*Rangel Alves da Costa
Houve um tempo de um povo muito mais feliz do
que é agora. E não há como duvidar disso. Mesmo a pobreza maior, mesmo a
carência mais viva, mesmo as necessidades em maior profusão, certamente que era
um tempo de mais paz, de mais contentamento, de muito mais felicidade. Na casinha
de cipós e barro, no arruado acanhado, em meio às distâncias de tudo, um viver
tão diferente do que se tem agora. Mesmo a pobreza de hoje é diferente daqueles
tempos. Naqueles idos, o pouco que se tinha ou o quase nada ter, ainda assim
suportado pelas retribuições no próprio modo de viver.
Sem ter
geladeira ou água gelada, o contentamento se dava quando uma quartinha era
avistada num umbral de janela. Nada melhor e mais doce que água de moringa. Depois
de um pedaço de cocada ou de umas duas colheradas de doce de leite, somente uma
rede armada debaixo de uma figueira na malhada. Se as nuvens prenhes avançavam,
logo correr para catar feixe de lenha. Três, quatro, cinco feixes, debaixo da
pequena latada do quintal. Uma mão de madeira para o fogão de lenha. O pilão já
havia gemido pisando o café.
Vasilha
grande em cima do fogo, água fervendo e o pó escurecido e cheiroso derramado.
Na fervura, as borbulhas negras perfumando o quintal e mais além. Não havia
quem não quisesse experimentar logo um tiquinho de tanta gostosura. Depois a
frigideira com banha de porco espalhada por riba. Com o chiado, a tripa, o
bucho, os ovos de galinha de capoeira. O cuscuz já estava feito. Não de milho
ralado daquela vez, mas de gosto demais pela fome da luta. Na memória, um sino
toca. Há uma igrejinha e um sino em cada memória sertaneja. Hora da Ave Maria.
No oratório do coração ou de canto de parede, o velho rosário contado nos
dedos, os joelhos encharcados de chão, a fé.
Que vida,
meu Deus! Tão simples e tão singela, tão humilde e tão grandiosa. E depois do
agradecimento pelo prato da noite, o abrir a porta para a aragem da noite.
Cuidado, muito cuidado para o candeeiro não se pagar. Radinho de pilha, uma
canção antiga, uma saudade. E lá nas alturas a lua mais bela do mundo. No
silêncio da noite, a lua canta, o vaga-lume dança, a vida faz festa. Conheci um
sertão assim. E tanta saudade eu tenho desse sertão assim.
Um sertão
de Poço Redondo e tantos outros sertões assim, de noites, de candeeiros e luas
cheias. Num sertão assim, a vida em sua essência. Sem modernidade ou modismo
que atrapalhe o sossego, apenas o viver na sua inteireza, ainda que no chão na
humildade e no leito da simplicidade. Num tempo onde o sobreviver era o bem
mais precioso, o luxo do homem era o pão, as quatro paredes, o seu compasso no
dia a dia.
Sim, o
homem e sua lua, o homem e seu vaga-lume, o homem e seu candeeiro. Dias de luta
e noites de paz, no sossego da porta de casa, por cima da pedra grande adiante.
Pelos arredores a natureza em profusão, gemendo seus escondidos, desfolhando as
velhas galhagens naqueles outonos sem fim. Tempo entristecido sim, parecendo de
desvalia, nublado pela cor da noite chegando. Mas que beleza de se avistar. Lá
em riba, apenas a réstia do último fogo queimado. O marrom amarelado, depois
mais escurecido, vai tomando conta de tudo. Passarinho já se recolhe. A galinha
já subiu ao poleiro. Outros bichos apenas se escondem.
Da boca da
noite em diante e todo o viver sertanejo emoldurado pelas cinzas do sol já
queimado e pelas primeiras faíscas da noite. Uma talagadinha de pinga, um
tantinho de proseado, um reencontro consigo mesmo. Sentar à porta do barraco e
imaginar a vida, pensar o mundo. Evita-se refletir tanto sobre o mundo feio de
mais distante. Melhor, muito melhor, conversar sozinho ou com a ventania que
chega trazendo seus restos e suas folhas secas. Uma vida assim, tão singela e
tão cativante. Um homem no seu mundo sertão.
Até que a
mão procure o algodão enegrecido do candeeiro e o aperto para apagar a chama. A
porta já está fechada. Já é hora de dormir. Ainda cedo da noite, mas já é hora
de dormir.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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