SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

OS DOIS CIRCOS


Rangel Alves da Costa*


Era um circo só, o Gran Circo da Lua, mas com duas realidades diferentes, mas muitos diferentes mesmo. Uma no espetáculo, na apresentação noturna debaixo da lona grande, e outra após o espetáculo e na vida comum daqueles mambembes. Era um circo pequeno, com poucas atrações, mas sempre uma festa incomum na cidade interiorana. O palhaço Alegria, o atirador de facas, duas dançarinas acima do peso, o malabarista, o cuspidor de fogo, a mulher barbada e as atrações principais de fim de semana: o globo da morte e o homem invisível. “Respeitável público, o Gran Circo da Lua lhes apresenta as maiores maravilhas do mundo...”, assim começava o espetáculo.
Sua chegada em qualquer cidade era um espetáculo à parte. Esperado e desejado pela população, que já sabia de sua chegada pelo velho carro com alto-falante em cima, anunciando para os próximos dias a presença do genial, do maravilhoso, do maior e mais fantástico circo do mundo, acabava sendo a novidade tão aguardada por todos, principalmente a criançada. E na data marcada, quando a meninada se alvoroçava correndo de canto a outro, então era a certeza da presença na cidade do maior espetáculo da terra. Portas e janelas se abriam, amigos mudavam as conversas debaixo dos pés de pau, toda a cidadezinha acolhia festivamente o comboio: dois carros velhos à frente e outros dois mais velhos ainda, estes carregando baús, caixas e sacolas, além de um caminhão desengonçado portando a maior parte da estrutura circense.
A cidade inteira se tomava de grande expectativa para a sua estreia. Nos afastados da cidade, nas proximidades do campinho, a acanhada estrutura ia sendo montada. Primeiro o cercado para ninguém entrar sem pagar, ao centro as vigas para as lonas e a cobertura, e depois quatro ou cinco degraus de arquibancadas de uma madeira já envelhecida demais para não apresentar perigo. E por último o camarim, o palco e o picadeiro, além de outras utilidades. A meninada não sossegava enquanto não via o circo em pé, a todo instante estava ali uma dúzia perguntando quando ia ter espetáculo. Mas pessoas de mais idade também circulavam pelos arredores numa vontade danada de avistar tudo pronto para a grande estreia.
Quando o carro de som passou anunciando o dia estreia, então não se comentava mais sobre outra coisa na cidade. Moça se enchendo de bobes, mulheres remendando roupas, homens engraxando os sapatos, a meninada se virando como podia para arranjar os trocados para a entrada. Meia entrada. Até os doze anos só meia entrada. E já chegando o entardecer, os alto falantes do circo foram ligados e os ecos musicais se espalharam pelos arredores. Não havia mais como duvidar da estreia tão esperada. E quando chegou sete da noite, horário marcado para o início, então a plateia silenciava por não poder gritar de tanta ansiedade.
“Respeitável Público, o Gran Circo da Lua, o maior espetáculo da terra, tem a honra de lhes convidar a uma viagem ao mágico, ao fantástico, ao inacreditável. E com vocês, diretamente de Las Vegas, as mais belas dançarinas...”. Entraram as duas rumbeiras rechonchudas, dando início ao grande espetáculo. Contudo, pobres atrações, remendos nas roupas, nas lantejoulas, nos brilhos e nos enfeites. O palhaço quase tombando de bêbado e um atirador de facas que, por ciúmes, quase acerta no coração da galega. Da soma de tudo, somente a pipoca e o algodão receberam os devidos aplausos de que os experimentou.
Ao fim do espetáculo, a vida. Preocupado pela bilheteria insuficiente para cobrir os custos da chegada até ali, o dono do circo logo avisou que dias difíceis os aguardava. Como, aliás, são todos os dias nos pequenos circos interioranos, que, por teimosia e amor à arte, continuavam erguendo lonas e chamando o povo às suas poucas e tristes atrações. Mas, enfim, adormeceram para a luz do sol do amanhecer. E a manhã os encontrou entristecidos, preocupados, desesperançados. No café da manhã, todos se virassem no pão e na manteiga. No almoço uma macarronada sem molho para todos. Nada de carne ou refrigerante, apenas ki-suco.
O palhaço, sumido de sua tenda desde o alvorecer, mais tarde retornou cheirando a aguardente barata. E novamente se recolheu entristecido, choroso, para novamente reescrever uma carta que nunca terminava. As lágrimas sempre molhavam o papel. Respeitável público, assim o grande espetáculo da vida, o maior espetáculo do mundo. Dois circos num só. O da ilusão e o da realidade.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...


