quem
Meu amor eu dividi
Mas não chores
Meu amor imploro
Pois te amarei
Do mesmo jeito
Que amo Maria
Lúcia
Josefa
Rose
Diva
E Paula
Somente.
Rangel Alves da Costa
Te amo meu amor
Bem sabes
Conheces bem as verdades
Do meu coração
E se digo
Desse amor em verso
É porque as palavras
Foram para Sueli
As cartas
Foram para Carmem
Com quem
Meu amor eu dividi
Mas não chores
Meu amor imploro
Pois te amarei
Do mesmo jeito
Que amo Maria
Lúcia
Josefa
Rose
Diva
E Paula
Somente.
Rangel Alves da Costa
Humildade (Poesia)
Humildade
Se teus olhos vissem
O que meus olhos viram
Se teu passo andasse
O que tive que chegar
Se tuas mãos tocassem
O que tive que abraçar
Se tua pele sentisse
O que tive que queimar
Se tua boca murmurasse
O que tive que gritar
Não, não diria mais
Que conheceu a vida
E eu não estava lá
Que sabe o que é paixão
E eu nem sei amar
Pois também sei perder
O que você não vai ganhar.
Rangel Alves da Costa
Se teus olhos vissem
O que meus olhos viram
Se teu passo andasse
O que tive que chegar
Se tuas mãos tocassem
O que tive que abraçar
Se tua pele sentisse
O que tive que queimar
Se tua boca murmurasse
O que tive que gritar
Não, não diria mais
Que conheceu a vida
E eu não estava lá
Que sabe o que é paixão
E eu nem sei amar
Pois também sei perder
O que você não vai ganhar.
Rangel Alves da Costa
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010
NO REINO DO REI MENINO – XII
NO REINO DO REI MENINO – XII
Rangel Alves da Costa*
A Coroa Real do Reino de Oninem estava lá fulgurante, irradiando história e riqueza, a mais perfeita demonstração de poder, toda feita de ouro escocês, pesando 910 gramas, com 31,5 centímetros de altura e possuindo ao todo mais de 3000 jóias, entre os quais a safira, o rubi "Príncipe Negro"; e o mais precioso de todos, o diamante africano "Collinan II". Havia ainda nesta coroa outras 2800 gemas entre pedras preciosas e pérolas. Repousavam sobre ela pérolas brancas, jacintos, topazes brancas, carbúnclos, quartzos, ametistas e diamantes.
Nos preparativos para uma eventual necessidade de fuga, o então rei Lucius sempre priorizou a coroa real como o seu mais precioso troféu. Estava tão bem escondida junto às outras jóias e preciosidades e em local tão estratégico, que não haveria como esquecê-la no momento que fosse embarcar sua fortuna. No instante da partida, para que não restasse dúvida, decidiu colocá-la ao seu lado na carruagem. Chegando aos tropeços e atropelos ao seu destino, num pequenino reino de um amigo reconhecidamente mal-afamado, desembarcou feliz com suas preciosidades. No entanto, não durou muito e o pequeno baú onde se encontrava a coroa foi encontrado aberto e nada dentro dela foi encontrado. A coroa havia simplesmente sumido. Virou e revirou seus aposentos e nada de encontrá-la, até que entrou pela janela um pequeno bilhete, trazido pelo vento, com os seguintes dizeres: Não adianta procurar. A coroa é do rei e o rei a usará. Logo imaginou que aquilo tudo era armação do seu amigo mal-afamado, e desde então passou a ter como seu principal objetivo recuperar, onde estivesse e com quem estivesse, a fortuna representada na coroa.
Mas a coroa agora estava ali, no seu devido lugar, à espera do momento em que o seu legítimo detentor celebraria o alcance maior do poder real, que era a coroação. Mais uma vez Bernal sabia quem estava por trás da aparição repentina daquela preciosidade, pois pôde enxergar no espelho as figuras sorridentes de Igor, um dos mais poderosos gnomos, e Rimon, um duende que habita as margens dos rios. Melhor assim, pensou.
Ao redor do castelo e nas proximidades da igreja a agitação era uma só, tamanho era o número de pessoas indo e vindo, com feições alegres e ares de contentamento. O branco e o lilás ornamentavam o castelo e a igreja. As bandeirolas tremulando nos mastros por toda parte davam a impressão de que o Reino de Oninem retomava de vez o respeito por suas tradições.
A igreja, construída ao lado e no mesmo período do castelo, era pequena, porém de uma arquitetura magistral, toda ornada com objetos semipreciosos e trabalhada com madeira de cedro. Não haviam imagens sacras espalhadas pelo seu interior ou no púlpito, pois todos os santos reverenciados estavam esculpidos na madeira e tomando conta das paredes, da abóbada e do altar. No centro deste, uma cruz imponente com o brasão do reino esculpido logo abaixo da imagem também esculpida de Cristo. Era a encarnação da fé que também daria uma nova vida a Oninem.
O lugar escolhido para a cerimônia, a capela real, garante, através da Igreja, a legitimidade da sagração e da coroação. Por meio da igreja, o soberano adentra o universo mítico-sobrenatural, tornando sacralizada a transmissão do poder. Por ser considerada um espaço sagrado e propício à comunicação divina, a igreja deve ser vista como autoridade na legitimação dos rituais. Assim era também em Oninem.
Na hora marcada, o pequeno Gustavo surgiu na porta principal do castelo, acompanhado somente de duas criadas. Havia sido um pedido seu, vez que Bernal afirmou categoricamente que não poderia acompanhá-lo naquele cortejo, pois teria que se ausentar por um breve momento. E assim seguiu o futuro rei, calmo e sorridente, acenando para a multidão que se aglomerava, no curto percurso entre a casa real e a casa que lhe eternizaria como soberano, que era a igreja.
Um velho serviçal de Deus fora chamado de muito longe, na arquidiocese-geral do País dos Voantes, para realizar a cerimônia de coroação de Gustavo Adnia Oneuqep, a partir de então chamado Gustavo de Oninem. Ao iniciar a cerimônia litúrgica, primeiro passo do ritual de coroação, a autoridade religiosa relatou apaixonadamente sobre as qualidades e virtudes do Reino de Oninem, seus corajosos soberanos e seu povo incansavelmente trabalhador. Diria isso em qualquer lugar que fosse e em qualquer cerimônia que realizasse. Contudo, no instante em que se daria o ato da coroação, o velho sacerdote se absteve de realizá-la e pediu para que chamassem o homem mais idoso daquele reino. E assim, ao chegar amparado por parentes, com um intenso brilho de alegria no olhar, não demorou muito e o velho Remígio estava pronunciando as seguintes palavras:
“Pela graça divina, pela eterna fé em Deus que sustenta e sustentará o Rei de Oninem, consagro-te, neste momento e que perdure por longos e longos anos, Gustavo Adnia Oneuqep, doravante Gustavo de Oninem, nosso rei e nosso protetor”.
Após fazer o juramento de fidelidade ao reino e ao seu povo, o pequeno rei começou a surpreender a todos. Decidiu não receber as insígnias reais, que eram a espada, representando a defesa da Igreja, a coroa, que simboliza a glória e a santidade, e o manto, simbolizando a proteção da realeza, e subiu no altar para falar. O velho sacerdote teve de ser amparado para não desmaiar; o povo ficou boquiaberto e de ouvidos atentos. Bernal, que estava na igreja mas ninguém podia ver, quase perde seu encantamento. O novo rei iria falar.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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A Coroa Real do Reino de Oninem estava lá fulgurante, irradiando história e riqueza, a mais perfeita demonstração de poder, toda feita de ouro escocês, pesando 910 gramas, com 31,5 centímetros de altura e possuindo ao todo mais de 3000 jóias, entre os quais a safira, o rubi "Príncipe Negro"; e o mais precioso de todos, o diamante africano "Collinan II". Havia ainda nesta coroa outras 2800 gemas entre pedras preciosas e pérolas. Repousavam sobre ela pérolas brancas, jacintos, topazes brancas, carbúnclos, quartzos, ametistas e diamantes.
Nos preparativos para uma eventual necessidade de fuga, o então rei Lucius sempre priorizou a coroa real como o seu mais precioso troféu. Estava tão bem escondida junto às outras jóias e preciosidades e em local tão estratégico, que não haveria como esquecê-la no momento que fosse embarcar sua fortuna. No instante da partida, para que não restasse dúvida, decidiu colocá-la ao seu lado na carruagem. Chegando aos tropeços e atropelos ao seu destino, num pequenino reino de um amigo reconhecidamente mal-afamado, desembarcou feliz com suas preciosidades. No entanto, não durou muito e o pequeno baú onde se encontrava a coroa foi encontrado aberto e nada dentro dela foi encontrado. A coroa havia simplesmente sumido. Virou e revirou seus aposentos e nada de encontrá-la, até que entrou pela janela um pequeno bilhete, trazido pelo vento, com os seguintes dizeres: Não adianta procurar. A coroa é do rei e o rei a usará. Logo imaginou que aquilo tudo era armação do seu amigo mal-afamado, e desde então passou a ter como seu principal objetivo recuperar, onde estivesse e com quem estivesse, a fortuna representada na coroa.
Mas a coroa agora estava ali, no seu devido lugar, à espera do momento em que o seu legítimo detentor celebraria o alcance maior do poder real, que era a coroação. Mais uma vez Bernal sabia quem estava por trás da aparição repentina daquela preciosidade, pois pôde enxergar no espelho as figuras sorridentes de Igor, um dos mais poderosos gnomos, e Rimon, um duende que habita as margens dos rios. Melhor assim, pensou.
Ao redor do castelo e nas proximidades da igreja a agitação era uma só, tamanho era o número de pessoas indo e vindo, com feições alegres e ares de contentamento. O branco e o lilás ornamentavam o castelo e a igreja. As bandeirolas tremulando nos mastros por toda parte davam a impressão de que o Reino de Oninem retomava de vez o respeito por suas tradições.
A igreja, construída ao lado e no mesmo período do castelo, era pequena, porém de uma arquitetura magistral, toda ornada com objetos semipreciosos e trabalhada com madeira de cedro. Não haviam imagens sacras espalhadas pelo seu interior ou no púlpito, pois todos os santos reverenciados estavam esculpidos na madeira e tomando conta das paredes, da abóbada e do altar. No centro deste, uma cruz imponente com o brasão do reino esculpido logo abaixo da imagem também esculpida de Cristo. Era a encarnação da fé que também daria uma nova vida a Oninem.
