SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 30 de abril de 2012

COITEIRO, O AMIGO DO REI? (Crônica)

                                                           
                                                               Rangel Alves da Costa*


Nos tempos do cangaço reinando pelos sertões nordestinos, coiteiro era a denominação recebida pelo matuto que servia de ponte para o abastecimento e comunicação do bando de cangaceiros. Não houve reconhecimento maior por parte da história, mas dele muitas vezes dependia a vida e a sorte dos cangaceiros que se amoitavam nos esconderijos mais impensáveis.
Decorrente da expressão coito ou couto, significando lugar de abrigo, local de refúgio, o coiteiro passou a significar aquele que guardava o abrigo, que vigiava o refúgio, que tinha o coito ou esconderijo sob sua responsabilidade. No mesmo sentido, numa versão mais populesca, coiteiro é aquele que dá abrigo a bandidos e os protege.
Mas perante o cangaço não era sempre assim, pois o coiteiro geralmente era um humilde sertanejo que, vivendo nas proximidades do abrigo, procurava ajudar os cangaceiros nas suas necessidades e ser vigilante perante o mundo exterior, mais adiante. Assim, nem sempre era dono do lugar onde o bando buscava refúgio, mas simples mateiro, caçador ou alguém que convivia no seu cotidiano com aquelas paisagens.
Verdade é que o bando de cangaceiros também se escondeu em terreno da família do próprio coiteiro, como ocorreu na Gruta do Angico, às margens do São Francisco, no atual município de Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo. Como se sabe, a gruta estava localizada dentro de uma propriedade da família de Pedro de Cândido e seu irmão Durval, sendo aquele tido como o delator da localização do bando à volante comandada pelo Capitão João Bezerra.
Ademais, se a expressão coiteiro se voltasse apenas para designar aquele que dá refúgio e proteção a cangaceiro ou bandido – pois insisto que cangaceiro jamais foi bandido, ainda que a expressão bando de cangaceiros dê essa conotação, mas tão-somente rebelde contra as injustiças do seu tempo, sofrendo constante perseguição -, muitos coronéis nordestinos poderiam ser considerados coiteiros.
E coiteiros porque davam abrigo e proteção ao bando nas suas propriedades, bem como abasteciam do que necessitassem. Mesmo que os cangaceiros não ficassem na casa-grande ou seus arredores, e sim em lugares mais afastados dentro do reduto coronelista, ainda assim nenhuma volante se atrevia a botar os pés ali ou perseguir quem estivesse sob os auspícios do poderio político e econômico. E de lá saíam munidos de um tudo, desde armas a munição até vestuário e adornos de ouro.
Desse modo, delimitaram-se quem era simples coiteiro e quem era grande protetor. Aquele o homem da mata, o amigo do bando, o farejador, o que tinha olhos e ouvidos para sentir a presença do inimigo, o que não deixava faltar a carne de bode, o pano para a vestimenta, a agulha, a tesoura, a máquina de costurar. E este outro, o coronel, a quem cabia fornecer armas, proteção e dinheiro, se preciso fosse.
O verdadeiro coiteiro não só servia como elemento estratégico para o abastecimento do bando como exercia outras funções essenciais. Levava recados e bilhetes, trazia respostas e encomendas; procurava sentir a presença de inimigos na região e repassava para o chefe o pressentimento; tomava par de tudo que estava acontecendo ao redor para não permitir que o pior pudesse acontecer a qualquer momento.
Não era do bando, mas era como se fizesse parte como um tipo de correspondente de determinada região. Morando ali, conhecendo todos os caminhos, grutas e veredas, tornava-se essencial tanto para a subsistência como para sobrevivência dos cangaceiros. Daí também ser caracterizado como pessoa de extrema confiança. Seria impensável que um coiteiro revelasse a estranhos o local do esconderijo ou que falasse qualquer coisa que indicasse a presença dos cangaceiros nas redondezas.
Mas ainda assim houve traições. Quando Lampião e seu bando, no mês de julho de 1938, escolheram a Gruta do Angico para descansar um pouco das pegadas sangrentas deixadas pra trás desde o Raso da Catarina, ali se refugiaram com plena convicção de que estariam em segurança.
Ora, a gruta ficava na beira do rio mas dentro da propriedade de gente conhecida, cujos filhos Pedro de Cândido e Durval serviam como hábeis coiteiros e amigos do bando. Por isso jamais passaria pela cabeça de Lampião que Pedro de Cândido delataria, num dia de feira no outro lado do rio, em Piranhas, a sua presença ali.
Uns dizem que o jovem coiteiro foi torturado para dizer onde o bando estava. Hipótese frágil, porém, vez que se houve tortura para o conhecimento do local foi porque a volante já sabia de alguma coisa. Para outros, apenas a fraqueza de um jovem sertanejo que nem de longe imaginaria que estaria selando o destino do grande rei do cangaço, sua Maria Bonita e mais nove cangaceiros. E também o fim do cangaço.