As muitas águas que agora correm no leito do Velho Chico. O Rio São Francisco mostrando sua força, sua pujança, sua grandeza de vida.


Minha fulô (Poesia)


Minha fulô


Ela pediu flor
só tenho fulô
Maria gostava
de ramo de fulô
e você não peça
um buquê de flor

não sei o que é flor
só conheço fulô
deixei a Maria
que era meu amor
pensando que você
aceitasse a fulô

fique com sua flor
Maria quer fulô
vou voltar pra ela
ela é meu amor
nunca mais na vida
deixo minha fulô.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta: serenidade


Rangel Alves da Costa*


Não há como negar: a vida é Eclesiastes, tudo é Eclesiastes. Diz o livro da sapiência bíblica: “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar; Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar; Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar; Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora; Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar; Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz”. E por ser verdade, porque há um tempo para tudo, e não adianta a pessoa tentar reverter tal percurso, então surge a importância da serenidade. E o que é a serenidade senão manter uma feição comedida ante as mais diversas situações da vida? Ora, se o Eclesiastes diz, por exemplo, que depois da alegria vem a tristeza, depois do sofrimento vem a alegria, certamente que haverá uma ruptura de sentimentos. E para que assim não ocorra ou que a pessoa deixe de aproveitar a vida por medo do amanhã ou do instante seguinte, deve-se conviver com serenidade: ter, mansamente, tranquilidade a cada momento. E não evitará o espanto.


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quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

UM TIGRE MAL-EDUCADO


Rangel Alves da Costa*


O homem eu sei que é bruto, arrogante, ignorante, feroz, voraz, bestializado e também muito mal-educado. Mas imaginei que com o tigre fosse diferente.
A falta de educação humana é disseminada entre mesmo o que há de melhor na espécie. Mas jamais imaginei que o tigre pudesse ser assim deseducado.
O homem eu sei que não se pode confiar, pois é astuto demais, ardiloso demais, traiçoeiro demais. De tudo ruim há no homem. Mas pensei que o tigre fosse diferente.
A esperteza humana é tamanha que o próprio homem quer passar a perna em si mesmo. Mas nunca imaginei que o tigre chegasse ao ponto de atacar a própria sombra.
O homem é predador por instinto, pois vive fazendo tocaia, emboscada, armando arapuca para traiçoeiramente pegar qualquer um. Mas tinha certeza que com o tigre seria diferente.
Por ser também da espécie animal, o homem muito se assemelha às feras mais perigosas, mais peçonhentas e mortais. Mas sempre imaginei que o tigre jamais desejou ser comparado ao humano.
A verdade é que a descrença no reino dos humanos - e pelas justificativas mais evidentes - faz qualquer inocente da vida imaginar poder encontrar uma realidade bem diferente entre os ditos irracionais. Mas ledo engano.
Não se deve generalizar uma espécie a partir de um elemento, mas como o tigre se revelou, demasiadamente insociável, impetuoso e mal-educado, impossível não temer que o restante seja de tal ou pior feição.
Não sei bem se devia revelar o que se passou entre mim e o tigre. Não tenho certeza se está acertada a decisão de detalhar o porquê, na dependência do estado comportamental do tigre, doravante evitar ultrapassar o seu território.
Com as intenções mais cordiais, dele me aproximei lentamente. Um tanto às escondidas, é verdade. E também levando à mão, como forma de proteção contra outros animais, uma potente arma.
Talvez fosse a percepção de minha chegada na feição de caçador, que fez com que o tigre logo ficasse atento e precavido. Mas não somente isso, pois logo se mostrou pronto para contra-atacar perante qualquer tentativa minha de violência.
Imaginei que os animais das florestas fossem indolentes e passivos demais, e por isso mesmo que os humanos chegavam para fazer o que bem entendessem. Encontrando-os sempre na lassidão das sombras, adormecidos preguiçosamente, então as armas humanas simplesmente avançavam sem qualquer reação.
Imaginei que a floresta fosse um berço de desordem, com todos avançando sobre todos numa luta sem fim, e por isso mesmo o homem chegava para se aproveitar da situação. E dizimava o que quisesse sem que nenhum se preocupasse com a extinção do outro.
Mas quando fui à floresta não intencionei fazer vítimas. E também tinha certeza de que não sofreria qualquer ameaça ou ataque. Dizem que os bichos reconhecem o estranho pelo olhar, e certamente os meus olhos não carregavam qualquer brilho de maldade. O problema é que sou humano, ou penso que seja.
E o humano, pelo seu longo histórico de crueldade contra a própria espécie e contra a natureza e os seres das matas, logo é visto com desconfiança e temor. Daí que o bicho do mato, temendo ser a próxima vítima, ou foge ou se coloca em prontidão para qualquer revide.
Talvez fosse por isso que o tigre tivesse me recebido tão mal, de forma deselegante e mal-educada. Rugiu, bramiu, vociferou. Eriçou os pelos, cresceu em tamanho, agigantou a cabeça, avermelhou os olhos, levantou uma das patas dianteiras e mostrou garras longas e afiadas. E depois deu um salto tão feroz que sequer deu tempo de me proteger.
E de repente estava diante de mim com uma ferocidade terrível. Tentei argumentar, dizer que não tencionava fazer qualquer maldade, mas não adiantou. Rugiu novamente e avançou de vez. Que falta de educação perante o simples visitante.
Já caído, quando abri os olhos percebi aquela boca imensa passeando pelo meu rosto. Não sabia se estava sendo acariciado ou comido. Mas se conto a história é porque o tigre, diferentemente dos humanos, não devora qualquer um. E sabe perdoar os falsos julgamentos.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...