O lugar escolhido para a cerimônia, a capela real, garante, através da Igreja, a legitimidade da sagração e da coroação. Por meio da igreja, o soberano adentra o universo mítico-sobrenatural, tornando sacralizada a transmissão do poder. Por ser considerada um espaço sagrado e propício à comunicação divina, a igreja deve ser vista como autoridade na legitimação dos rituais. Assim era também em Oninem.
Na hora marcada, o pequeno Gustavo surgiu na porta principal do castelo, acompanhado somente de duas criadas. Havia sido um pedido seu, vez que Bernal afirmou categoricamente que não poderia acompanhá-lo naquele cortejo, pois teria que se ausentar por um breve momento. E assim seguiu o futuro rei, calmo e sorridente, acenando para a multidão que se aglomerava, no curto percurso entre a casa real e a casa que lhe eternizaria como soberano, que era a igreja.
Um velho serviçal de Deus fora chamado de muito longe, na arquidiocese-geral do País dos Voantes, para realizar a cerimônia de coroação de Gustavo Adnia Oneuqep, a partir de então chamado Gustavo de Oninem. Ao iniciar a cerimônia litúrgica, primeiro passo do ritual de coroação, a autoridade religiosa relatou apaixonadamente sobre as qualidades e virtudes do Reino de Oninem, seus corajosos soberanos e seu povo incansavelmente trabalhador. Diria isso em qualquer lugar que fosse e em qualquer cerimônia que realizasse. Contudo, no instante em que se daria o ato da coroação, o velho sacerdote se absteve de realizá-la e pediu para que chamassem o homem mais idoso daquele reino. E assim, ao chegar amparado por parentes, com um intenso brilho de alegria no olhar, não demorou muito e o velho Remígio estava pronunciando as seguintes palavras:
“Pela graça divina, pela eterna fé em Deus que sustenta e sustentará o Rei de Oninem, consagro-te, neste momento e que perdure por longos e longos anos, Gustavo Adnia Oneuqep, doravante Gustavo de Oninem, nosso rei e nosso protetor”.
Após fazer o juramento de fidelidade ao reino e ao seu povo, o pequeno rei começou a surpreender a todos. Decidiu não receber as insígnias reais, que eram a espada, representando a defesa da Igreja, a coroa, que simboliza a glória e a santidade, e o manto, simbolizando a proteção da realeza, e subiu no altar para falar. O velho sacerdote teve de ser amparado para não desmaiar; o povo ficou boquiaberto e de ouvidos atentos. Bernal, que estava na igreja mas ninguém podia ver, quase perde seu encantamento. O novo rei iria falar.
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Advogado e poeta
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O CATADOR DE PAPEL
O CATADOR DE PAPEL
Rangel Alves da Costa*
João, Pedro ou José era um desses seres humanos marcados pela pobreza, vivendo quase na miséria absoluta e, sem qualquer esperança de arrumar emprego, vivia pelas ruas catando papel para vender e assim ganhar o pão de cada dia. Não vamos falar na família de João, Pedro ou José, pois assim pouparemos de relatar outros sofrimentos
Pois bem, uma pessoa maltrapilha com um nome desses fazia sua labuta cotidiana pelas ruas de um bairro rico, desses cheios de alamedas e flamboiãs, recolhendo todo tipo de papel e papelão ali deixados como lixo, quando se deparou com uma fotografia grande, dessas de se colocar em moldura na parede, ali jogada por cima de sacolas plásticas contendo papéis e outros objetos. Na fotografia antiga, uma bela mulher, com uma feição de vivacidade e sorriso expressivo. Apanhou o retrato, limpou cuidadosamente, admirou-se daquilo tudo e resolveu não jogá-lo na pequena carroça junto aos demais papéis. Guardou-o cuidadosamente.
Passados uns três dias, fazendo sua via-crucis pelo mesmo lugar, o catador de papel novamente encontrou algo estranho jogado no lixo defronte ao mesmo casarão em que havia recolhido a fotografia. Era um pacote com dezenas de cartas já amareladas pelo tempo, porém ainda em ótimo estado de conservação e com letras bem legíveis. Mas João, Pedro ou José não sabia ler; mesmo assim achou melhor não jogar aquelas cartas junto aos outros papéis na carrocinha. Guardou-as cuidadosamente.
Em outras ocasiões, naquela rotina de sol, chuva e busca do pão, o catador de papel foi encontrando outros objetos no lixo do casarão que, aí sim, ao invés de despertar sua curiosidade, já passaram a demonstrar preocupação.
Primeiro foi uma bolsinha plástica contendo uma aliança e outras pequenas jóias antigas; depois um rosário de orações e uma imagem bíblica bonita; e, por último, uma bíblia, toda marcada com fitinhas nos evangelhos, versículos e salmos. Nada disso foi para o lixo, como realmente não deveriam ir, principalmente por serem objetos de valor, cuja venda poderia render algum dinheiro. Porém nada foi vendido por João, Pedro ou José.
Numa certa manhã, o catador de papel decidiu que não faria seu humilde trabalho naquele dia. Iria, sim, até o casarão e lá procuraria conversar com alguém, de modo a informar sobre os objetos que havia encontrado ali como lixo e procurar saber quais os motivos de uma pessoa querer se desfazer daquele modo de objetos tão pessoais e importantes. Vestiu sua melhor roupa e se dirigiu até a antiga residência.
Chegou em frente ao portão, olhou de cima a baixo o casarão e percebeu que tudo estava fechado, nenhuma janela sequer aberta. Mesmo assim tocou a campainha uma, três, dez vezes e nada. Ainda estava ali parado quando alguém o chamou. Era uma senhora numa casa no outro lado da rua. Se dirigiu até o local e foi recebido pela mulher com as seguintes palavras: “Não adianta chamar meu filho; há mais de cinco anos que não mora ninguém naquela casa. A última moradora, Dona Carlota, morreu rica, porém sozinha, a se lastimar da solidão e da saudade do seu marido falecido há muito tempo”.
João, Pedro ou José estremeceu, mas não disse nenhuma palavra. Voltou atordoado para casa, pensativo, pensativo, misteriosamente pensativo. O que faria com aqueles objetos fantasmas? Ora, só poderiam ser coisas do outro mundo. Seria pecado vender coisa do outro mundo?, se perguntou.
Chegando em casa, sem dizer nada a ninguém, foi diretamente verificar se os objetos ainda estavam no lugar que havia guardado. Estavam, mas uma das cartas havia se soltado e estava jogada num canto. Mas ele não sabia ler, meu Deus.
A mulher veio correndo quando ele chamou. “O que tá escrito aí?”, perguntou. E a mulher leu e disse: “Ela só diz que a fotografia e as cartas devem ser queimadas, as jóias devem ser vendidas e o rosário e a bíblia servirão para que tenha fé em Deus que será recompensado na vida, e diz ainda que no mais humilde trabalho pode estar a chave para a felicidade. Só isso”.
“E onde está a imagem de um santo que estava aqui?”, perguntou ele. “Que santo que nada homem, será que você não conhece nem mais a imagem do Nosso Senhor Jesus Cristo? Olha lá ele já na parede”.
No outro dia, ao passar em frente ao casarão, mesmo assustado foi ver o que havia no lixo. E lá encontrou um belíssimo colar de esmeraldas cravejado de diamantes.
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Rangel Alves da Costa*
João, Pedro ou José era um desses seres humanos marcados pela pobreza, vivendo quase na miséria absoluta e, sem qualquer esperança de arrumar emprego, vivia pelas ruas catando papel para vender e assim ganhar o pão de cada dia. Não vamos falar na família de João, Pedro ou José, pois assim pouparemos de relatar outros sofrimentos
Pois bem, uma pessoa maltrapilha com um nome desses fazia sua labuta cotidiana pelas ruas de um bairro rico, desses cheios de alamedas e flamboiãs, recolhendo todo tipo de papel e papelão ali deixados como lixo, quando se deparou com uma fotografia grande, dessas de se colocar em moldura na parede, ali jogada por cima de sacolas plásticas contendo papéis e outros objetos. Na fotografia antiga, uma bela mulher, com uma feição de vivacidade e sorriso expressivo. Apanhou o retrato, limpou cuidadosamente, admirou-se daquilo tudo e resolveu não jogá-lo na pequena carroça junto aos demais papéis. Guardou-o cuidadosamente.
Passados uns três dias, fazendo sua via-crucis pelo mesmo lugar, o catador de papel novamente encontrou algo estranho jogado no lixo defronte ao mesmo casarão em que havia recolhido a fotografia. Era um pacote com dezenas de cartas já amareladas pelo tempo, porém ainda em ótimo estado de conservação e com letras bem legíveis. Mas João, Pedro ou José não sabia ler; mesmo assim achou melhor não jogar aquelas cartas junto aos outros papéis na carrocinha. Guardou-as cuidadosamente.
Em outras ocasiões, naquela rotina de sol, chuva e busca do pão, o catador de papel foi encontrando outros objetos no lixo do casarão que, aí sim, ao invés de despertar sua curiosidade, já passaram a demonstrar preocupação.
Primeiro foi uma bolsinha plástica contendo uma aliança e outras pequenas jóias antigas; depois um rosário de orações e uma imagem bíblica bonita; e, por último, uma bíblia, toda marcada com fitinhas nos evangelhos, versículos e salmos. Nada disso foi para o lixo, como realmente não deveriam ir, principalmente por serem objetos de valor, cuja venda poderia render algum dinheiro. Porém nada foi vendido por João, Pedro ou José.
Numa certa manhã, o catador de papel decidiu que não faria seu humilde trabalho naquele dia. Iria, sim, até o casarão e lá procuraria conversar com alguém, de modo a informar sobre os objetos que havia encontrado ali como lixo e procurar saber quais os motivos de uma pessoa querer se desfazer daquele modo de objetos tão pessoais e importantes. Vestiu sua melhor roupa e se dirigiu até a antiga residência.