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Teus sinais (Poesia)


Teus sinais


Cheiro de manhã
fruta macia maçã
minha doce cortesã
abra a janela e venha
que a vida te espera
assim tão bela e bela
com tua cor e feição
princesa na cidadela
do meu coração
eternamente apaixonado
menino de flor à mão
caminhando esperançoso
seguindo na direção
da brisa com teu aroma
violeta perfumada
ramalhete entrelaçado
tanto e tão nada
para o que mereces
ser em meu ser
destino nessa estrada.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (4)


                                                       Rangel Alves da Costa*


Aquela pessoa saindo da velha casa abandonada certamente fazia parte de suas sombras, de sua história, dos tempos idos, do seu passado. Se era pessoa de carne e osso ninguém pode saber ainda, pois a estranha figura enveredou no meio da escuridão tempestuosa com sua maletinha e sumiu.
Num tempo já carcomido e envelhecido, a última pessoa que havia sido vista por aquelas bandas, a última vivente daquela moradia, havia sido Crisosta. Era também a última de linhagem familiar extensa, muita antiga, desbravadora de toda aquela região agrestina.
Dizem que Crisosta parecia uma velha nos seus sessenta e poucos anos. As pessoas que passavam pela estradinha que cortava a fazenda sempre a avistavam do lado de dentro da janela com seu olhar triste vagueando o mundo.
Ficava sempre sentada naquele local, entregue a uma cadeira de balanço e observando a paisagem cinzenta lá fora, sentindo o tempo não passar, rememorando tristemente o passado familiar e outros passados.
Não errava quem pensasse assim. Realmente a mulher ficava quase o dia inteiro sentada numa cadeira de balanço, se balançando de vez em quando, com os olhos muitas vezes marejados olhando as paisagens ao redor, as cores do dia, tentando costurar uma história para nela poder se encontrar. Já nem sabia se existia mais a mulher.
Mas o que mais lhe doía, corroia tudo por dentro, era a constância da solidão. Não a esperança de uma solidão passageira, mas a certeza da solidão contínua, enraizada, permanente e maior a cada dia que passava. Tinha convicção que ninguém chegaria ali, bateria à sua porta, pediria um copo d’água, estivesse disposto a um dedo de prosa.
Era a solidão intensa, feia, monstruosa, ameaçadora, terrível, gritante. E plenamente solidão. E solidão mais amarga e aguda do que a solidão do cachorro que vivia ali sem a amizade de outro cão, do tronco do pau derrubado mais adiante, da velha baraúna que parecia se eternizar no lado de fora, da pedra e sua rigidez triste e solitária.
E também solidão insensível e desumana, covarde e inimiga. Cruel, tão cruel solidão. A porta do fundo era somente a porta do fundo e mais nada adiante, a porta da frente também, e ainda mais desesperadora. Na porta da frente não chegava ninguém. Um galo cantava, um sino dobrava, um barulho de voz se ouvia, mas jamais sentiu a presença do galo, da igrejinha, de qualquer ser vivente que estivesse abrindo a boca para falar.
Do silêncio, a mudez. Não lembrava mais quando havia aberto a boca para falar qualquer coisa. Não conversava sozinha, não tinha ninguém para conversar. Deixou de falar com o cachorro, deixou de falar com o vento, com a brisa da tarde, com a lua da noite, com os santos, com seu Deus. Não rezava baixinho, apenas movia os lábios em oração. Talvez a boca já não soubesse mais pronunciar nada. Também não tivesse mais nenhuma valia.
Aquele bicho voando parecia um passarinho. E era, mas tinha um nome. Não lembrava mais. Há muito que não chamava andorinha de andorinha, sabiá de sabiá, azulão de azulão. O nome do cachorro era Ventania, mas bastava ser cachorro. Trincava os dedos e ele chegava. Não precisa chamar mais o nome. Boca sem serventia, a boca.
Mas não esquecia de jeito nenhum os nomes de um monte de gente de sua família, de seu rol de conhecidos, de pessoas que foram importantes demais em sua vida. Gostaria de gritar pelo nome de sua mãe e dizer que o mascate estava ali na sala com uma mala cheia de tecido vistoso e bonito. Seu pai gostaria de ver aquele chapéu panamá novinho, coisa de luxo, reservado que seria para dia festivo na cidade.
Gostaria de gritar pela prima Zefinha, pelos outros primos Torquato, Licurgo, Bastiana, Lipúrcia. Os amigos também chegavam por ali, e como seria bom chamar por Toinha, Esmeralda, Afrísio, Beroldo, Tiziu. Agora chamava só na lembrança, na saudade demais, mas como gostaria de abrir a boca para chamá-los em pessoa.
Qualquer dia desses abriria a boca só pra dizer qualquer coisa. Seguiria até o espelho amarelado, já quase sem moldura, e reaprenderia a abrir a boca e pronunciar palavra. Se aprendesse novamente sairia na porta de casa e gritaria bem alto: “Mundo, eu ainda existo mundo!”.
Mas será que existia?
Continua...  