Não há imagem mais confortante ao sertanejo. E que venha a chuva, que venha muito mais chuva...


Amor animal (Poesia)


Amor animal


Quando a tigresa avançou
e sobre todo o meu corpo
lançou suas garras nuas
entorpeci sem resistência
e me deixei ser devorado

quando a leoa avistou-me
e sobre o meu peito nu
debruçou sua mão algoz
apenas silenciei o grito
e me deixei ser devorado

e quando as outras fêmeas
foram chegando famintas
e à minha caça espreitaram
os meus restos encontraram
entre sexos que rosnavam.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: a menina triste


Rangel Alves da Costa*


Havia uma menina que era triste, mas tão triste mesmo, que até os seres da natureza se atormentavam com tamanha tristeza. Depois de observá-la tristonha à janela, uma borboleta logo resolveu chamar outras borboletas - e cada uma mais bonita, colorida e enfeitada que a outra - para tentar levar algum brilho de alegria e felicidade àquele olhar. Mas nada de a tristeza desaparecer. O vento, ao passar e sentir tanta tristeza naquela feiçãozinha juvenil, então resolveu dar meia volta e retornar como uma leve e cativante canção. Mas nada de conseguir qualquer feição de contentamento. Com o beija-flor aconteceu a mesma coisa. Veio devagarzinho e parou bem diante daquele olhar tristonho. Parou e ficou fazendo festa, até se aproximando para beijar os cabelos. Mas nada de ela esboçar ao menos um sorriso. Até que uma folha ao vento, antes de seguir adiante em despedida, olhou para o lado, bem diante da janela onde estava a menina triste, e disse: Não adianta. Eis aí a tristeza existente em todo mundo. Em momentos assim nem a própria tristonha pode forçar o retorno da alegria.


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quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