Chegou em frente ao portão, olhou de cima a baixo o casarão e percebeu que tudo estava fechado, nenhuma janela sequer aberta. Mesmo assim tocou a campainha uma, três, dez vezes e nada. Ainda estava ali parado quando alguém o chamou. Era uma senhora numa casa no outro lado da rua. Se dirigiu até o local e foi recebido pela mulher com as seguintes palavras: “Não adianta chamar meu filho; há mais de cinco anos que não mora ninguém naquela casa. A última moradora, Dona Carlota, morreu rica, porém sozinha, a se lastimar da solidão e da saudade do seu marido falecido há muito tempo”.
João, Pedro ou José estremeceu, mas não disse nenhuma palavra. Voltou atordoado para casa, pensativo, pensativo, misteriosamente pensativo. O que faria com aqueles objetos fantasmas? Ora, só poderiam ser coisas do outro mundo. Seria pecado vender coisa do outro mundo?, se perguntou.
Chegando em casa, sem dizer nada a ninguém, foi diretamente verificar se os objetos ainda estavam no lugar que havia guardado. Estavam, mas uma das cartas havia se soltado e estava jogada num canto. Mas ele não sabia ler, meu Deus.
A mulher veio correndo quando ele chamou. “O que tá escrito aí?”, perguntou. E a mulher leu e disse: “Ela só diz que a fotografia e as cartas devem ser queimadas, as jóias devem ser vendidas e o rosário e a bíblia servirão para que tenha fé em Deus que será recompensado na vida, e diz ainda que no mais humilde trabalho pode estar a chave para a felicidade. Só isso”.
“E onde está a imagem de um santo que estava aqui?”, perguntou ele. “Que santo que nada homem, será que você não conhece nem mais a imagem do Nosso Senhor Jesus Cristo? Olha lá ele já na parede”.
No outro dia, ao passar em frente ao casarão, mesmo assustado foi ver o que havia no lixo. E lá encontrou um belíssimo colar de esmeraldas cravejado de diamantes.
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NO REINO DO REI MENINO – XI
NO REINO DO REI MENINO – XI
Rangel Alves da Costa*
À noite, enquanto Gustavo sonhava com duendes e gnomos, seres fantásticos das florestas, rodeando em festa seu castelo, Bernal fazia rituais, espalhava incenso pelos quatro cantos da moradia real, abria e fechava seu livro milenar de magias e, vez por outra, conversava com sacerdotes encantados que estavam ali especialmente para ajudá-lo nos preparativos para a apresentação do novo soberano aos seus súditos.
Durante toda a noite e adentrando a madrugada, o feiticeiro do bem preparou seus encantamentos para que, logo ao primeiro luzir do sol, na fronteira entre o amanhecer e o clarear, suas oferendas, suas palavras e seus gestos fossem aceitos pelos deuses e a festa de coroação do novo soberano de Oninem ocorresse dentro da maior normalidade, como se a cerimônia já fosse do conhecimento e estivesse na expectativa de todos.
Assim, ao se aproximar da madrugada, adiante de Bernal, num pequeno compartimento da torre do castelo, estavam espalhados numa tarrafa jogada ao chão alimentos, plantas e flores, metais, pedras, ostras, tecidos, fibras vegetais, sementes, perfumes, óleos e incensos queimando e espalhando pelo ar um forte cheiro de mirra, lavanda e cedro.
Dez minutos após, todos esses objetos foram embrulhados na rede e depois colocados numa grande bacia com as sete águas trazidas pelos sacerdotes encantados: água de rio, simbolizando a vida; água de mar, simbolizando a coragem; água de córrego, simbolizando a pureza; água de chuva, simbolizando a renovação; água de cacimba, simbolizando a esperança, água de cachoeira, simbolizando a força e água de lágrima, simbolizando a existência. Após respingar na bacia uma infinidade de óleos com poderes mágicos, Bernal encheu um velho alguidar de metal e se dirigiu até a janela da torre e, depois de mentalizar firmemente seu ideal e visualizar o fato já consumado, jogou a água pelos ares após pronunciar as seguintes palavras: “Os deuses querem que o reino esteja limpo para o rei; o rei quer que o reino esteja limpo para governar; é o desejo dos deuses e nenhum ser impedirá”.
O dia amanheceu de uma forma esplendorosa. Tudo ao redor se mostrava alegre, com feições de paz e felicidade. Os encantamentos mágicos de Bernal comandavam a vida no reino e do mesmo modo seria pelo restante do dia. Ao menos era isso que se esperava. Logo cedinho os guardas ressoaram suas trombetas nas torres de vigia; os sinos da igreja ao lado do castelo dobraram sem cessar; bandeiras estendidas nas torres e nas vigas e estandartes espalhados pelas redondezas, tudo anunciava com grandiosidade o dia da coroação do novo rei do Reino de Oninem.
Ora, como isso poderia acontecer se o povo nem sabia que o rei Lucius havia fugido e a realeza estava vaga? Como tudo parecia em festa se anteriormente o reino estava fragilizado e quase morrendo, como os mais velhos diziam? Como os soldados e os guardas reais estavam a postos se dias atrás ninguém queria trabalhar por falta de pagamento? Como o povo estava agora sorridente e satisfeito se até ontem a insatisfação prevalecia entre todos? Somente Bernal saberia responder.
De um lado para o outro as criadas corriam para limpar e organizar a vida no castelo; do mesmo modo faziam na igreja real, há muito de portas fechadas e agora totalmente transformada para receber a cerimônia de coroação. As mulheres varriam o entorno do castelo; os homens podavam as árvores e retiravam o mato que havia crescido pelas redondezas; outros homens e mulheres cuidavam da carne dos muitos bois, porcos, carneiros, frangos e faisões que foram abatidos exclusivamente para a grande festa que ocorreria logo após a cerimônia.
E o rei, mas onde estava e o que estaria fazendo o futuro rei? Estava recebendo as últimas lições com Bernal, aprendendo como deveria se comportar durante a cerimônia e o que deveria fazer dali em diante. E neste ponto o pequeno soberano interrompeu o feiticeiro do bem para dizer: “Ora, se sou o rei faço o que eu quiser e já sei muito bem o que vou fazer, e você vai ter que ficar calado, senão mando chamar um bruxo pra transformar você num sapo”. Bernal sorriu, outra coisa não poderia fazer e saiu quase correndo para ir buscar a coroa real para experimentá-la em Gustavo e fazer os ajustes necessários. De repente deu em estanque e parou pensativo: “Mas a coroa não está mais aqui. O maldito Lucius roubou a coroa junto com as outras jóias. E agora?”. Ainda refletia atordoado quando ouviu:
- Bernal, seu feiticeiro, é aquela coroa que está ali que vou ter que usar? – Perguntou Gustavo, quase derrubando o outro de susto.
E quando Bernal se virou enxergou a coroa iluminada e resplandecente em cima do criado-mudo. Mas quem a teria colocado ali?
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
À noite, enquanto Gustavo sonhava com duendes e gnomos, seres fantásticos das florestas, rodeando em festa seu castelo, Bernal fazia rituais, espalhava incenso pelos quatro cantos da moradia real, abria e fechava seu livro milenar de magias e, vez por outra, conversava com sacerdotes encantados que estavam ali especialmente para ajudá-lo nos preparativos para a apresentação do novo soberano aos seus súditos.
Durante toda a noite e adentrando a madrugada, o feiticeiro do bem preparou seus encantamentos para que, logo ao primeiro luzir do sol, na fronteira entre o amanhecer e o clarear, suas oferendas, suas palavras e seus gestos fossem aceitos pelos deuses e a festa de coroação do novo soberano de Oninem ocorresse dentro da maior normalidade, como se a cerimônia já fosse do conhecimento e estivesse na expectativa de todos.
Assim, ao se aproximar da madrugada, adiante de Bernal, num pequeno compartimento da torre do castelo, estavam espalhados numa tarrafa jogada ao chão alimentos, plantas e flores, metais, pedras, ostras, tecidos, fibras vegetais, sementes, perfumes, óleos e incensos queimando e espalhando pelo ar um forte cheiro de mirra, lavanda e cedro.
Dez minutos após, todos esses objetos foram embrulhados na rede e depois colocados numa grande bacia com as sete águas trazidas pelos sacerdotes encantados: água de rio, simbolizando a vida; água de mar, simbolizando a coragem; água de córrego, simbolizando a pureza; água de chuva, simbolizando a renovação; água de cacimba, simbolizando a esperança, água de cachoeira, simbolizando a força e água de lágrima, simbolizando a existência. Após respingar na bacia uma infinidade de óleos com poderes mágicos, Bernal encheu um velho alguidar de metal e se dirigiu até a janela da torre e, depois de mentalizar firmemente seu ideal e visualizar o fato já consumado, jogou a água pelos ares após pronunciar as seguintes palavras: “Os deuses querem que o reino esteja limpo para o rei; o rei quer que o reino esteja limpo para governar; é o desejo dos deuses e nenhum ser impedirá”.
O dia amanheceu de uma forma esplendorosa. Tudo ao redor se mostrava alegre, com feições de paz e felicidade. Os encantamentos mágicos de Bernal comandavam a vida no reino e do mesmo modo seria pelo restante do dia. Ao menos era isso que se esperava. Logo cedinho os guardas ressoaram suas trombetas nas torres de vigia; os sinos da igreja ao lado do castelo dobraram sem cessar; bandeiras estendidas nas torres e nas vigas e estandartes espalhados pelas redondezas, tudo anunciava com grandiosidade o dia da coroação do novo rei do Reino de Oninem.
Ora, como isso poderia acontecer se o povo nem sabia que o rei Lucius havia fugido e a realeza estava vaga? Como tudo parecia em festa se anteriormente o reino estava fragilizado e quase morrendo, como os mais velhos diziam? Como os soldados e os guardas reais estavam a postos se dias atrás ninguém queria trabalhar por falta de pagamento? Como o povo estava agora sorridente e satisfeito se até ontem a insatisfação prevalecia entre todos? Somente Bernal saberia responder.
De um lado para o outro as criadas corriam para limpar e organizar a vida no castelo; do mesmo modo faziam na igreja real, há muito de portas fechadas e agora totalmente transformada para receber a cerimônia de coroação. As mulheres varriam o entorno do castelo; os homens podavam as árvores e retiravam o mato que havia crescido pelas redondezas; outros homens e mulheres cuidavam da carne dos muitos bois, porcos, carneiros, frangos e faisões que foram abatidos exclusivamente para a grande festa que ocorreria logo após a cerimônia.