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domingo, 29 de abril de 2012

“VÁ NÃO ZEZIM!...” – “EU VOU, EU VOU!” (Crônica)

                              
                                                       Rangel Alves da Costa*


A linda sertanejinha entrou em casa correndo, assustando sua mãe. Jogou-se na cama aos prantos e ali ficou em tempo de se acabar. Cruel destino esse de amar alguém que agora decidia arrumar o embornal e cortar as estradas sangrentas dos sertões, saber que cada momento não era garantia de um só instante amanhã.
Ser amigo das catingueiras, dos bichos do mato, mas também inimigo das tocaiais e das emboscadas; ser amigo do sol e da lua, de cada poço d’água encontrado, mas também inimigo da curva da estrada, do morro adiante, da mataria silenciosa demais; ser amigo da sorte e do perigo, da vida aventureira e da luta contra as injustiças dos poderosos, mas também inimigo das forças governamentais, das armas da volante, dos coronéis mancomunados.
A mãe implorou de joelhos, pediu por tudo na vida e por todos os santos que o seu menino deixasse pra trás aquela decisão tomada. Não suportava imaginar ter o seu filho único, tendo deixado o cheiro de mijo há tão pouco tempo, sendo cangaceiro do bando de Lampião, arriscando a vida em que cada passo que desse. Tinha só coisa de quinze anos, portanto molecote ainda pra seguir destino tão arriscado.
Seu pai, o vaqueiro ainda novo e tão já envelhecido pelas lutas na vaqueirama, preferia não dizer nada sobre a decisão ostentada pelo filho. Verdade é que era tomado por uma sensação estranha por dentro. De um lado o orgulho pela valentia e destemor do seu menino, mas de outra banda o medo pelo desconhecido, pela entrega sem volta do seu a um mundo cercado por confrontos sangrentos, fugas desesperadas, ataques morticidas.
Enquanto a mãe chorava e fazia orações pelos cantos do velho casebre, o pai se punha de cabeça baixa sentado num tronco derrubado lá fora. Era uma agonia danada, uma dor no peito de não querer passar mais. Ele já tinha chamado o menino num canto e perguntado por que de repente havia decidido entregar sua vida e seu destino ao mundo cangaceiro.
O menino ficou de cabeça baixa e demorou a responder. Mas depois disse que sentia sangue de homem valente e que gente nessa qualidade não suporta ficar sem fazer nada a não ser ficar dia e noite olhando pra cima pra ver se tem alguma nuvem de chuva se formando, sofrendo junto com os bichinhos que não tinham nem o de comer nem o de beber, naquele desvão da vida que não trazia esperança alguma.
O pai sofria ainda mais ouvindo cada palavra do filho, mas também sabia que era coisa de sertanejo verdadeiro tomar a decisão que quisesse sobre sua vida. E sem querer entrar em outros detalhes, apenas apelou para algo que talvez amolecesse o seu coração e o fizesse desistir da partida, daquela viagem de difícil volta. Então perguntou por que ele ia abandonar Mariazinha que demonstrava gostar tanto dele.
E fui a vez de o mundo parecer se abrir aos pés do menino Zezim. Virou as costas pro pai, deu uns passos à frente, olhou para o mundo ao redor, percebeu tudo anuviado pelos olhos marejados e disse:
“Mai foi pru causo dela mermo que tumei essa decisão. Gosto tanto de Mariazinha que bem sei qui ela merece muito mais do qui um simple rapaiz sertanejo. Já dixe a ela qui vou ficá uns tempo no bando de Lampião e adespoi que já tivé famoso vou vortá e casá cum ela de veiz. E quano eu vortá ninguém vai mai me oiá cuma oia agora, quasi cuma um zé ninguém. Mai tomem tem outa coisa, pai. E vou tumem qui é pá o pai dela nunca mai dizê que num aceita ela cum eu. Se é caba macho, homi valente, vai ter...”.
Ainda de costas, agora limpando os olhos com as costas da mão, nem percebeu a visitante que havia chegado e silenciosamente se colocado ao lado de seu pai. Ainda sem ele perceber, Mariazinha se aproximou um pouco mais e disse: “Vá não Zezim! Vá não que agora já sei qui vosmicê é o homi da minha vida...”. Ele se voltou espantado, envolvido de um sentimento profundo ao ouvir aquela voz tão doce e conhecida, mas preferiu dizer: “Eu vou, eu vou. Mai vorto, mai vorto...”.
Não havia mais o que fazer, pensou ela enquanto o abraçava apaixonadamente. Foi quando lhe segredou alguma coisa ao ouvido. E no outro dia os dias tomavam o rumo das caatingas, de mãos dadas pelos caminhos cangaceiros dos sertões nordestinos.


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Sempre eterno (Poesia)


Sempre eterno


Li da garrafa
jogada ao mar
que o amor não é
nem o amor será
senão a eternidade
de cada instante
construído na feição
para se eternizar
para apaixonar
para ter o durar
do amor enquanto
quiser se eterno
feito garrafa ao mar
amor navegante
até um dia repousar
no leito da saudade
que só é permitida
ao que pode lembrar
do amor de um dia
e do seu continuar.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (3)