VIDAS SECAS E MOLHADAS


Rangel Alves da Costa*


Haveria de se imaginar que a Súplica Cearense, de autoria de Nelinho e Gordurinha, eternizada na voz de Luiz Gonzaga, se ajusta ao momento vivido pelo sertanejo ante a chuvarada que vem caindo e causando transtornos nas cidades e estradas. “Oh Deus perdoe este pobre coitado, que de joelhos rezou um bocado, pedindo pra chuva cair sem parar. Oh Deus será que o senhor se zangou só por isso o sol arretirou fazendo cair toda a chuva que há...”, eis trechos da letra. As rezas continuam, mas implorando mais chuva, não há que duvidar.
Invocando mais chuva porque o sertanejo conhece bem a dor sentida na seca inclemente, no sofrimento sem igual para o homem e o bicho. E também porque sabe que o seu destino apenas está sendo reescrito. Certamente que há um destino de Eclesiastes existente no sertão nordestino. Quando o livro bíblico diz sobre nascer e morrer, entristecer e depois se alegrar, sofrer e depois se contentar, como um percurso inevitável de acontecimentos, com um ocorrendo e depois se fazendo o inverso, certamente que tudo se amolda à realidade sertaneja.
Ora, o que é a vida do sertão senão ou a seca ou a chuva, a chuva e depois a seca, e assim em diante? E por consequência a tristeza pelo sol escaldante devorando tudo e o renascimento festivo quando as chuvaradas começam a cair. Mas não duram muito o contentamento, a terra semeada e o grão brotando em flor, para novamente faltar a paz e o sossego do humilde trabalhador. E com a falta de água e de chuva, logo a sede, a fome, a desesperança. Então surgem os rogos, as orações e as promessas para que as forças do alto façam cair pingo d’água.
Talvez daí também a força da expressão de ser o sertanejo antes de tudo um forte. Não apenas pela valentia, pelo destemor e pelo caminho de luta, mas principalmente por suportar - e sem se alquebrar de vez - os desconcertantes caprichos do tempo e as dolorosas imposições climatológicas. Não é tarefa fácil ao ser humano aturar o que o sertanejo silenciosamente tolera na força da fé e do amor nutrido pelo seu raquítico rebanho, pela sua vaquinha no couro e no osso. E também saber que depois da chuvarada voltará ao mesmo sofrimento, pois assim acontece desde que o seu mundo é mundo.
A exemplificação disso tudo está ocorrendo agora. Já fazia muito tempo que o sertanejo outra coisa não fazia senão sonhar com as chuvaradas, as chuvas de invernada, as trovoadas tão milagrosas. A cada dia que passava o sofrimento aumentava pelo chão ressequido, o cacto definhando, a falta do de beber e do de comer para cada ser sertanejo. E tendo de se submeter aos políticos aproveitadores na esperança de uma carrada de água. E tendo de se fragilizar - e na fragilização as sombras do escravismo - perante as ambições impiedosas daqueles mesmos desumanos aproveitadores.
Mas as barras do horizonte avermelharam, as nuvens prenhes chegaram e de repente aquele bafo quente e de cheiro inconfundível levantando da terra ao receber molhação. As chuvas chegaram. Como cumprimento do destino do Eclesiastes, as chuvas chegaram. Não faz muito tempo que retornei de meu sertão sergipano de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo e por lá deixei a seca maior do mundo. Tudo cinza, tudo esturricado, um calor de mil sóis, uma desolação de entristecer e fazer chorar. Mas as últimas notícias recebidas são de chuvaradas fortes e trovoadas. E por todo o sertão.
Numa questão de poucos dias, a coivara da terra se transformou em poça e lamaçal, a planta morta ou quebradiça foi renascendo verdosa, o barro do fundo de tanque se diluindo para se transmudar em água jorrando pelas beiradas. Coisa de não acreditar, mas é assim que acontece por lá. Para um exemplo desse destino eclesiástico, o Riacho Jacaré, que passa entrecortando a cidade de Poço Redondo, desde muito seco, devastado e putrefato, de repente irrompeu com uma cheia desde muito não avistada. Chegou veloz, em correntezas e seguindo imponente para desaguar no Velho Chico. Mas como dito, apenas uma feição passageira.
Em alguns municípios sertanejos as chuvaradas foram menores, mas enchendo fontes e tanques e alagando ruas e estradas, mas noutros a situação se tornou de calamidade. Uma barragem rompeu em Monte Alegre de Sergipe e suas águas invadiram ruas e casas, deixando famílias quase ao desabrigo. A pista asfáltica entre o mesmo município e Nossa Senhora da Glória não suportou a força das correntezas de um riachinho e foi destruída por uma cratera que se abriu de lado a outro, impedindo o trânsito de veículos.
No sertão é assim, ou tudo ou nada. Ou seca demais ou chuvarada voraz causando inundações e estragos. Como afirma um bom pastor que por lá cuida de rebanhos, um sertão de vidas secas e molhadas. As dádivas de hoje até o sol novamente vingar e tudo voltar ao percurso de sempre, com as secas e as promessas para chover. Assim é e assim será. Sempre. Só na política que há uma continuidade perniciosa, aviltante e lesiva à população sertaneja.


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Lá no meu sertão...


Tempo de chuva. E a chuva caindo no sertão...




Flor de beijo (Poesia)


Flor de beijo


Bem te vi colibri
beijando a flor
aqui e ali
doce sabor
de sapoti
morena cor
de açaí

pássaro apaixonado
um beija-flor
de lábio alado
fino licor
sugado
e ao amor
atado.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: o cego e as cores do arco-íris


Rangel Alves da Costa*


Para espanto da mãe, de repente o filho se aproximou e perguntou quais as cores do arco-íris. Cego de nascença, sem jamais avistar qualquer luz senão a escuridão, a mãe ficou instigada em saber por que, assim de repente, o menino queria saber as cores do arco-íris. Vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta, respondeu ela. Então o filho perguntou: E a cor que eu enxergo é vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil ou violeta? Ou será que a cor que enxergo não está no arco-íris? Coitada da mãe. Já propensa a chorar, esforçava-se ao máximo para que o filho não sentisse seu estado de aflição. Mas respondeu: Sim, meu filho, todas as cores possuem essa mesma cor que você enxerga. Tenha certeza que o arco-íris que eu avisto possui as mesmas cores que aparecem diante de seus olhos, porque o arco-íris não é o que a gente enxerga, mas o que a gente sente. Então o filho disse, por fim: E o meu é tão bonito que até quando fecho os olhos ele aparece com as mesmas cores.