E o rei, mas onde estava e o que estaria fazendo o futuro rei? Estava recebendo as últimas lições com Bernal, aprendendo como deveria se comportar durante a cerimônia e o que deveria fazer dali em diante. E neste ponto o pequeno soberano interrompeu o feiticeiro do bem para dizer: “Ora, se sou o rei faço o que eu quiser e já sei muito bem o que vou fazer, e você vai ter que ficar calado, senão mando chamar um bruxo pra transformar você num sapo”. Bernal sorriu, outra coisa não poderia fazer e saiu quase correndo para ir buscar a coroa real para experimentá-la em Gustavo e fazer os ajustes necessários. De repente deu em estanque e parou pensativo: “Mas a coroa não está mais aqui. O maldito Lucius roubou a coroa junto com as outras jóias. E agora?”. Ainda refletia atordoado quando ouviu:
- Bernal, seu feiticeiro, é aquela coroa que está ali que vou ter que usar? – Perguntou Gustavo, quase derrubando o outro de susto.
E quando Bernal se virou enxergou a coroa iluminada e resplandecente em cima do criado-mudo. Mas quem a teria colocado ali?
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A LIÇÃO DA ANDORINHA
A LIÇÃO DA ANDORINHA
Rangel Alves da Costa*
O vento norte, com sua voragem, encontra ainda as coisas desfeitas depois do vendaval que passou. É hora de reconstruir a vida enquanto o tempo ainda permite, enquanto ainda temos forças para juntar pedaços. Enfim, é o sol, é o azul, é um horizonte que enxergo bem longe.
A vida é assim mesmo, com esses mistérios que a natureza quer nos ensinar e insistimos não aprender. Verdade é que o vendaval que passou por aqui provocou perturbações marcantes no estado normal da realidade, derrubando árvores e arrancando plantas, causando enxurradas e alagamentos, destelhando casas e levando os sonhos de muitos. Inevitavelmente isto iria acontecer, mas nunca nos preparamos o suficiente para evitar os danos.
Depois da natureza revoltosa, começa outro barulhar do tempo. É certo que o vento norte também é vadio; mas é a sua vez. É a vez do vento norte, soprando quente e intensamente, num murmúrio que é também um aviso: vem mais chuva por aí. Temos, talvez, somente mais uns dois ou três dias antes que a chuvarada lave novamente a terra e suas paisagens.
Dois ou três dias é o tempo que temos para viver a tranqüilidade dos dias. É nesse curto espaço de tempo que limpamos a casa, arrumamos os móveis, lavamos e secamos a roupa no varal, tentamos dar uma normalidade à vida. Quanta coisa fazemos em segundos, minutos, basta um olhar, um toque, um aperto, um aceno. Temos ainda dois ou três dias, talvez, e é tempo demais para transformar a própria vida.
Pensei no que poderia fazer nesse espaço de tempo e lembrei do que faz nesse mesmo período uma andorinha que fez moradia no meu quintal. Como se sabe, as andorinhas geralmente vivem em bandos, voando aos montes por aí, mas esta vivia sozinha no meu quintal, onde fez ninho e dedicava-se à sua solidão. Esta não era barulhenta, era religiosamente silenciosa.
Dizem que vivem a maior parte do tempo no ar; só param de voar para beber água ou descansar nos fios de eletricidade e vão ao chão apenas para colher barro para os ninhos ou para caçar insetos para comer. Dizem ainda que desenham figuras no ar, chamam a primavera e louvam a chegada do sol. A andorinha que conheço, contudo, passa a maior parte do tempo em pequenos afazeres nas redondezas e no beiral do seu ninho, observando a vida. As andorinhas não cantam; a minha também não. O que faz é insistentemente construir e reconstruir sua vida e viver em paz.
Naqueles dias de chuvas não vi a andorinha. Fui até próximo ao seu ninho e nem pude vê-lo. Ele estava coberto por um pedaço de plástico com uns gravetos por cima que eu nem sei como ela havia conseguido colocar ali. Ali ela não estava, presumi. E quando eu voltava para a porta de casa olhei ao redor e vi a andorinha alegre e satisfeita numa fresta acima da janela. Naquele lugar improvisado, estava enxuta, protegida e feliz, bem próximo à sua moradia, que estava também devidamente protegida.
Tal fato jamais me saiu da memória. Antes do temporal a andorinha já estava com sua vida totalmente organizada, pronta para qualquer conseqüência. Havia arrumado tudo em menos de três dias, talvez. Soube ver e ouvir a natureza, sentiu a tempestade que se aproximava, protegeu seu ninho e procurou se proteger. Quando o sol brilhar e o vento norte soprar novamente anunciando mais chuva, nada afetará mais sua vida. Soube preparar-se pra tudo.
E nós temos ainda uns dois ou três dias antes das chuvas chegarem e não sabemos sequer consertar uma minúscula goteira que surge no canto dos nossos olhos toda vez que chove e estamos sozinhos, desprotegidos.
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Rangel Alves da Costa*
O vento norte, com sua voragem, encontra ainda as coisas desfeitas depois do vendaval que passou. É hora de reconstruir a vida enquanto o tempo ainda permite, enquanto ainda temos forças para juntar pedaços. Enfim, é o sol, é o azul, é um horizonte que enxergo bem longe.
A vida é assim mesmo, com esses mistérios que a natureza quer nos ensinar e insistimos não aprender. Verdade é que o vendaval que passou por aqui provocou perturbações marcantes no estado normal da realidade, derrubando árvores e arrancando plantas, causando enxurradas e alagamentos, destelhando casas e levando os sonhos de muitos. Inevitavelmente isto iria acontecer, mas nunca nos preparamos o suficiente para evitar os danos.
Depois da natureza revoltosa, começa outro barulhar do tempo. É certo que o vento norte também é vadio; mas é a sua vez. É a vez do vento norte, soprando quente e intensamente, num murmúrio que é também um aviso: vem mais chuva por aí. Temos, talvez, somente mais uns dois ou três dias antes que a chuvarada lave novamente a terra e suas paisagens.
Dois ou três dias é o tempo que temos para viver a tranqüilidade dos dias. É nesse curto espaço de tempo que limpamos a casa, arrumamos os móveis, lavamos e secamos a roupa no varal, tentamos dar uma normalidade à vida. Quanta coisa fazemos em segundos, minutos, basta um olhar, um toque, um aperto, um aceno. Temos ainda dois ou três dias, talvez, e é tempo demais para transformar a própria vida.
Pensei no que poderia fazer nesse espaço de tempo e lembrei do que faz nesse mesmo período uma andorinha que fez moradia no meu quintal. Como se sabe, as andorinhas geralmente vivem em bandos, voando aos montes por aí, mas esta vivia sozinha no meu quintal, onde fez ninho e dedicava-se à sua solidão. Esta não era barulhenta, era religiosamente silenciosa.
Dizem que vivem a maior parte do tempo no ar; só param de voar para beber água ou descansar nos fios de eletricidade e vão ao chão apenas para colher barro para os ninhos ou para caçar insetos para comer. Dizem ainda que desenham figuras no ar, chamam a primavera e louvam a chegada do sol. A andorinha que conheço, contudo, passa a maior parte do tempo em pequenos afazeres nas redondezas e no beiral do seu ninho, observando a vida. As andorinhas não cantam; a minha também não. O que faz é insistentemente construir e reconstruir sua vida e viver em paz.
Naqueles dias de chuvas não vi a andorinha. Fui até próximo ao seu ninho e nem pude vê-lo. Ele estava coberto por um pedaço de plástico com uns gravetos por cima que eu nem sei como ela havia conseguido colocar ali. Ali ela não estava, presumi. E quando eu voltava para a porta de casa olhei ao redor e vi a andorinha alegre e satisfeita numa fresta acima da janela. Naquele lugar improvisado, estava enxuta, protegida e feliz, bem próximo à sua moradia, que estava também devidamente protegida.
Tal fato jamais me saiu da memória. Antes do temporal a andorinha já estava com sua vida totalmente organizada, pronta para qualquer conseqüência. Havia arrumado tudo em menos de três dias, talvez. Soube ver e ouvir a natureza, sentiu a tempestade que se aproximava, protegeu seu ninho e procurou se proteger. Quando o sol brilhar e o vento norte soprar novamente anunciando mais chuva, nada afetará mais sua vida. Soube preparar-se pra tudo.
E nós temos ainda uns dois ou três dias antes das chuvas chegarem e não sabemos sequer consertar uma minúscula goteira que surge no canto dos nossos olhos toda vez que chove e estamos sozinhos, desprotegidos.
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NO REINO DO REI MENINO – X
NO REINO DO REI MENINO – X
Rangel Alves da Costa*
“Antes de se tornar um reino e governadas por um rei, essas terras, até onde os seus olhos podem enxergar, com suas planícies, serras, montanhas, vales, rios, córregos e tudo que nelas se assentam, foram governadas pela natureza e pelas forças nela existentes. Sendo a natureza uma criação divina, a verdade é que essa obra de Deus não foi entregue ao homem para ser maltratada, desprezada ou ultrajada. Daí que até o primeiro instante em que o homem nelas colocou os pés, eram os elementos da natureza que faziam cumprir os desejos do Criador. Após isso, a natureza se tornou apenas parte da geografia do lugar e o homem passou a conduzir seus destinos sem a devida obediência aos mandamentos maiores. A terra se transformou, assim, em impura e vulnerável, frágil e carente de proteção. E quando seu avô aqui chegou, primeiro como humilde camponês até alcançar depois a condição de homem mais poderoso do reino, já a encontrou nessa situação: belíssima, porém carente de habitantes que dela cuidassem e protegessem. E essa situação aos poucos foi se modificando, através do trabalho, da dignidade, do comprometimento e da abnegação do rei Ferdinand, seu avô. Porém, um homem só não faz verão, como diria a andorinha. Por mais que seu avô desejasse o desenvolvimento e a riqueza do povo, seu súdito, a verdade é que as transformações impostas na natureza tornaram as terras mais pobres, mais improdutivas. E sendo a terra o único meio de sobrevivência do homem aqui em Oninem, quando esta não pode sustentá-lo como deveria, é o próprio reino que passa a arcar com as conseqüências. Daí que quando seu pai foi elevado ao posto de rei, a realeza por ele obtida era mais para tomar conta de problemas do que para gerir riquezas. As riquezas ainda existiam e continuaram existindo, porém somente aquelas acumuladas ao longo dos tempos, com as grandes conquistas do reino e com os troféus de fortunas dos reinos que foram derrotados nas desavenças que sempre existiram. O povo estava e continua empobrecido mas o reino continuava rico, mas sem que o rei procurasse dividir um pouco do muito existente com o povo nem investir no próprio povo para continuar forte e temido por todos. Como conseqüência disso, o reino passou a viver somente de aparências, sem guerreiros para defendê-lo e uma população de inconformados. E o que o seu pai infelizmente fez? Se arvorou da fortuna do reino como se fosse sua e, sem condições de enfrentar qualquer força inimiga, fugiu quando uma horda de ladrões bateram à sua porta. Pelos atos reprováveis de seu pai, que demonstrou covardia e traição ao seu povo e ao próprio reino, seria até mesmo caso de Oninem hoje estar totalmente abandonado, mas não, pois os deuses quiseram que você...
