SERTÃO/CIDADE E ALGUMAS VERDADES
Rangel Alves da Costa*
Sou sertanejo de sangue, de herança matuta, de raiz. Nasci no sertão sergipano do São Francisco, num município que é o maior do estado, pela vastidão de suas terras, mas ao mesmo tempo não é nada, pela pobreza infinda que ali se instala, machuca e destroi. Seu nome é Poço Redondo, mas bem poderia ser Vila dos Confins, Mundaréu, Distância ou qualquer coisa que o valha. Foi lá que morreu Lampião, no ano de 38, na Gruta do Angico; foi lá que plantaram a esperança e nasceu aquele sol gigante, que queima o ano inteiro, esturrica a planta e mata o bicho, e que tem por companheira uma mulher ingrata chamada seca.
Vim para a cidade grande ainda molecote, com cerca de onze anos, estudar e “ser alguém na vida”, como diziam os meus, pressupondo que se ficasse lá seria apenas mais um sertanejo. Melhor seria, talvez. Foi assim que vim, vi e venci, como disse o romano depois da difícil batalha. Minha vitória, contudo, foi muito maior, por ter conseguido apenas o suficiente para viver e ser feliz na minha profissão, nos versos e prosas que escrevo, nas telas que pinto e nos desenhos que faço, além desse dom infinito de gostar daquilo que muitos não dão nenhum valor: ouvir um Strauss, um Vivaldi, acordar cedinho e abraçar o humor da natureza, fazer minhas orações e ler meus Salmos, acender incensos e cumprir o ritual que o pensador antigo ensinou: nenhum dia sem uma nova linha. Criar, recriar, escrever sempre, é o que faço todos os dias.
Outro dia, no final de 2008, cumprindo a sina das incertezas da vida, pensei que estava bem num instante e no outro já estava em coma induzido. Foram treze dias pairando pelos horizontes fronteiriços e talvez me perguntando se teria que ir ou voltar. Mais sete dias passei no hospital ainda sem saber o que realmente teria ocorrido comigo. Pressão talvez, impressões não sei. O que realmente sei é que saí do leito hospitalar como alguém que precisa correr para reconstruir, para fazer e fazer como se tudo feito até aquele momento ainda não tivesse significado algum. Fazer e me refazer, viver e reviver os erros para mudar, amar cada vez mais a vida e fazê-la sempre revivida. Ora, alguém disse levanta e vai, vai ser menino ainda, vai ser sonhador ainda, você ainda é jovem, você pode ser muito mais útil na vida do que ser somente uma saudade para alguns. E é sempre bom ouvir o bom conselho, até mesmo porque quem aconselha vive eternamente ao meu lado, guiando os meus passos, não deixando ultrapassar aquele horizonte cedo demais.
Outro dia ainda, em meados do ano passado, minha mãe foi chamada por Deus a ir morar ao seu lado. Morreu ainda jovem, aos 65 anos, um destes vivido na dor da doença que se alastrava. Pensava que era forte, porém esmoreceu muito quando fui hospitalizado. E quando voltei para casa, aquela imensa alegria não escondia a tristeza que sentia por sentir-se cada vez mais enfraquecida. Ela sabia que ia partir. E partiu na véspera da festa de São João, com aquele foguetório todo iluminando os céus e uma vela acesa dizendo adeus. É a festa nordestina do brincar ou chorar.
Por essas e outras, anteontem, ontem, hoje e amanhã, foram e serão momentos que ritualizo a cada entardecer e anoitecer. Depois dos ofícios da vida, das petições e dos códigos, tenho que ter tempo para ver o sol se escondendo, para ouvir o barulho da chuva, para mirar a lua que surge distante, para o encantamento com as nuvens cor de fogo no entardecer, para sentar lá no fundo da casa e relembrar as boas e todas as coisas da vida, para refletir sobre o realizado, o realizável e o sonho. E se escurece mais, que me venha a lua inteira, as estrelas e o vento, os sopros da noite e as ventanias, as alegrias e as tristezas, a saudade e a poesia com o nome dela, da mulher persistente no coração. Queria uma fotografia chorando, pra não ter que revelar um dia certas tristezas guardadas.
Estou ainda por aqui e sou assim, mas gostaria de ser muito mais o menino sertanejo que ficou distante. Quem dera subir no umbuzeiro e balançar seus galhos, roubar cajus do quintal do valentão, catar araçá no meio do mato, tomar banho de riacho, jogar bola descalço no chão cortante, brincar de pião, de bola de gude e de pega de boi, caçar passarinhos com peteca baleadeira, ter uma fazenda repleta de pontas de boi e ser rico com o dinheiro feito de papel de carteira de cigarro. Tinha um amigo que comprou o sertão inteiro, e depois perdeu o que tinha numa aposta para ver quem corria mais. Além disso, tomou uma surra quando chegou em casa.
Tudo que lembrei de dizer foi dito pela metade. O que está completo em mim é somente os 46 anos de minha idade. O restante será sempre metade porque nada do que fazemos é completamente construído e tudo que pretendemos fazer é marcado pela imperfeição dos que deviam saber que é sempre possível fazer melhor. Eis a vida ou o que parece ser. Me disseram que é e é assim mesmo.
Advogado e poeta
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