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terça-feira, 26 de janeiro de 2016

NA CIDADE


Rangel Alves da Costa*


A cidade grande já se mostra estranha demais, mesmo nela já tendo vivido desde muito tempo. A capital sergipana, mesmo ainda considerada pacata, já não me atrai como antigamente. Tornei-me quase como um estranho.
Consequência disso é a minha ausência em muitos aspectos de sua vida. É como se a cidade fosse um mundo diferente depois da porta da frente, e da porta pra dentro um distanciamento sem fim. E sempre prefiro estar no retraimento solitário dentro das quatro paredes.
Talvez eu esteja errado por considerar como distância aquilo que não conheço o percurso. Talvez eu esteja errado por resolver me afastar daquilo que costumeiramente nunca me aproximei. Assim, o mundo lá fora pode não ser aquilo que imagino.
Na verdade, sempre há um motivo para atrair. Tudo depende dos gostos, das predisposições, daquilo que se deseja encontrar. Há a noite para quem gosta da curtição, há diversas praias para quem gosta de banho de sol e de mar, há barzinho para quem gosta de bate-papo casual, há museus para quem gosta de reencontro com o passado, há diversas opções para quem gosta de arte, de folclore, de história.
Não significa que eu não goste de tais ambientações e suas possibilidades. Sou sempre adepto de tudo que diga respeito a manifestações culturais, a história, ao conhecimento útil. O que implica mesmo é o distanciamento dessa realidade, é a ausência onde tais aspectos se manifestam.
Possuo uma visão diferente do conhecimento da cidade. Entendo que visitas pontuais a museus, centros culturais e outros locais onde se manifestam as tradições populares (artesanato, dança, comida típica, música regional), não são suficientes para o enriquecimento cultural perante o que a cidade apresenta.
Creio existir outras formas importantes de compreender não só a cidade como sua história e suas feições sociológicas e culturais. Aprendi que olhar para o alto, acima dos andares térreos dos edifícios e construções antigas, possibilita encontrar, através das formas arquitetônicas, aspectos primordiais da história de sua história.
Igualmente aprendi que numa mesma fachada há dois momentos que devem ser compreendidos. No centro da cidade, a parte térrea sempre apresenta uma feição diferenciada daquela avistada mais acima. O que está embaixo, na linha da rua, apresenta a feição comercial urbana, com fachada descartável e bem diferente da estrutura do prédio em si.
Olhando um pouco mais acima será possível avistar uma arquitetura antiga, imponente, com linhas não mais utilizadas nas modernas construções. Desse modo, se abaixo há a representação da cidade moderna, acima há a representação da cidade histórica, de como ela foi evoluindo através de suas construções.
Por toda a cidade existem detalhes impressionantes. A maioria das construções antigas, principalmente nas residências senhoriais, palacetes e casarões, contém a data de sua construção inserida na própria arquitetura. Poucos são aqueles que observam e cotejam as datas com os marcos históricos. E também poucos os que procuram saber sobre a história das grandes edificações, sua serventia no passado e sua atual propriedade.
Também as ruas contam muito sobre a história da cidade. E neste aspecto ganha relevo a sociologia urbana. Em Aracaju, principalmente nos bairros que ficam no entorno de onde nasceu a cidade, o tradicionalismo das ruas ainda continua preservado em muitos aspectos. As fachadas antigas, bem adornadas, ainda estão presentes em bairros como o Industrial e o Santo Antônio.
Muitas dessas casas ainda possuem quintais, árvores e pomares, e também moradores que gostam de sentar nas suas calçadas. Significa dizer que são moradias e moradores que não perderam as feições passadas, que ainda preservam um jeito de ser e viver ao modo interiorano, no relacionamento com a vizinhança e na valorização de sua rua.
Desse modo, atualmente, nas poucas vezes que caminho pela cidade é objetivando observar seus pequenos detalhes, as pessoas que correm de lado a outro, o que se manifesta pelos mercados centrais, o antigo e o novo comércio, onde ainda está o velho e onde a modernidade se impõe. E, observando, compreender seu percurso.
Mas, como dito, apenas raramente saio por aí olhando para o alto, observando os pequenos detalhes por onde passo. O antigo é muito mais fácil de ser reencontrado que o novo. O moderno surge e já evapora. Por isso que vou atrás do passado.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...