- Mas o que eu tenho a ver com isso? – Indagou o pequeno Gustavo, interrompendo Bernal.
“... você, meu jovem abençoado por todas as forças da natureza, não é só o herdeiro do trono por direito e por herança genética, pelo sangue que traz nas veias, mas a partir de agora o proclamo como soberano do Reino de Oninem, a quem caberá o destino de todas essas terras que vê adiante, desse povo e do futuro dessa realeza que o tempo reconhecerá como a mais grandiosa de toda a história da humanidade”, concluiu Bernal, colocando na cabeça do pequeno Gustavo uma coroa de cedro, que é a árvore símbolo da grandeza dos impérios e que têm à sua "sombra tantos povos; sobe até o céu e desce até os infernos, abriga todos os pássaros e todos os animais”, como diz o livro bíblico de Ezequiel.
Neste momento, que ainda era manhã em Oninem, estrelas cadentes recortaram o céu; outras estrelas brilharam fortes no firmamento; o sol e a lua apareceram; o dia e a noite dividiram espaços; os quatro elementos da natureza se fizeram presentes, em gotas de chuva que caíram, na ardência de uma fogueira que se acendeu, no vento que veio carregando poeira e no ar de um novo tempo que começou a soprar; e as quatro estações dando uma feição diferente e especial às paisagens ao redor, e assim era possível enxergar o sol escaldante, flores desabrochando, campos prontos para a colheita e neve embranquecendo o cume das montanhas. Relâmpagos e trovões foram vistos e ouvidos distantemente. Tudo rapidamente, mas reafirmando um pacto da natureza, seus elementos e os seus deuses, com o Reino. A benção divina maioria pairava sobre a cabeça de Gustavo.
No dia seguinte o novo soberano, o rei menino de Onimen seria apresentado ao povo.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blogragel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
“Antes de se tornar um reino e governadas por um rei, essas terras, até onde os seus olhos podem enxergar, com suas planícies, serras, montanhas, vales, rios, córregos e tudo que nelas se assentam, foram governadas pela natureza e pelas forças nela existentes. Sendo a natureza uma criação divina, a verdade é que essa obra de Deus não foi entregue ao homem para ser maltratada, desprezada ou ultrajada. Daí que até o primeiro instante em que o homem nelas colocou os pés, eram os elementos da natureza que faziam cumprir os desejos do Criador. Após isso, a natureza se tornou apenas parte da geografia do lugar e o homem passou a conduzir seus destinos sem a devida obediência aos mandamentos maiores. A terra se transformou, assim, em impura e vulnerável, frágil e carente de proteção. E quando seu avô aqui chegou, primeiro como humilde camponês até alcançar depois a condição de homem mais poderoso do reino, já a encontrou nessa situação: belíssima, porém carente de habitantes que dela cuidassem e protegessem. E essa situação aos poucos foi se modificando, através do trabalho, da dignidade, do comprometimento e da abnegação do rei Ferdinand, seu avô. Porém, um homem só não faz verão, como diria a andorinha. Por mais que seu avô desejasse o desenvolvimento e a riqueza do povo, seu súdito, a verdade é que as transformações impostas na natureza tornaram as terras mais pobres, mais improdutivas. E sendo a terra o único meio de sobrevivência do homem aqui em Oninem, quando esta não pode sustentá-lo como deveria, é o próprio reino que passa a arcar com as conseqüências. Daí que quando seu pai foi elevado ao posto de rei, a realeza por ele obtida era mais para tomar conta de problemas do que para gerir riquezas. As riquezas ainda existiam e continuaram existindo, porém somente aquelas acumuladas ao longo dos tempos, com as grandes conquistas do reino e com os troféus de fortunas dos reinos que foram derrotados nas desavenças que sempre existiram. O povo estava e continua empobrecido mas o reino continuava rico, mas sem que o rei procurasse dividir um pouco do muito existente com o povo nem investir no próprio povo para continuar forte e temido por todos. Como conseqüência disso, o reino passou a viver somente de aparências, sem guerreiros para defendê-lo e uma população de inconformados. E o que o seu pai infelizmente fez? Se arvorou da fortuna do reino como se fosse sua e, sem condições de enfrentar qualquer força inimiga, fugiu quando uma horda de ladrões bateram à sua porta. Pelos atos reprováveis de seu pai, que demonstrou covardia e traição ao seu povo e ao próprio reino, seria até mesmo caso de Oninem hoje estar totalmente abandonado, mas não, pois os deuses quiseram que você...
- Mas o que eu tenho a ver com isso? – Indagou o pequeno Gustavo, interrompendo Bernal.
“... você, meu jovem abençoado por todas as forças da natureza, não é só o herdeiro do trono por direito e por herança genética, pelo sangue que traz nas veias, mas a partir de agora o proclamo como soberano do Reino de Oninem, a quem caberá o destino de todas essas terras que vê adiante, desse povo e do futuro dessa realeza que o tempo reconhecerá como a mais grandiosa de toda a história da humanidade”, concluiu Bernal, colocando na cabeça do pequeno Gustavo uma coroa de cedro, que é a árvore símbolo da grandeza dos impérios e que têm à sua "sombra tantos povos; sobe até o céu e desce até os infernos, abriga todos os pássaros e todos os animais”, como diz o livro bíblico de Ezequiel.
Neste momento, que ainda era manhã em Oninem, estrelas cadentes recortaram o céu; outras estrelas brilharam fortes no firmamento; o sol e a lua apareceram; o dia e a noite dividiram espaços; os quatro elementos da natureza se fizeram presentes, em gotas de chuva que caíram, na ardência de uma fogueira que se acendeu, no vento que veio carregando poeira e no ar de um novo tempo que começou a soprar; e as quatro estações dando uma feição diferente e especial às paisagens ao redor, e assim era possível enxergar o sol escaldante, flores desabrochando, campos prontos para a colheita e neve embranquecendo o cume das montanhas. Relâmpagos e trovões foram vistos e ouvidos distantemente. Tudo rapidamente, mas reafirmando um pacto da natureza, seus elementos e os seus deuses, com o Reino. A benção divina maioria pairava sobre a cabeça de Gustavo.
No dia seguinte o novo soberano, o rei menino de Onimen seria apresentado ao povo.
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SEXO E CAFÉ PEQUENO
SEXO E CAFÉ PEQUENO
Rangel Alves da Costa*
A sociedade mundana, depravada e despida de qualquer senso moral ou ético, não pode pretender que haja valorização dos mais nobres sentimentos do amor e das relações afetivas. Querer impor seriedade e pudor nos outros, sem que primeiro lave sua cozinha, é fácil demais para aqueles que têm os olhos para ver somente o que está adiante e jamais para olhar o que está internamente corrompido. É o que penso.
Isto tem que ser dito antes que passemos, infelizmente, a acostumar que o pecado é bom porque é nos outros, a aceitar passivamente que o pecado que mora ao lado não nos afetará, mesmo que pequemos muito mais que os ditos pecadores. Inadmissível é que a banalização das relações tenha tornado os afetos algo meramente apelativo, com intenções despudoradas e objetivando somente a posse corporal, a posse do sexo enquanto órgão genital, como se não houvesse mais lugar para o amor, para a afeição, para o compartilhamento do outro enquanto ser que propicia bem-estar e felicidade, e também verdadeiro prazer sexual.
Ao nosso redor, pelo mundo afora, em todo lugar, a visão da sexualidade como instrumento de uso e abuso se tornou uma praxe que, reafirmemos, é considerada por uma imensa maioria que, mesmo assim, ainda procura se esconder no falso véu do puritanismo, da religiosidade inexistente, da castidade corrompida.
Com as exceções devidas, não há beata que não estremeça quando o assunto é sexo, por vontade ou simples afloração dos desejos oprimidos, como diria o psicólogo. Não há nenhuma demasiadamente religiosa que não faça dessa falsa opção um pretexto para atacar a exacerbação da sexualidade no outro, quando no seu íntimo e nos seus sonhos a pecaminosidade impera. Não há nenhuma “santinha” que não viva ardendo na fogueira dos desejos mais pornográficos. Contudo, todo mundo quer passar de todo jeito uma imagem de sacralidade, de postura íntegra e de absoluta inocência.
O que faz realmente pasmar, entretanto, não é a virtude mentirosa ou a seriedade forjada, mas sim como essas pessoas procuram transformar os outros em impuros filhos de Sodoma e Gomorra. Os outros não valem nada, não prestam, estão destinados a arder infinitamente no fogo da Geena porque são despurados, só pensam em sexo, fazem sexo com qualquer um, pagam ou recebem dinheiro para fazer sexo. Como diz o ditado, pra falar teriam que primeiro olhar o próprio rabo; pra acusar teriam que primeiro sopesar o passado e o presente, e ver se sua cama quente ainda não está ardendo. E não é somente a cama do lar conjugal, mas qualquer uma, pois muitas vezes esquecem dos pulos que “inocentemente” dão.