                                                           Rangel Alves da Costa*


Num desses dias que desde o amanhecer o vento começa a açoitar com fúria e ferocidade, bem mais forte do que as constantes ventanias que de vez em quando lambiam os arvoredos ao redor, por todo lugar se avistava um tempo fechado, escurecido, prenúncio de tempestade.
Mais tarde as folhagens começaram a passar bamboleantes pelos ares; tufos e mais tufos de galhagens secas misturadas a capim também seco rolavam pelos descampados; açoitadas, as árvores gemiam de moldo diferente, ora numa rouquidão tenebrosa, ora num uivar próprio dos lobos.
Já não se avistava mais vinte metros adiante sem que as sombras do dia tomassem conta de tudo. As nuvens negras encobrindo tudo acabaram impondo um absoluto negrume às paisagens. Os uivos aumentavam, os zunidos redobravam. Não se sabe como, mas até um sino badalou ao longe.
A escuridão tempestuosa tomava conta de tudo, de todos os lugares e todas as distâncias, mas não do local onde estava a casa do silêncio e da solidão. Como protegida por uma redoma ou uma nuvem inversa, ela continuava tão visível como nos outros dias normais, só que com um aspecto mais triste e circunspecto.
Assim que caiu o primeiro pingo, grosso, volumoso, estilhaçando um pedaço de pote de barro que resistia ao tempo, não demorou nem dois minutos para a tempestade se fazer completa. Os trovões e relâmpagos que ainda não haviam dado sinais surgiram repentinamente, barulhando feito lata sendo amassada e fazendo traçados faiscantes pelo horizonte.
Parecia fim de mundo. As águas caíam feito queda de cachoeira, tudo que havia por baixo ia sendo levado, formavam-se imensas poças e lagoas, as águas formavam enxurradas abrindo estreitos rios por onde passava. Uma coisa assustadora demais para tão pouco tempo de temporal.
Mas enquanto o mundo parecia se transformar em água, apenas a cortina molhada anuviava a visão da casa, pois nas suas velhas paredes e por cima, onde ainda restavam alguns pedaços de madeira da cobertura, caía apenas uma chuva fininha, dessas que chega sem maiores pretensões e serve apenas para espantar o calor.
O mais incrível é que mesmo praticamente não existindo telhado e as janelas e portas viverem abrindo e fechando ao sabor do vento, no interior da velha moradia não havia caído uma gota de chuva sequer, não havia entrado ao menos um borrifo levado pela ventania.
E a chuvarada continuava caindo forte, os trovões e relâmpagos não cessavam de se expressar. Passou o meio-dia assim e entrou a tarde nesta mesma feição, parecendo que eram novos tempos diluvianos. O que se iniciou já na escuridão, agora praticamente fechava tudo, num negrume que impedia de não se ver quase nada adiante.
Não se via quase nada adiante, mas ao redor da casa se via tudo. E foi por isso mesmo que um fato muitíssimo estranho começou a acontecer. E tudo aconteceu da maneira mais impensada que se poderia imaginar.
Primeiro um cachorro saiu de dentro da casa e ficou do lado de fora, pertinho mesmo, caminhando de lado a outro, farejando as águas. Não demorou muito e voltou para dentro. No instante seguinte alguém colocou a cabeça do lado de fora da janela, estendeu o braço como a experimentar a força da chuva lá fora.
Gesto desnecessário, pois chovia torrencialmente por todo lugar menos ao redor da casa, ao lado das paredes, onde só caíam chuviscos. Mesmo assim a mão foi estendida e em seguida desapareceu junto com o semblante da pessoa.
Dois minutos depois a pessoa saiu pela porta tendo uma mala à mão. Acompanhada pelo cachorro, saiu na malhada e deu alguns passos. Agia como se não houvesse tempestade alguma por cima de sua cabeça. E talvez nem se molhasse nem sentisse seus pés encharcados.
Antes de seguir adiante, se voltou, ficou mirando a velha casa por alguns instantes, fez um gesto de adeus. E do mesmo jeito, nesta mesma visão, já havia acontecido em outros tempos.
Estranho demais. Impossível que alguém de repente saia de uma casa abandonada. Impensável haver alguém ali ao lado do silêncio e da solidão. Mas havia.
Continua...  


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sábado, 28 de abril de 2012

A BIOGRAFIA DOS COITADINHOS (Crônica)


