*Rangel Alves da Costa
Há na velhice um cais defronte a um mar
imenso. E neste cais um velho querendo ser marinheiro, viajante das águas,
sempre desejoso de navegar pelas distâncias sem fim.
O cais lhe parece uma estrada já conhecida.
Chão molhado de suor e de luta, de lágrimas e tantos outros derramamentos. Cais
molhado de tempo e de serenos da idade.
Há uma pedra no cais onde o velho costumava
sentar ao entardecer. Ao amanhecer também. O dia inteiro. Ora, a velhice chega
e sempre chama à solidão das pedras do cais.
De vez em quando se demorava mais sentado na
pedra. O tempo passava que nem sentia. Ao longe mirava um mundo de águas,
silhuetas chegando e partindo, apitos e sons.
O farol sempre lhe parecia de uma estranheza sem
fim. Quando a noite chegava e o faroleiro subia ao alto, era como se lhe
abrisse um lenço diante do olhar marejante.
Aquela luz do farol como vulto amarelado na
água. Aquela luz amarelada passeando por cima das ondas. Aquela luz dançando uma
valsa solenemente triste. O velho entristecia.
Durante o dia, o rasante das gaivotas até
atrapalhava sua meditação. Gostava do silêncio murmurejante, da paz. Somente
assim podia meditar sobre a solidão da vida e do cais.
As revoadas seguiam sob seu olhar miúdo. Já
não conseguia avistar o bando passarinheiro se distanciando pelos céus, pelos
horizontes. Instante de também querer voar.
Quando mais jovem, ou quando ainda moço na
flor da idade, gostava de estar ali apenas para avistar os barcos chegando e
partindo, a vida gritante e apressada do cais.
Um cais de marujos, de capitães, de
trabalhadores braçais, de carregadores, de prostitutas, de meninos de rua que
ali faziam suas camas de sonhos e desesperanças.
Cestos de frutas olorosas chegando, cachos e
mais cachos de bananas, fardos de couros, sacos de milho e de feijão. E aqueles
homens num esforço danado para ganhar tostão.
Com o passar dos anos, nada disso lhe
encantava mais. Passou a tudo ver pelo lado do sofrimento, da agonia, da dor.
Ora, ali no cais não havia motivo algum para a felicidade.
Deixou de estar ali por causa disso. Não se
ausentou de vez, apenas resolveu que somente se sentaria naquelas pedras em
instantes de silêncios, de murmurejos das águas.
Já estava cansado, lanhado da luta, se
sentindo velho demais para presenciar sofrimentos e aflições. Precisava meditar
sobre a vida, repensar a vida, refletir a vida.
No seu pensamento, mesmo a janela de casa
estando aberta para o sossego do entardecer, nada disso seria mais cativante do
que estar sentado numa pedra de cais.
Resolveu então retomar seu caminho de mar e
ter a pedra de cais como seu altar de deus solitário. E então esperava o sol se
pôr para lentamente seguir ao seu beiral de areia.
A pedra do cais já o conhecia. Molhada,
encharcada, respingando ondas, ainda assim parecia se enxugar perante a sua
presença. E de sua boca ouvia um cumprimento de boa tarde.
Que imagem triste se emoldurada. Um velho, um
entardecer avermelhado, um cais, uma pedra, um mar imenso. E o velho mirando
adiante como se ali estivesse um mundo.
E estava. Aquele mar de mistérios era um
mundo. Avistando as águas, estendendo olhar sobre as águas, o velho ia viajando
pela estrada criada em pensamento. E seguia adiante.
O que lhe importava não era o mundo além-mar,
não era o porto além das águas, não era a pedra existente em outro cais, mas
tão somente o mistério indecifrado naquelas águas.
Um leito azul, esverdeado, escurecido após o
anoitecer, calmo e grandioso, mas que certamente seria uma estrada para algum lugar
melhor do que aquele do cais.
E num entardecer de cais e de velho sentado à
beira do cais, na sua pedra de todo dia, de repente os passos seguindo em
direção ao imenso mar, rumo àquela estrada misteriosa.
E o velho andando, seguindo mais, molhando os
pés, as pernas, os joelhos, o corpo inteiro. Até sumir no mar.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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