Longe de se pretender a primazia do amor romântico; da virtude da mocinha interiorana que espera em castidade o noivo que vai trabalhar no sul do país; da seriedade que ainda impera e prospera em muitas pessoas que não se deixam seduzir pelos apelos sexuais que chegam de todo modo; da mulher que morre virgem porque o seu amado lhe trocou por outra. Não. Não se pretende nem o demais nem o de menos, mas sim que as pessoas, mesmo que não assumam os bichos no cio que são, façam dos exemplos que veem um espelho para ver se se enxergam nele.
Verdade é que a situação é deveras lamentável. Que jogue a primeira pedra aquela pessoa que possa servir de exemplo de moralidade e integridade absolutas. E é mais lamentável ainda que não tenhamos um santuário onde possa caber todos esses “santinhos” e “santinhas” que se espalham nos becos e escuros, nas mansões e nos casebres, nas ruas e nos shoppings da vida terrena. E é ainda mais lamentável afirmar que o prazer sexual se tornou num mix de produção instantânea, e o sexo muito mais banalizado do que um café pequeno sorvido em qualquer botequim e nas xícaras mais imundas.
Advogado e poeta
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Rangel Alves da Costa*
A sociedade mundana, depravada e despida de qualquer senso moral ou ético, não pode pretender que haja valorização dos mais nobres sentimentos do amor e das relações afetivas. Querer impor seriedade e pudor nos outros, sem que primeiro lave sua cozinha, é fácil demais para aqueles que têm os olhos para ver somente o que está adiante e jamais para olhar o que está internamente corrompido. É o que penso.
Isto tem que ser dito antes que passemos, infelizmente, a acostumar que o pecado é bom porque é nos outros, a aceitar passivamente que o pecado que mora ao lado não nos afetará, mesmo que pequemos muito mais que os ditos pecadores. Inadmissível é que a banalização das relações tenha tornado os afetos algo meramente apelativo, com intenções despudoradas e objetivando somente a posse corporal, a posse do sexo enquanto órgão genital, como se não houvesse mais lugar para o amor, para a afeição, para o compartilhamento do outro enquanto ser que propicia bem-estar e felicidade, e também verdadeiro prazer sexual.
Ao nosso redor, pelo mundo afora, em todo lugar, a visão da sexualidade como instrumento de uso e abuso se tornou uma praxe que, reafirmemos, é considerada por uma imensa maioria que, mesmo assim, ainda procura se esconder no falso véu do puritanismo, da religiosidade inexistente, da castidade corrompida.
Com as exceções devidas, não há beata que não estremeça quando o assunto é sexo, por vontade ou simples afloração dos desejos oprimidos, como diria o psicólogo. Não há nenhuma demasiadamente religiosa que não faça dessa falsa opção um pretexto para atacar a exacerbação da sexualidade no outro, quando no seu íntimo e nos seus sonhos a pecaminosidade impera. Não há nenhuma “santinha” que não viva ardendo na fogueira dos desejos mais pornográficos. Contudo, todo mundo quer passar de todo jeito uma imagem de sacralidade, de postura íntegra e de absoluta inocência.
O que faz realmente pasmar, entretanto, não é a virtude mentirosa ou a seriedade forjada, mas sim como essas pessoas procuram transformar os outros em impuros filhos de Sodoma e Gomorra. Os outros não valem nada, não prestam, estão destinados a arder infinitamente no fogo da Geena porque são despurados, só pensam em sexo, fazem sexo com qualquer um, pagam ou recebem dinheiro para fazer sexo. Como diz o ditado, pra falar teriam que primeiro olhar o próprio rabo; pra acusar teriam que primeiro sopesar o passado e o presente, e ver se sua cama quente ainda não está ardendo. E não é somente a cama do lar conjugal, mas qualquer uma, pois muitas vezes esquecem dos pulos que “inocentemente” dão.
Longe de se pretender a primazia do amor romântico; da virtude da mocinha interiorana que espera em castidade o noivo que vai trabalhar no sul do país; da seriedade que ainda impera e prospera em muitas pessoas que não se deixam seduzir pelos apelos sexuais que chegam de todo modo; da mulher que morre virgem porque o seu amado lhe trocou por outra. Não. Não se pretende nem o demais nem o de menos, mas sim que as pessoas, mesmo que não assumam os bichos no cio que são, façam dos exemplos que veem um espelho para ver se se enxergam nele.
Verdade é que a situação é deveras lamentável. Que jogue a primeira pedra aquela pessoa que possa servir de exemplo de moralidade e integridade absolutas. E é mais lamentável ainda que não tenhamos um santuário onde possa caber todos esses “santinhos” e “santinhas” que se espalham nos becos e escuros, nas mansões e nos casebres, nas ruas e nos shoppings da vida terrena. E é ainda mais lamentável afirmar que o prazer sexual se tornou num mix de produção instantânea, e o sexo muito mais banalizado do que um café pequeno sorvido em qualquer botequim e nas xícaras mais imundas.
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
NO REINO DO REI MENINO – IX
NO REINO DO REI MENINO – IX
Rangel Alves da Costa*
O rei fugitivo e sua esposa triste já estavam muito longe do Reino de Oninem. Com a natureza ainda em fúria, seguiram velozmente na carruagem real levando feito espólio toda a fortuna do reino. Outro rei, tão desonesto e espoliador quanto Lucius, certamente lhe daria guarida. Algum quinhão iria obter. A desonestidade entre soberanos os torna como irmãos de sangue, mesmo que sangue desprezível e abjeto.
Aquela inesperada partida, em circunstância demasiadamente dolorida por não poder proteger seu filho e levá-lo consigo, tornava aquela bela mulher numa figura que mais parecia saída debaixo da terra. Pálida, sem nenhuma preocupação com sua postura de rainha, sem a finura e trato próprios da realiza, era praticamente uma morta-viva, mais parecendo uma moribunda.
E tais aspectos também demonstram a enorme diferença entre o caráter de Lucius e o seu, o seu amor de mãe e a pouca demonstração de preocupação do pai com relação ao filho. Parecia mesmo que tanto fazia o filho ter ficado exposto ao perigo ou não. Durante a fuga, em nenhum momento citou o nome do menor nem demonstrou qualquer gesto de inquietação. Pelo contrário, inquietava-se sim, mas pelo medo de que o suporte com o baú e os caixotes com a fortuna pudessem desatrelar da carruagem.
Se a mãe do pequeno Gustavo soubesse, ao menos em parte, o que estava por trás do sumiço do filho naquele instante de desespero quando tiveram que partir, as causas que favoreceram ou intervieram para que aquilo ocorresse e as conseqüências que mais tarde o fato iria ter, certamente que recobraria o ânimo e ficaria mais confortada. As coisas teriam que ser assim, não poderiam ser diferentes, concluiria. Ademais, era muito melhor ouvir a voz do destino e aceitá-la do que ter o filho ao seu lado naquela empreitada suja que o esposo covardemente se propusera a fazer.
Porque o destino estava traçado, as coisas não poderiam ser diferentes. Bernal, o feiticeiro do bem, tinha pleno conhecimento disso tudo e era também criador desse destino. Sabia quando seria a tentativa de invasão, o instante em que as tropas se postariam à frente do castelo e tudo o enredo do viria a acontecer a partir daí. Jamais temeu pela vida do menino porque também sabia que ele estaria totalmente salvaguardado do que, fugindo ao traçado pelos poderes da magia, pudesse ocorrer.
Quando a horda malfeitora saiu de trás das montanhas e rumou em direção às pequenas povoações circunvizinhas ao castelo, Bernal deu o sinal para que a acompanhante do menino o levasse até a torre do castelo. O garoto, como se já estivesse preparado para aquilo tudo, simplesmente fazia o que o feiticeiro e a criada pediam. Não perguntava por seus pais, não indagava sobre aquela correria toda, nada. Pelo contrário, até ajudava nas ações. Afinal, já contava com sete anos e se sentia dono do seu nariz, um verdadeiro homem. A afirmação do indivíduo começa mais ou menos por essa idade.
Na verdade, o modo calmo e compreensivo como Gustavo, o herdeiro do trono, enfrentou toda aquela situação foi em grande parte fruto dos poderes de encantamento de Bernal. O feiticeiro sabia que na mente do garoto havia uma fronteira que podia ser manipulada; a outra não, porque nela é que estava se formando o caráter e o encorajamento do futuro rei. Assim, articulando com maestria sua magia, transformava em normal tudo que de anormal os olhos do menino pudessem ver, tornava num simples murmúrio o maior barulho que pudesse ocorrer. Foi assim que Gustavo presenciou lá do alto do castelo a fúria da natureza e a tragédia dos invasores.
No dia seguinte após os múltiplos, trágicos e até cômicos acontecimentos, Bernal convidou Gustavo para um passeio por todas as dependências do castelo, explicando-lhe cuidadosamente qual a destinação de cada quarto, de cada sala, de cada local sem destinação específica, enfim, de tudo o que por ali havia e até mesmo de esconderijos e locais secretos que poucos sabiam da existência. Depois sentou com o garoto no salão principal do castelo e contou detalhadamente os motivos pelos quais seus pais não estavam mais ali e o porquê de que talvez eles jamais voltassem a pisar naquele local ou mesmo naquele reinado. Em seguida, voltou com o menino para a torre do castelo, abriu uma janela de onde se descortinava todo o horizonte e pediu que ele observasse com atenção tudo o que estava adiante enquanto ouvia o que tinha para falar.
E Bernal, com um rosto estranhamento iluminado, começou a selar a sorte do reinado com palavras que até hoje ressoam naquelas planícies do País dos Voantes, no Reino de Oninem.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Rangel Alves da Costa*
O rei fugitivo e sua esposa triste já estavam muito longe do Reino de Oninem. Com a natureza ainda em fúria, seguiram velozmente na carruagem real levando feito espólio toda a fortuna do reino. Outro rei, tão desonesto e espoliador quanto Lucius, certamente lhe daria guarida. Algum quinhão iria obter. A desonestidade entre soberanos os torna como irmãos de sangue, mesmo que sangue desprezível e abjeto.
Aquela inesperada partida, em circunstância demasiadamente dolorida por não poder proteger seu filho e levá-lo consigo, tornava aquela bela mulher numa figura que mais parecia saída debaixo da terra. Pálida, sem nenhuma preocupação com sua postura de rainha, sem a finura e trato próprios da realiza, era praticamente uma morta-viva, mais parecendo uma moribunda.