                                                    Rangel Alves da Costa*


Os mais sentimentalmente frágeis certamente chorarão todas as vezes que lerem os dados biográficos da maioria dos governantes, dos poderosos, dos importantes e influentes, dos políticos com mandato ou não.
Ministros, secretários do alto escalão governamental, cantores famosos, pastores ou missionários evangélicos podres de ricos, donos de grupos de comunicação, celebridades televisivas, homens de alta patente, dentre muitos outros, parecem todos nascidos em manjedoura, na maior pobreza do mundo.
Coitadinhos, dá até pena em saber que tal pessoa passou por tanto sofrimento na vida, que morava em casinha de taipa, com os pais tendo a maior dificuldade do mundo para adquirir o pão de cada dia, sem ter chinelo pra calçar, sem poder estudar porque não tinha roupa pra ir à escola nem um lápis e um caderninho. E é só o começo de um percurso de vida deslavadamente mentiroso.
Eis que dificilmente se lê uma biografia de gente desse quilate para que a mesma não fale da infância difícil do menino pobre, nascido em meio às carências familiares, nos rincões distantes de qualquer lugar, muitas vezes tendo até mesmo passado fome. E tudo uma desavergonhada, despudorada mentira, uma arrumação mercadológica querendo repassar um falso caráter de intensas lutas e de árduas vitórias.
Pelo que se sabe, uma biografia, seja lá de quem quer que seja, deve relatar o mais fielmente possível o nascimento, a vida e os feitos de determinada pessoa, mas não criar situações fictícias para repassar uma imagem distorcida, mentirosa e ilusória do biografado. Biografia que se preze rebusca a verdade, mexe até na ferida, sob pena de não passar de uma arrumação romântica e sentimentalista.
As enciclopédias dizem que biografia é a descrição da vida de uma pessoa, a história escrita sobre os aspectos mais relevantes de sua vida, podendo contextualizar desde antes do nascimento até determinado momento da existência, acaso o biografado seja pessoa viva. Assim, é o relato de vida de uma determinada pessoa, contendo sua trajetória, como foi, o que fez, o que faz, quais as suas conquistas.
Por ser descrição de vida, não se transforma esta posteriormente para lhe dar um caráter totalmente inverídico. Daí que seria injusto e mentiroso transformar uma infância dourada numa fase de puro sofrimento; converter a bonança em dificuldades, a riqueza em pobreza, a vida farta em carência de tudo. É inadmissível mentir, criar situações inexistentes, apenas para dizer que a grandiosidade de hoje foi conseguida com extremo sacrifício.
Mas a verdade é que mentem, omitem, e pagam para que escrevam assim sobre suas trajetórias de vida. Ninguém diz, por exemplo, que é filho de família tradicional, rica e poderosa, que teve uma infância em berço de ouro, sempre estudou nos melhores colégios, realizou as viagens de passeio para onde bem desejou, sempre teve carros luxuosos e uma vida glamorosa e desregrada.
Também não pagam para escrever sobre as maracautaias levadas a efeito, os tantos desnorteados éticos e morais, as práticas nefastas para subir a qualquer custo na vida. Esquecem de constar de suas linhas biográficas seu livro maquiavélico de cabeceira e suas cartilhas ensinando a roubar e a mentir. Do mesmo modo, não há um só parágrafo falando sobre suas reprováveis vidas íntimas nem acerca dos inocentes que foram triturados pelas rodas poderosas de suas influências.
Não, nada disso, pois seriam mentiras diante de homens virtuosos demais, puros, inocentes em quase tudo, afetos à santidade. E hoje estão no poder, alcançaram a glória e o sucesso, conseguiram acumular riquezas, pelo simples fato de que lutaram incansavelmente para conseguir tudo isso. Ao menos é isso que dizem, que pregam, que pagam para escrever sobre suas vidas.
Conheço um safado de um político que chega nas comunidades carentes e diz reconhecer todo aquele sofrimento porque também sofreu na pele todas aquelas vicissitudes. Calhorda de primeira grandeza, corrupto de maior quilate, desde a infância que vive no luxo e na devassidão, ainda assim se autobiografa na maior cara de pau.
E manda o assessor anotar para entregar ao seu biógrafo.


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Sabor (Poesia)


Sabor


Adormeci
fruto ainda verdoso
sonhando amadurecer
pensando em você
em você me pegar
em você me colher
em você me encontrar
em você me comer
em você saborear
e depois me dizer
que a fruta é gostosa
que aumenta o querer
vai dar outra mordida
pro sumo escorrer
pensar que é amor
no pomar do prazer.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (2)