A festa do sertanejo com a chuvarada caindo. Banho na chuva, como se fazia antigamente.


Café com pão (Poesia)


Café com pão


Café com pão
hoje sim
amanhã não

pão com café
para amanhã
só tendo fé

hoje tem não
e falta faz
café com pão

quando tiver
matar a fome
pão com café

dia após dia
assim a mesa
tanta agonia

café com pão
pão com café
ou a ilusão.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: a reza do caçador


Rangel Alves da Costa*


Não é conversa de caçador não. Aconteceu de verdade. Nos tempos passados, quando ainda havia mata no sertão e pé de pau para o bicho e o passarinho, a sobrevivência do homem era ajudada pela caça. Havia tatu, teiú, tamanduá, preá, rolinha fogo-pagô, veado, perdiz, codorna, dentre tantos outros bichos que corriam de canto a outro ou se escondiam nas locas das pedras. Era um tempo de bons caçadores, de velhos sertanejos que passavam dois a três dias, ou mais, no meio da caatinga armando tocaia para matar assegurar a caça do dia a dia. Levando sempre um cachorro perdigueiro, mestre na caça e na correria atrás do bicho afoito ou depois que o animal era acertado e caía distante, o caçador não precisava mais que uma espingarda no seu ofício. Sendo bom de pontaria, então a caçada era sempre proveitosa. Mas quando os animais se enfezavam, se tornavam difíceis de serem alcançados, então havia o recurso da reza. Poucos eram os que sabiam a reza certa para paralisar o animal. Mas a verdade é que quando avistava o bicho lá em cima do pé de pau, o caçador fechava os olhos e murmurava sua reza misteriosa. Os dizeres de encantamento eram tão fortes que o animal permanecia como que petrificado, paralisado. Então era só apontar a espingarda e apertar o gatilho.


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segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

CORONEL ISMERINO BADARÓ CONTA TUDO (E DEPOIS CHORA. E DEPOIS MORRE)