E tais aspectos também demonstram a enorme diferença entre o caráter de Lucius e o seu, o seu amor de mãe e a pouca demonstração de preocupação do pai com relação ao filho. Parecia mesmo que tanto fazia o filho ter ficado exposto ao perigo ou não. Durante a fuga, em nenhum momento citou o nome do menor nem demonstrou qualquer gesto de inquietação. Pelo contrário, inquietava-se sim, mas pelo medo de que o suporte com o baú e os caixotes com a fortuna pudessem desatrelar da carruagem.
Se a mãe do pequeno Gustavo soubesse, ao menos em parte, o que estava por trás do sumiço do filho naquele instante de desespero quando tiveram que partir, as causas que favoreceram ou intervieram para que aquilo ocorresse e as conseqüências que mais tarde o fato iria ter, certamente que recobraria o ânimo e ficaria mais confortada. As coisas teriam que ser assim, não poderiam ser diferentes, concluiria. Ademais, era muito melhor ouvir a voz do destino e aceitá-la do que ter o filho ao seu lado naquela empreitada suja que o esposo covardemente se propusera a fazer.
Porque o destino estava traçado, as coisas não poderiam ser diferentes. Bernal, o feiticeiro do bem, tinha pleno conhecimento disso tudo e era também criador desse destino. Sabia quando seria a tentativa de invasão, o instante em que as tropas se postariam à frente do castelo e tudo o enredo do viria a acontecer a partir daí. Jamais temeu pela vida do menino porque também sabia que ele estaria totalmente salvaguardado do que, fugindo ao traçado pelos poderes da magia, pudesse ocorrer.
Quando a horda malfeitora saiu de trás das montanhas e rumou em direção às pequenas povoações circunvizinhas ao castelo, Bernal deu o sinal para que a acompanhante do menino o levasse até a torre do castelo. O garoto, como se já estivesse preparado para aquilo tudo, simplesmente fazia o que o feiticeiro e a criada pediam. Não perguntava por seus pais, não indagava sobre aquela correria toda, nada. Pelo contrário, até ajudava nas ações. Afinal, já contava com sete anos e se sentia dono do seu nariz, um verdadeiro homem. A afirmação do indivíduo começa mais ou menos por essa idade.
Na verdade, o modo calmo e compreensivo como Gustavo, o herdeiro do trono, enfrentou toda aquela situação foi em grande parte fruto dos poderes de encantamento de Bernal. O feiticeiro sabia que na mente do garoto havia uma fronteira que podia ser manipulada; a outra não, porque nela é que estava se formando o caráter e o encorajamento do futuro rei. Assim, articulando com maestria sua magia, transformava em normal tudo que de anormal os olhos do menino pudessem ver, tornava num simples murmúrio o maior barulho que pudesse ocorrer. Foi assim que Gustavo presenciou lá do alto do castelo a fúria da natureza e a tragédia dos invasores.
No dia seguinte após os múltiplos, trágicos e até cômicos acontecimentos, Bernal convidou Gustavo para um passeio por todas as dependências do castelo, explicando-lhe cuidadosamente qual a destinação de cada quarto, de cada sala, de cada local sem destinação específica, enfim, de tudo o que por ali havia e até mesmo de esconderijos e locais secretos que poucos sabiam da existência. Depois sentou com o garoto no salão principal do castelo e contou detalhadamente os motivos pelos quais seus pais não estavam mais ali e o porquê de que talvez eles jamais voltassem a pisar naquele local ou mesmo naquele reinado. Em seguida, voltou com o menino para a torre do castelo, abriu uma janela de onde se descortinava todo o horizonte e pediu que ele observasse com atenção tudo o que estava adiante enquanto ouvia o que tinha para falar.
E Bernal, com um rosto estranhamento iluminado, começou a selar a sorte do reinado com palavras que até hoje ressoam naquelas planícies do País dos Voantes, no Reino de Oninem.
continua...
Advogado e poeta
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Tempo (Poesia)
Tempo
O tempo
Essa fome devoradora da vida
Faz sombra na estrada
Trilha e traça o semblante
Turva o horizonte adiante
Marca e remarca o que sou
E passa a compensar
O que ontem me veio alegrar
Diz que é vida que segue
E que o que me persegue
Não é o tempo não vivido
Mas não querer aceitar
Que por esse caminhar
É o caminho pra chegar
Na velhice que é sorte
Antes que chegue a morte.
Rangel Alves da Costa
O tempo
Essa fome devoradora da vida
Faz sombra na estrada
Trilha e traça o semblante
Turva o horizonte adiante
Marca e remarca o que sou
E passa a compensar
O que ontem me veio alegrar
Diz que é vida que segue
E que o que me persegue
Não é o tempo não vivido
Mas não querer aceitar
Que por esse caminhar
É o caminho pra chegar
Na velhice que é sorte
Antes que chegue a morte.
Rangel Alves da Costa
LEMBRA DO ADEUS E DA LÁGRIMA?
LEMBRA DO ADEUS E DA LÁGRIMA?
Rangel Alves da Costa*
Um dia você mesmo tinha me dito que o adeus nada mais é do que a confirmação de uma viagem, de uma partida, com ou sem volta; e a lágrima nada mais seria do que os olhos se lavando, se banhando para esquecer, para partir pra outra. Acreditei no que disseste, porque sempre acreditei em você, mesmo que as verdades surgidas mostrassem o contrário. Para continuar acreditando, sempre preferi conduzir o erro para mim.
Tanto faz que os verdadeiros conceitos de adeus e lágrimas sejam outros. Tanto faz que os livros digam que a interjeição adeus exprime sentimento de emoção, dor ou sensação de perda; que afirmem que o adeus é uma exclamação de despedida, um termo de desfazimento dirigido a alguém antes de uma separação mais ou menos prolongada; um sinal de despedida com que se implora a proteção de Deus, para quem fica ou se afasta.
Tanto faz que os poetas ou apaixonados digam que o adeus é o tchau mais triste que existe; que é melhor sofrer estando do que dizer adeus; que é uma sensação nos olhos se perguntando se vai voltar; que é um vazio que se antecipa antes que vá embora; que o adeus é muito tempo para se dizer a quem ama; que quem diz adeus a quem ama diz adeus à própria vida; que não é possível resumir tudo o que se passou, tudo o que se viveu num simples adeus. E se eu fosse poeta diria: não diga adeus, manda-me a Deus!
Tanto faz dos outros significados que porventura queiram dar à lágrima. Dizem, friamente e sem sentimento algum, que é a gota de líquido incolor e salgado, produzido pelas glândulas lacrimais, que umedece a conjuntiva e a córnea e mantém os olhos livres de poeira e corpos estranhos. Onde estarão o adeus e a saudade? Dizem que é um líquido produzido em grande quantidade quando alguém chora; que é a conseqüência do choro ou do pranto, consistente na produção em grande quantidade de uma chuva interna nos olhos, geralmente quando estão em estado emocional alterado como em casos de medo, tristeza, depressão, raiva, aflição, dor, adeus ou despedida.
Tanto faz que os poetas façam do substantivo lágrima um rio que corre e leva alguém; que cantem que são como que o sangue das feridas do coração; são o extremo sorrir do amor; que não pedem, mas merecem perdão; que são o sangue da alma; que existem para serem derramadas; que não devem ser contidas, pois no livre exercício do direito da dor; que é o orvalho da noite e da saudade. E se eu fosse poeta diria: a lagrima é a gota da tempestade que amedronta a natureza dos que amam!
Mas tudo bem. A nossa questão é outra, muito mais verdade do que conceitual ou poesia. Foi muito fácil que simplesmente abrisse a porta e seguisse adiante. Ora, os caminhos devem ser percorridos e a vida é pra se viver. O que fere somente é o modo da ação e não do ato. O amor não suporta somente vírgulas e interjeições, dando continuidade ao que vai se tornando desamor, mas também um ponto final. O que dói não foi sentir o adeus ou ter que amargar a lágrima. O que dói foi não ter a força de não sentir, foi simplesmente não poder fingir.
Eu não esqueço, mas tu lembras do adeus e da lágrima? Ontem te vi sem querer e no mesmo instante tive a certeza de que esse novo sol que me ilumina enxugou completamente a lágrima e secou o adeus; mas tu, com a feição amarga de desilusão e tristeza, jamais sentirá novamente o prazer de partir e simplesmente deixar. Agora sou eu quem diz adeus, e com lágrimas de alegria e prazer.
Advogado e poeta
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Rangel Alves da Costa*
Um dia você mesmo tinha me dito que o adeus nada mais é do que a confirmação de uma viagem, de uma partida, com ou sem volta; e a lágrima nada mais seria do que os olhos se lavando, se banhando para esquecer, para partir pra outra. Acreditei no que disseste, porque sempre acreditei em você, mesmo que as verdades surgidas mostrassem o contrário. Para continuar acreditando, sempre preferi conduzir o erro para mim.
Tanto faz que os verdadeiros conceitos de adeus e lágrimas sejam outros. Tanto faz que os livros digam que a interjeição adeus exprime sentimento de emoção, dor ou sensação de perda; que afirmem que o adeus é uma exclamação de despedida, um termo de desfazimento dirigido a alguém antes de uma separação mais ou menos prolongada; um sinal de despedida com que se implora a proteção de Deus, para quem fica ou se afasta.
Tanto faz que os poetas ou apaixonados digam que o adeus é o tchau mais triste que existe; que é melhor sofrer estando do que dizer adeus; que é uma sensação nos olhos se perguntando se vai voltar; que é um vazio que se antecipa antes que vá embora; que o adeus é muito tempo para se dizer a quem ama; que quem diz adeus a quem ama diz adeus à própria vida; que não é possível resumir tudo o que se passou, tudo o que se viveu num simples adeus. E se eu fosse poeta diria: não diga adeus, manda-me a Deus!