                                        
                                                      Rangel Alves da Costa*


Verdade é que ninguém até hoje soube explicar os motivos de tanto silêncio e tanta solidão.
Também não haveria como, eis que nenhum pé de pessoa nunca mais passou ali nem porque seguindo seu caminho, porque precisasse pernoitar ou porque tivesse conhecimento ou interesse de saber sobre as razões do silêncio e da solidão.
Abandono, esquecimento total, uma casa e sua vida, sua história e seu passado perdidos no tempo, relegados ao desdém daquela triste e terrível situação.
Triste porque não há lugar no mundo que um dia já estivesse sido festejado, vivido e compartilhado, que não se entregue à dor do abandono injustificável, de um jeito tão devorador e inexplicável.
A pedra se entristece pelos seus eternos dias de solidão, e por isso chora e fica cada vez mais com coração petrificado; o coco verdejante, cheio de vida e água, vai entristecendo, perdendo a cor, secando até cair numa murcheza terrível se relegado muito tempo ao alto do coqueiro. E por que com a casa abandonada poderia ser diferente?
Não. Era apenas uma casa, uma velha e abandonada casa, porém cheia de vida e de acontecimentos que ainda fluíam nas suas entranhas. Hoje solitária e silenciosa mas tomada das vivências de outros tempos, com seus moradores, suas alegrias, medos, angústias, sonhos.
Por isso mesmo que aquela aparência de solidão, abandono e silêncio não representavam absolutamente nada. Ainda que não se ouvisse nada ali, que ninguém entrasse ou saísse por aquela porta, ainda assim havia um mundo estranho e misterioso sempre acontecendo por ali, e a todo instante.
Ninguém podia imaginar, mas talvez os meninos estivessem correndo e brincando pelos arredores da casa; talvez a mocinha estivesse na janela com uma flor à mão, de olhos tristonhos em direção ao horizonte; talvez a velha empregada estivesse arrumando ou passando o espanador nos móveis; talvez a dona da casa estivesse preparando uma receita diferente para receber visitantes; talvez o dono da casa estivesse amarrando o cavalo debaixo do pé de aroeira depois de chegar de viagem vaqueira.
Talvez, tudo talvez, mas certamente um mundo, uma vida ainda existente ali, de modo que o silêncio e a solidão fossem apenas um ilusório cenário, uma cortina, uma mágica paisagem escondendo uma realidade ainda vivamente existente. Mas qual realidade?
O desconhecimento dessa realidade é que tornava aquela situação terrível. E muitas vezes não somente terrível como amedrontadora, instigante, misteriosa demais. Mesmo no silêncio e na solidão, acontecimentos existiam por ali que deixaria sem palavras qualquer um que acaso pudesse presenciar.
Cavalos que pastavam soltos e avançavam até aqueles ermos, recuavam de vez em quando nas proximidades da casa. Estavam por ali tranquilamente, indo mais além do que o seu dono sabia, mas de repente levantavam a cabeça, saltitavam, batiam fortemente as patas no chão e recuavam a seguir.
Recuavam assustados porque pressentiam algo estranho naquela casa velha solitária e abandonada, jogada ao desvão do silêncio dos dias. E é do conhecimento da maioria que o cavalo é um dos poucos animais que pressentem o perigo, as coisas estranhas que estão ao redor ou mais adiante.
Por isso mesmo que o animal prefere derrubar o cavaleiro insistente e recuar do que seguir adiante em situação de medo, de assombro e de perigo. Mas não só o cavalo como também outros bichos, e ali de vez em quando um assombro generalizado tomava conta de todos aqueles viventes das matas.
Se a casa abandonada servia de abrigo e dormitório a muitos animais, também é verdade que muitas vezes os bichos não chegavam nem perto da malhada nem nos arredores. Podia chover canivete que não queriam nem saber de correr para lá.
E faziam assim porque pressentiam coisas muito estranhas ocorrendo por ali. Mas o que seria?




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sexta-feira, 27 de abril de 2012

O DESMUNHECANTE (Crônica)

                     
                                                       Rangel Alves da Costa*


A amiga tinha o maior cuidado com o amigo. Sabia do seu segredo e fazia tudo para não ser revelado. De família tradicional como era, seria o fim do mundo.
Se fingia de namorada perante os pais dele, sentava em diálogo amigueiro para mentir contando sobre as peripécias amorosas do garanhão da casa, dizendo do seu imenso ciúme pelas tantas beldades que davam em cima do seu amado.
Mas o negócio dele era outro. Não era mulher nem beldade, não se sentia bem nem pensando na possibilidade de beijar uma boca feminina, tocar em seios rígidos, acariciar um corpo de misteriosa geografia, pecar no paraíso ao lado de faminta tigresa.
Se lesse essas palavras certamente ficaria com raiva. Só o fato de presumi-lo em braços de mulher o encorajaria pra briga, ficaria valente demais, viraria homem em estado brutal. Homem ele era, mas só no nome.
Homem só no nome. E isso ele mesmo tinha orgulho de dizer, porém somente à sua fiel amiga, sua sempre presente guardiã. Verdade é que viviam trancados no quarto, ali reservados na entrega amorosa. Assim imaginavam os seus pais.
Mas não, pois o quarto parecia o antro de lágrimas e entristecimentos, com o rapazinho reclamando da vida, maldizendo a sorte de ter nascido do sexo masculino, resolvendo a cada instante que não suportava mais viver assim e sairia do armário de vez.
De repente corria e dava gritinhos saltitantes se despedindo da amiga e dizendo que ia se jogar da janela. Mas se cair dessa janela você não quebra nem uma unha, dizia ela. Então ele ficava ainda mais raivoso e dizia que ia fazer uma corda de calcinhas para se enforcar. E morrer vestida naquela de lycra vermelha. E danava-se a chorar, rolando por cima da cama.
Mas um dia a fiel amiga resolveu fazer um teste perigoso demais. Segundo ela, tiraria a prova de uma vez por todas da preferência sexual dele. Então, no quarto de porta trancada, enquanto ele estava de costas ela ficou completamente nua e correu para abraçá-lo e acariciá-lo.
Levou um empurrão que rolou por cima da cama até cair no chão. E o pior é que foi expulsa dali debaixo de palavrões e ameaças e com a sentença de que nunca mais, jamais em momento algum de sua vida, colocasse os pés ali nem lhe dirigisse a palavra.
E choroso afirmou ainda que não dormiria à noite inteira pensando naquela coisa horrível e repugnante que era uma mulher nua e ávida por sexo. E também não tinha dúvida que teria de fazer análise para se livrar desse horrendo trauma.
Contudo, já no dia seguinte telefonou chorando e pedindo todos os perdões do mundo à amiga. Disse ainda que se ela pudesse passasse ali pois teria que sair com seus pais até à casa de amigos e estava com muito medo de se comportar e gesticular de modo que aflorassem as maiores suspeitas.
Quanto à calcinha que usava por baixo não, pois sabia que ninguém descobriria, muito menos desvendaria a face feminina que morava em seu íntimo, em seu interior mais profundo. O problema era outro. Tinha medo de se descuidar e de repente dar uma desmunhecada daquelas; tinha medo de encontrar por lá um garotão e não poder suportar a tentação.
Tinha medo de muitas outras coisas. Medo de que os seus pais descobrissem o róseo lilás que emoldurava o seu ego; medo de sair do armário e ser jogado na rua, sem roupa e sem armário; medo de sofrer os sofrimentos tão próprios das mulheres.
A amiga perdoou-lhe pelo incidente e logo bateu na porta do quarto. E já sabendo dos seus medos, chegou municiada com um verdadeiro arsenal para combater as fragilidades que poderiam recair naquela mimosa figura perante a sociedade preconceituosa.
Daí que levou óculos escuros e uma tipóia. E disse que mesmo que fosse à noite o encontro teria de usar óculos escuros para a eventualidade de encontrar diante de si outro atraente olhar masculino. De óculos escuros poderia flertar à vontade que ninguém perceberia.
E a tipóia era pra fingir estar com um braço fraturado. Com o braço preso na horizontal, a mãozinha poderia muito bem se soltar como quisesse que ninguém perceberia o desmunhecamento.
E com a outra mão, faço o que? Perguntou ele. Faça tudo, menos pegar a taça com a pontinha dos dedos. Respondeu a amiga.


