*Rangel Alves da Costa
O braseiro vivo toma conta da fornalha. O
calor incandescente se espalha entre os fumos enegrecidos dos espaços. As
paredes enegrecidas parecem de lodo visguento. Dentro da fornalha um vulcão
avermelhado. Ao lado, com panos encobrindo parte do rosto, os olhos tomados de
pó mirram o pedaço de ferro.
Tim! Tim! Tim! O baque seco vai moldando o
ferro retirado naquele instante do interior da fornalha, do vulcão avermelhado.
Com uma das mãos, e esta recoberta de panos e segurando apenas a ponta não
incandescente do ferro, com a outra o ferreiro dá mais um baque certeiro: Tim!
E mais outro e mais outro, muitos. Tim! Tim! Tim!
Aos poucos, batida após batida, o ferro
abrasado vai sendo moldado, cortado, recortado, tomando a medida do que se quer
fazer: uma enxada, um enxadeco, uma foice, um facão, um chocalho, uma sineta,
um ferro de ferrar bicho. E também gente. Sim, ferro de marcar bicho e gente,
ou gente tratada como bicho pelo ferrador.
O ferreiro não tem culpa não. No seu ofício
de artesão do amoldamento do ferro, ele apenas produz objetos de usos. E dentre
tais objetos o ferro de fazer marcação nos bichos de cria. Recebe a encomenda
com o molde desejado, com letras, símbolos ou outros motivos, e apenas faz
valer sua maestria para produzir a contento. Os usos posteriores já não fazem
parte de seu ofício.
Certamente que um ferreiro jamais imaginaria
que alguém chegando para uma encomenda, depois de o ferro ser feito o mesmo vá
ser utilizado para marcar outra coisa senão bicho do mato, mais precisamente
boi, novilha, vaca, bezerro, até jegue, cavalo e burro. E assim sempre foi
utilizado para deixar no lombo do bicho a identificação de seu dono. Mesmo
podendo ser vista como maus-tratos, tal marcação é feita desde os antigamentes.
Maus-tratos com o bicho ferroado por que é na
pele, adentrando a carne, que o ferro em brasa avança faminto e voraz. O
ferrador coloca o ferro entre brasas e quando a vermelhidão do fogo toma conta
da ponta da marcação então rapidamente a insígnia em brasa é direcionada à pele
do animal, rompendo o pelo e muitas vezes deixando a marcação em carne viva. E
um cheiro terrível de carne queimada vai tomando conta de tudo.
Depois de marcado, então o bicho poderá ser
mais facilmente identificado. No seu lombo sempre estará a estrela, o sol ou a
lua, o desenho, as iniciais do nome do dono. Acaso o animal se desgarre, tome
sumiço ou seja levado de dentro do pasto por um larápio espertalhão, então a
marca no lombo confirmará sua propriedade. Contudo, como dito, ao longo da
história muita pele humana recebeu o impiedoso ferro em brasa.
As antigas fotografias da escravidão
comprovam o quanto o negro era tratado e ferrado como se bicho fosse. Mas
diferente do boi ou cavalo, marcado, ferrado em diversas partes do corpo, das
pernas às costas, mas também no rosto e até na testa. E tal crueldade ocorria
também pelo fato de que uma vez vendido o escravo já marcado, o senhor seguinte
também impingia na pele negra o seu símbolo bestial.
Famoso é o JB do ferro utilizado pelo cangaceiro
Zé Baiano para marcar o rosto daquelas mulheres de Canindé do São Francisco, no
sertão sergipano. Conhecido como Carrasco Ferrador, o cangaceiro do bando de
Lampião praticou, sem motivo algum e tão somente para seu deleite de sua
bestial malvadeza, investiu contra inocentes e deixou-lhes a carne fumegando
ante o queimor daquelas letras covardes e desumanas.
A primeira a ser ferrada foi Anízio do Forno,
nos dois lados do rosto. Após ser marcada com ferro em brasa, teve ainda seus
cabelos cortados pelo malvado cangaceiro. Não contente com a atrocidade
cometida, mais adiante repete a malvadeza em Maria Marques, só que dessa vez,
além do rosto, também nas nádegas e na vagina. E o mesmo ferro abrasado no
vermelho-fogo também em Isaura de Birrinho. Quer dizer, Zé Baiano deixando
naqueles rostos e corpos sertanejos as marcas maiores de sua insana
perversidade. E sem que fosse sequer impedido por Lampião, seu comandante
maior.
Como observado, o ferro em brasa já
chamuscou, ferrou, lanhou, muita pele humana. Ferra-se o gado para que este
leve aonde vá a identificação de sua propriedade. Nas letras e nos símbolos
estão as marcas da serventia. Mas o ser humano é bicho para também ser ferrado
na pele, marcado na alma. O senhor do escravo nutria prazer ao ouvir os gritos
negros enquanto o ferro tostava a pele. O carrasco ferrador nutria o mesmo
prazer enquanto as sertanejas gritavam e imploravam para serem poupadas da
perversidade.
Mas os ferros ficaram perdidos no tempo e as
marcas dos ferretes já não existem na pele humana. Ledo engano. Fala-se num
tempo de açoite, de chibata, de grilhões, de ferros em brasa. Mas a escravidão
e a submissão são ferros que permanecem em chamas devoradoras. Não precisa que
o ferro alcance a pele quando as marcas da dor são impingidas de muitos outros
modos de submissão.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com