Tanto faz dos outros significados que porventura queiram dar à lágrima. Dizem, friamente e sem sentimento algum, que é a gota de líquido incolor e salgado, produzido pelas glândulas lacrimais, que umedece a conjuntiva e a córnea e mantém os olhos livres de poeira e corpos estranhos. Onde estarão o adeus e a saudade? Dizem que é um líquido produzido em grande quantidade quando alguém chora; que é a conseqüência do choro ou do pranto, consistente na produção em grande quantidade de uma chuva interna nos olhos, geralmente quando estão em estado emocional alterado como em casos de medo, tristeza, depressão, raiva, aflição, dor, adeus ou despedida.
Tanto faz que os poetas façam do substantivo lágrima um rio que corre e leva alguém; que cantem que são como que o sangue das feridas do coração; são o extremo sorrir do amor; que não pedem, mas merecem perdão; que são o sangue da alma; que existem para serem derramadas; que não devem ser contidas, pois no livre exercício do direito da dor; que é o orvalho da noite e da saudade. E se eu fosse poeta diria: a lagrima é a gota da tempestade que amedronta a natureza dos que amam!
Mas tudo bem. A nossa questão é outra, muito mais verdade do que conceitual ou poesia. Foi muito fácil que simplesmente abrisse a porta e seguisse adiante. Ora, os caminhos devem ser percorridos e a vida é pra se viver. O que fere somente é o modo da ação e não do ato. O amor não suporta somente vírgulas e interjeições, dando continuidade ao que vai se tornando desamor, mas também um ponto final. O que dói não foi sentir o adeus ou ter que amargar a lágrima. O que dói foi não ter a força de não sentir, foi simplesmente não poder fingir.
Eu não esqueço, mas tu lembras do adeus e da lágrima? Ontem te vi sem querer e no mesmo instante tive a certeza de que esse novo sol que me ilumina enxugou completamente a lágrima e secou o adeus; mas tu, com a feição amarga de desilusão e tristeza, jamais sentirá novamente o prazer de partir e simplesmente deixar. Agora sou eu quem diz adeus, e com lágrimas de alegria e prazer.
Advogado e poeta
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NO REINO DO REI MENINO – VIII
NO REINO DO REI MENINO – VIII
Rangel Alves da Costa*
Divididos em três colunas surgidas de pontos diferentes das montanhas à frente das povoações que circundavam o castelo, com cerca de cem invasores cada uma, montados em cavalos e carregando escudos e armas potentes de combate, ao se aproximarem da fortaleza real foram se afunilando e formando um amontoado de animais furiosos e sinistros cavaleiros preparados para o ataque. Quando o estandarte da caveira foi erguido para dar o sinal de ataque algo extraordinário e assustador começou a ocorrer.
No exato instante em que o comandante ia apontar a lança com o estandarte em direção ao portão principal do castelo, a natureza ressoou bravia e feroz. Um raio fulminou imediatamente o líder invasor, o céu começou a estremecer, tudo ao redor escureceu, relâmpagos ricochetearam em clarões vivos, trovões estrondaram incessantemente, uma tempestade destruidora chegou acompanhada de intenso vendaval, levando pelos ares o que de mais frágil encontrava pela frente. Era o fim do mundo, pensaram os agora temerosos e amedrontados invasores.
O que antes era uma cavalaria organizada para a semeadura do terror, de repente se transformou num amontoado de cavalos fugindo em disparada, totalmente assustados e desnorteados, ora sozinhos, ora arrastando malfeitores que se debatiam pelo terreno pedregoso. Alguns homens morreram pisoteados pelos cavalos em balbúrdia, outros rolavam feridos, quase afundados no lamaçal; os que tiveram mais sorte fugiram enlouquecidos em direção às matas ou à procura de qualquer proteção. No centro do pandemônio e nos seus arredores, o que podia se observar era a total destruição das tropas malfeitoras que minutos antes chegavam com ares de assombrosa vitória. Só restavam homens mortos e feridos espalhados pelo chão encharcado de lama e sangue. A horda estava aniquilada pelas forças misteriosas da natureza.
Com efeito, até o instante em que o mundo pareceu desandar no Reino de Oninem, o curso normal das forças da natureza mostrava um dia ensolarado, de nuvens embraquecidas pelos ares, com pequenas levas de vento açoitando folhas e as roupas estendidas pelos varais, tudo em conformidade com o clima costumeiro do lugar. Aquele anoitecer repentino, com chuvas que pareciam alfinetes caindo, trovões, relâmpagos e ventania cortante, toda aquela fúria, constituiu-se num acontecimento deveras assombroso e totalmente inexplicável.
Ora, num passo, a cavalaria chegando e pronta para atacar em condições propícias para tal, e noutro passo o negrume, as trevas desnorteando os atacantes e a fúria mortal deixando os seus rastros. Alguma explicação para tal transformação abrupta da natureza deveria, teria que existir, e até mesmo porque as pessoas do lugar tinham imenso respeito às leis que presidiam os elementos da natureza e suas transformações.
Ao retornarem de seus esconderijos, os fugitivos moradores de Oninem já fizeram seus percursos com o sol a pino, com o céu azul como nada tivesses ocorrido. Limpando os escombros, ainda assustados pelo ocorrido e também pelo quadro de destruição da turba hostil, se perguntavam sobre os reais motivos daquilo tudo, sobre o que teria salvado o castelo, as moradias e todos os pertences da comunidade. Quem poderia dar uma resposta sobre aquilo tudo? Bernal sabia de tudo, e de uma portinhola no ponto mais alto do castelo, sem que ninguém pudesse vê-lo, apreciava aqueles movimentos com ar de satisfação.
Bernal, o feiticeiro do bem, invocara aos deuses, havia buscado nas substâncias básicas dos elementos da própria natureza os poderes mágicos da proteção, da defesa, da oposição, da ofensiva e do contra-ataque. Prepara o banquete da magia com a invocação aos deuses dos raios e trovões, das tempestades e trovoadas, das ventanias e vendavais, da escuridão e do medo. Preparou oferendas, acendeu o fogo para o chamamento, celebrou o pacto de guerra contra as hostilidades e fora atendido. Naquele instante fazias seus agradecimentos no alto do castelo.
Contudo, Bernal tinha pressa de encerrar aquele ritual de agradecimento, pois precisava cuidar dos preparativos para apresentação ao povo do novo soberano do Rei de Oninem.
continua...
Advogado e poeta
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Rangel Alves da Costa*
Divididos em três colunas surgidas de pontos diferentes das montanhas à frente das povoações que circundavam o castelo, com cerca de cem invasores cada uma, montados em cavalos e carregando escudos e armas potentes de combate, ao se aproximarem da fortaleza real foram se afunilando e formando um amontoado de animais furiosos e sinistros cavaleiros preparados para o ataque. Quando o estandarte da caveira foi erguido para dar o sinal de ataque algo extraordinário e assustador começou a ocorrer.
No exato instante em que o comandante ia apontar a lança com o estandarte em direção ao portão principal do castelo, a natureza ressoou bravia e feroz. Um raio fulminou imediatamente o líder invasor, o céu começou a estremecer, tudo ao redor escureceu, relâmpagos ricochetearam em clarões vivos, trovões estrondaram incessantemente, uma tempestade destruidora chegou acompanhada de intenso vendaval, levando pelos ares o que de mais frágil encontrava pela frente. Era o fim do mundo, pensaram os agora temerosos e amedrontados invasores.
O que antes era uma cavalaria organizada para a semeadura do terror, de repente se transformou num amontoado de cavalos fugindo em disparada, totalmente assustados e desnorteados, ora sozinhos, ora arrastando malfeitores que se debatiam pelo terreno pedregoso. Alguns homens morreram pisoteados pelos cavalos em balbúrdia, outros rolavam feridos, quase afundados no lamaçal; os que tiveram mais sorte fugiram enlouquecidos em direção às matas ou à procura de qualquer proteção. No centro do pandemônio e nos seus arredores, o que podia se observar era a total destruição das tropas malfeitoras que minutos antes chegavam com ares de assombrosa vitória. Só restavam homens mortos e feridos espalhados pelo chão encharcado de lama e sangue. A horda estava aniquilada pelas forças misteriosas da natureza.
Com efeito, até o instante em que o mundo pareceu desandar no Reino de Oninem, o curso normal das forças da natureza mostrava um dia ensolarado, de nuvens embraquecidas pelos ares, com pequenas levas de vento açoitando folhas e as roupas estendidas pelos varais, tudo em conformidade com o clima costumeiro do lugar. Aquele anoitecer repentino, com chuvas que pareciam alfinetes caindo, trovões, relâmpagos e ventania cortante, toda aquela fúria, constituiu-se num acontecimento deveras assombroso e totalmente inexplicável.
Ora, num passo, a cavalaria chegando e pronta para atacar em condições propícias para tal, e noutro passo o negrume, as trevas desnorteando os atacantes e a fúria mortal deixando os seus rastros. Alguma explicação para tal transformação abrupta da natureza deveria, teria que existir, e até mesmo porque as pessoas do lugar tinham imenso respeito às leis que presidiam os elementos da natureza e suas transformações.
Ao retornarem de seus esconderijos, os fugitivos moradores de Oninem já fizeram seus percursos com o sol a pino, com o céu azul como nada tivesses ocorrido. Limpando os escombros, ainda assustados pelo ocorrido e também pelo quadro de destruição da turba hostil, se perguntavam sobre os reais motivos daquilo tudo, sobre o que teria salvado o castelo, as moradias e todos os pertences da comunidade. Quem poderia dar uma resposta sobre aquilo tudo? Bernal sabia de tudo, e de uma portinhola no ponto mais alto do castelo, sem que ninguém pudesse vê-lo, apreciava aqueles movimentos com ar de satisfação.
Bernal, o feiticeiro do bem, invocara aos deuses, havia buscado nas substâncias básicas dos elementos da própria natureza os poderes mágicos da proteção, da defesa, da oposição, da ofensiva e do contra-ataque. Prepara o banquete da magia com a invocação aos deuses dos raios e trovões, das tempestades e trovoadas, das ventanias e vendavais, da escuridão e do medo. Preparou oferendas, acendeu o fogo para o chamamento, celebrou o pacto de guerra contra as hostilidades e fora atendido. Naquele instante fazias seus agradecimentos no alto do castelo.
Contudo, Bernal tinha pressa de encerrar aquele ritual de agradecimento, pois precisava cuidar dos preparativos para apresentação ao povo do novo soberano do Rei de Oninem.
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