Poeta e cronista
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Nomes (Poesia)


Nomes


Ache feio não
João, Maria,
Lurdinha, Tião
são nomes do sertão
mais que um nome
apelido e sobrenome
Maria da Conceição
João de Jesus
Zabé de Tião
parece até estranho
mas não ache feia
a cria desse rebanho
João é trabalhador
Maria é lavadeira
Zabé uma rendeira
Tião é desempregado
mas todos vivendo
na maior dignidade
onde o nome de família
nomes desse sertão
são apenas enfeites
como raízes do chão
denominando pessoas
sem mostrar o coração
as tantas virtudes
no povo mais cidadão.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (1)


                                                        Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Dia e noite, ano a ano, chovesse ou fizesse sol, a lua brilhasse ou na escuridão os bichos das sombras caminhassem ao redor, a velha casa parecia inacreditavelmente a mesma.
Apenas uma casa nas lonjuras dos centros urbanos, nas distâncias da civilização progredida, no meio dos descampados, no esquecimento e ao deus-dará dos restos abandonados.
Uma casa, velha casa e sua feição rugosa, entristecida, desamparada, relegada ao plano da inexistência. Qual a cor de um dia, qual o sorriso que se avistava da janela, quais as feições que entravam e saíam de sua porta, qual povo um dia habitou ali?
No centro e no meio do nada, bem na confluência da natureza vivaz que fazia fronteira e vizinhança. Se bem que tudo num misto de aridez e desolamento permeado por mata fechada e seus habitantes.
Ao lado, as pedras, os tocos, os garranchos das árvores mortas, a terra seca e pedregosa, o chão tomado de ervas daninhas e flores rasteiras do campo. Um aspecto ora marrom ora acinzentado, uma luz brilhante em tudo, uma cor avermelhada e triste do entardecer.
Uma casa, velha casa abandonada. Não havia mais ferrolho, fechadura, tranca alguma. O vento chegava e entrava, abria a porta e fechava a porta. No resto do que um dia foi telhado, apenas a peneira do sol e da lua, da chuva e do que a natureza mandasse lá pelo alto.
De vez em quando os visitantes chegam ali e tomam o seu lugar pra instante de descanso, de repouso, de soneca, ou mesmo com mais vagar, pra ficar quase um dia inteiro, virar a noite, cortar o outro dia, até sair pela porta do mesmo jeitinho que entrou.
Tem visitante que nunca saiu de lá, mas também ninguém nunca viu. Talvez como sombra, como ser invisível, como vivente debaixo da terra, como alguém ou coisa que não existe em lugar nenhum, a não ser ali.
Mas de vez em quando uma cobra ou outra ultrapassa o vão da porta e some lá dentro. Quando retorna ninguém sabe ou vê, mas verdade é que de repente a casa, ou os restos dela, fica novamente sozinha, abandonada, no silêncio, na solidão...
Bicho que tem medo da lua escondida logo procura refúgio ali. Como está escuro demais, chega um e mais outro, outro e mais outro, e os cantos da casa ficam tomados de visitantes noturnos.
Nenhum bicho faz barulho que é pra não deixar que os outros sintam a sua presença. Um som mais acentuado, um gesto mais aberto ou até mesmo o cheiro pode testemunhar a presença ali de forma perigosa, pois um inimigo pode estar bem na proximidade.
Assim, a casa pode está repleta de visitantes e ainda assim é como se ali não estivesse qualquer coisa. O silêncio toma conta de tudo, o vento entra pela porta e janela que abre e fecha incessantemente. E ainda na escuridão da madrugada muitos já começam a sair de fininho.
Ali entra onça, preá, cágado, guaxinim, tamanduá, cobra, passarinho, raposa, tatu, teiú, seriema, jaçanã, veado, acauã, peba, tatu, gambá, calango, lagartixa, abelha, gato do mato, jaguatirica, lince, preguiça, porco-espinho. E toda a bicharada que na mata ao redor houver.
E certamente também a caipora, o boitatá, a cobra-grande, a cuca, o saci-pererê, a mula-sem-cabeça, o fogo-corredor, o lobisomem. Mas estranho é que ali não entra o homem, ao menos não é visto por ali nem nos arredores desde tempos já envelhecidos.
Mas que tem presença cativa, a qualquer hora do dia ou da noite, é a aragem do tempo em todas suas feições. E chega a brisa dançando no ar; o vento trazendo folhagens e notícias de longe que ninguém vai ouvir; a ventania açoitando a porta e a janela; os vendavais que antecedem ou acompanham as chuvas ou tempestades.
E por ali há histórias e estórias, casos e causos, fatos e acontecimentos que colocam em redemoinho o pensamento de qualquer um e instigam por saber os motivos de tanto silêncio e tanta solidão.
Continua... 