Rangel Alves da Costa*


Coronel Ismerino Badaró, Senhor da Coivara Grande e arredores, era homem de poucas palavras. Só abria a boca para ordenar. E o mando saído de sua boca era coisa de ser cumprida e comprovada. Muita orelha e dedo - e até cabeça - já chegaram à sua presença como prova do serviço feito, e bem feito. Corria o risco de perder orelha, dedo e cabeça aquele jagunço que fielmente não cumprisse as ordens do patrão.
Mas seu silêncio era igualmente perigoso. Quem o avistasse cabisbaixo, ou mesmo mirando as distâncias das terras sem fim, andando de lado a outro, logo imaginava que coisa boa não estava sendo matutada. E que também não demoraria muito para que o chamado desvendasse o mistério, pois certamente uma ordem seria dada. E para ser desempenhada antes que o cuspe secasse. O pior é que nada de bom se esperava daquele que era o mais potentado entre todos que ostentavam a patente de mando na região.
Quando o Coronel Ismerino gritou por Carniça, o seu mais confiado jagunço, este logo riscou a seus pés igual a cavalo adestrado, manso. Mas era uma fera. E o matador, depois de colocar o chapéu sobre o peito e engolir o cigarro de palha que restava no canto da boca, logo perguntou em que podia servi-lo. Na sua mente, a pergunta certa era sobre quem deveria morrer daquela vez. Mas a resposta ouvida fez surgir um espanto descomunal. “Dessa vez não vai ter tocaia, emboscada, nem tiro nem sangue. Só quero que me acompanhe até a varanda para ouvir algumas coisas que tenho a dizer. Venha sem aperreio que dessa vez o inimigo é outro, e coisa que eu mesmo resolvo”.
Seguiram até a varanda, ou um grande alpendre descendo das paredes térreas do casarão, onde o sombreado era garantido a qualquer momento. Ali, geralmente ao entardecer, o coronel se amoitava assuntado sobre a vida e a morte. Sentado numa cadeira de balanço ou em pé batendo na madeira com uma bengala adornada de pedrarias, o poderoso senhor nordestino chamava ao seu destino aquilo que desejava como sina. Era quando abria os velhos baús para espalhar fantasmas e recordações.
Apontou uma cadeira ao jagunço e este não pensou duas vezes, mas antes mesmo de se ajeitar no assento foi logo perguntando se o patrão já estava decidido a mandar matar o Coronel Licurguino, seu desafeto maior por aquelas bandas. Esperou uma resposta que veio mais que demorada. E antes de responder mandou que o seu cabra de confiança lhe trouxesse uma garrafa de cachaça adormecida nos anos. O coronel se serviu de dose e meia e disse ao outro que não se acanhasse de beber o quanto quisesse. Depois acendeu um charuto, estendeu a ferrugem dos olhos a qualquer lugar no meio do tempo, então começou a falar:
“Hoje não vou lhe chamar de Carniça. Seu nome é Aniceto e é assim que foi vou lhe tratar. Pois bem Aniceto, eis aqui um velho homem incompreendido. Um homem patenteado de coronel pelas forças políticas, dono de terra de não acabar mais, influente em tudo que pela região ponteia, fazedor de deputado e governante, amigo dos de lá de riba, mas um pobre coitado. Sim Aniceto, um pobre coitado. Quando herdei isso aqui do meu velho pai e fui alargando minhas terras por todo lugar, eu pensei apenas em ser um homem de posses. Mas a danada da riqueza acaba chamando tudo o que não presta para o seu lado. Logo me viram como o homem mais poderoso da região e tantos e mais tantos logo quiseram tirar proveito da situação. E gente grande, do meio político e do mando lá em riba. Entonce passei a ser usado por essa gente falsa e aproveitadora. Coronel pra cá, coronel pra lá, naquela conversa de bajular pra se aproveitar. Quando o povo me chamava assim eu não me incomodava não, mas com gente do poder era diferente. O povo chamava por ignorância, mas eles por esperteza. Mas o pior foi quando me deram um papel confirmando o coronelato, com poder de vida e morte na região, e em troca eu tendo de dar apoio político. E daí em diante comecei a maltratar as pessoas, coisa que eu não fazia antes. E passei a maltratar para que o medo tornasse todo mundo cativo no voto. Mandava ameaçar, prender e bater, de modo que o povo nem pensasse duas vezes em atender minhas ordens. Se era pra votar num candidato, então tinha de votar, a todo custo. Mas também, principalmente em época de eleição, despejava comida na casa de qualquer um, oferecia esmola, caixão de defunto e tudo o mais. Fazendo assim, não só colocava a pobreza como num curral, encabrestado, como evitava que pendesse para o lado dos inimigos, também poderosos e agindo do mesmo modo. E foi para manter o povo encabrestado e lutando contra os inimigos, que aos poucos fui me tornando um desalmado, um bicho com todas as armas na mão...”.
Parou um instante, tomou outra dose e prosseguiu. Apenas ouvindo, sem entender o porquê de o patrão estar relatando aquilo tudo a um jagunço, Carniça ficava imaginando aonde ele queria chegar. E ouviu:
“Foi pra manter o poder, pra dizer quem mandava aqui, que passei a ordenar que o sangue jorrasse. Como vosmicê bem sabe, mandei matar coronel intrometido, mandei matar jagunço de outro mando, mandei matar todo aquele que ousasse me desafiar. E até inocente morreu. E pra que tudo isso Aniceto, pra que tudo isso? Pelo voto, pelo mando, pra ter cada vez mais terra, pra eleger político da capital e lá de riba, e depois viver sem qualquer prazer na vida. E como fazer uma fera voltar a ser gente depois de tanta judiação?...”.
A voz embargada, os olhos marejando, o coronel chorava. Não prosseguiu. Puxou um lenço do paletó de linho branco, levou aos olhos, e em seguida gesticulou para que o jagunço saísse dali. As sombras da noite chegavam. Tudo num estranho silêncio ao redor. No alpendre do casarão apenas o vulto do coronel ainda sentado na cadeira. E assim amanheceu, porém sem vida. E que coisa mais estranha ser encontrado um rosário em suas mãos.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...


A sertaneja festejando a chegada das chuvas. É assim por todo o sertão...


Vida sertaneja (Poesia)


Vida sertaneja


Lá no meu sertão
quando seca
eu lamento
quando falta
eu choro
quando dura
eu morro

quando pinga
eu renasço
quando chove
eu vivo
quando vivo
eu planto

quando colho
eu canto
quando bebo
eu sorrio
quando como
eu festejo

mas por medo
eu oro
para proteção
eu rezo
e peço a Deus
salvação!