Poeta e cronista
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quinta-feira, 26 de abril de 2012

BEIJO DE LÍNGUA (Crônica)


                                                        Rangel Alves da Costa*


Coisa de juventude e até de brotinho com pelanca caindo, verdade é que tem gente que gosta de se lambuzar, de ser limpador de pia. Quanto no corpo não resta qualquer pureza, a safadeza jorra até pela boca.
Não tenho nada contra quem não conhece o significado nem a doçura saborosa de um beijo. Mas também não consigo entender qual o gosto de chupar saliva, micróbio e outras impurezas, e tudo com ânsia devastadora da boca do outro.
Se lembro do verdadeiro beijo logo repudio o beijo de língua. Há uma expectativa gostosa no corpo que diferencia tudo; há um calor sobre a pele que faz toda distinção; há um tremular do corpo que delimita o beijar.
Duvido que o beijo de língua anteceda a palavra de amor, o olhar de querer, o toque sensual, o abraço essencial. Duvido que esse beijo esguichado transmita aroma, absorva o calor labial, sinta no outro a ternura do toque.
O beijo, ainda que beijo de amor, é sagrada fruição. A aproximação da pele e o toque no lábio possuem o dom de ser a chave para se alcançar o íntimo. Feito magia, basta essa junção para que aquele que ama comece a se enraizar no outro.
Talvez não seja fácil de entender, mas tenha-se o exemplo da abelha na flor. Aquela, bicho temido, feroz, deixando vítimas onde repousa o lábio, talvez ame demais a flor e por isso mesmo a trata tão suavemente quando beija. Aproxima-se, faz o rasante, toca a pele, sente o néctar e vai embora feliz.
Eis também o exemplo do vento que ama e da folha entristecida. Mesmo que tenha o percurso de ventania, aproxima-se feito brisa da folha frágil e a toca, num beijo leve e sensual, fazendo-a estremecer levemente. E porque ama, e porque a quer, tem o cuidado de não abraçar demais e beijá-la avidamente, sob pena de vê-la despencar lá de cima.
Mas por que certas pessoas têm avidez vulcânica, avançam igual avalanches, se apossam tal qual redemoinho, lambem o que encontram pela frente como barragem que abre a comporta? E depois, qual o sabor do encontro, da passagem, da vivência daquele momento? E também qual o prazer na tresloucada avidez?
Ora, o beijo de língua, o beijo chupado, sugado, lambuzado, nada mais é do que fúria corporal que surge ao acaso. E surge assim, tão incidente e acidentalmente, que logo se depreende ser gesto sem nenhum significado amoroso maior, a não ser pela volúpia e pelo descomedimento erótico. Nesse desvão, a boca avança furiosa como se quisesse ferir inimigo em batalha.
Vivo repetindo que prefiro morder vagarosamente a maçã a abocanhá-la de vez, acho melhor saborear a uva do que mastigá-la com caroço e tudo, opto por experimentar o mel do que derramar a colmeia na boca, não duvido que prefiro sentir o chocolate morno nos lábios do que virar a xícara fumegante.
Quem quiser morda a casca da melancia e deixe a carne, dilacere a laranja e deixe o sumo, prefira a castanha ao caju, queira engolir a semente e deixar a polpa, negue a pele da fruta gostosa roçando no lábio. Quem quiser pode até fazer sangrar o outro lábio, cuspir na boca e quebrar os dentes, enfiar língua goela adentro até engasgar. É tudo uma questão de beijar, saber beijar e aceitar o beijo.
Mas a pedra não gosta da violência da onda, pois de tanto açoitá-la vai lhe corroendo; a mata não gosta da ventania feroz, pois não há saraivada de ar que não deixe a natureza mais pobre; a terra não gosta de enxurrada, vez que a correnteza leva adiante todo os nutrientes que restam. E por que alguém gostaria não de ser beijado, mas tomado pela fúria de uma boca que lhe invade feito tufão?
Quem beija na boca assim não pode beijar um rosto, eis que a face possui maçãs. E toda fruta gosta de ser saboreada e não brutalmente devorada.




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