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: beijo na boca


Rangel Alves da Costa*


Nunca mais boca nem beijo na boca. Nunca mais olhar apaixonado nem vontade de beijar na boca. Mas não me esqueço de que nada igual ao beijo na boca. Também ninguém se esquece do beijo na boca, principalmente no lábio da primeira namorada, do primeiro namorado. Que sonho bom, verdadeira vertigem. Como é beijar, que gosto tempo, é bom ou ruim, como fazer na aproximação do lábio ao outro lábio, fechar os olhos ou não? Dizer alguma coisa antes de beijar, segurar na mão, no cabelo, abraçar pela cintura, o que fazer e como fazer? Beijo ligeiro ou demorado, apenas tocando levemente ou mais profundo e molhado? Fazer o que depois de beijar? Receitas sem receitas, passos que jamais são observados. O querer é tanto que vai cegando. Quando a boca chega à outra já está tudo escuridão, mas por dentro um brilho intenso, profundo, encantador. E durante o beijo a magia. O instante mágico impossível de ser traduzido. O ser que voa, viaja, baila no ar, extasia para depois descer. E, ao chão, as pernas tremendo, o coração pulsando, uma estranhíssima sensação de vitória. Através da boca, do desejo, do amor.   


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

domingo, 24 de janeiro de 2016

HOMEM: O MAU SELVAGEM


Rangel Alves da Costa*


Os programas televisivos abordam muito sobre os animais, seus comportamentos, seus modos de ação, suas características pessoais e seus relacionamentos com outros da mesma e de outras espécies.
Geralmente mostram acerca da vida dos jacarés e crocodilos, das baleias e tubarões, das cobras e serpentes, dos peixes e dos golfinhos, dos búfalos e gnus, das raposas e hienas, dos tigres e dos leões, dentre tantos outros.
Mas há um animal de suma importância que nunca é abordado em profundidade, e por isso mesmo se tornando cada vez mais num completo desconhecido: o homem. Mas, afinal, quem é e o que faz, e como age este animal?
As opiniões divergem acerca de sua natureza. Para uns é um ser cujo progresso, ao invés de humanização, redundou em bestialização. Para outros é uma fera que jamais conseguiu conviver com os da mesma espécie. E ainda outros comungam da ideia de ser o homem uma experiência malsucedida do criador.
Raramente se encontra alguma definição sobre o homem que lhe atenue os instintos inumanos. O que se tem são pretensões fantasiosas de um ser bom por natureza, porém transformado pelo meio. O que significa a mesma visão negativa, pois é ele que faz e vai moldando o seu meio.
Coerente a máxima “Homo lupus homini”, onde Thomas Hobbes sintetiza o homem como animal de si mesmo. Ou seja, o homem é o maior inimigo do próprio homem. E a máxima coerência em tal pensamento. Na busca e na defesa de seus interesses egoísticos, o homem não tem medida.
Em toda a história e por todo lugar o homem tem se mostrado lobo do próprio homem, não só de si mesmo como de sua espécie, e sem descrever o que faz perante as outras espécies de animais. Enquanto lobo continua selvagem, perigoso, jamais confiável. E nas atitudes tomadas a comprovação de seu permanente estado de selvageria.
Por mais que se deseje proporcionar ao homem uma visão otimista, fraternal e mesmo humana, tal fato é dificultado pelos exemplos dados. Recebeu o mundo em suas mãos, granjeou a dádiva da inteligência para progredir, para transformar sua existência em algo proveitoso, mas raramente reconheceu sua potencialidade para o bem.
O mal como opção é mais que perceptível. Ademais, não se contentando em destruir, vai se esmerando na construção de armas contra sua própria vida. Neste passo a certeza maior: O egoísmo é tamanho que semeia para si mesmo a destruição. E o que esperar de um homem assim perante a vida em sociedade, perante o mundo, perante tudo?
Segundo os livros, o homem é um ser humano, da espécie animal, mamífero vertebrado, da ordem dos primatas. Afirma-o ainda como um ser racional, consciente, sobressaindo-se, pelas suas capacidades e habilidades, às demais espécies.
Mas será assim mesmo? A que serve a racionalidade humana, a consciência e o poder de descortino humano? Suas capacidades e habilidades parecem também não terem servido às boas práticas. Pelo contrário, a inteligência do homem vai evoluindo em práticas que demonstram não passar de um reles ignorante.
Não seria ignorância desconhecer o mal causado pela sua ação? Não seria ignorância persistir no erro e progredir em desacertos ainda maiores? Ignorância não é somente não conhecer, mas também desconhecer aquilo que tinha obrigação de discernir, seja porque afeta a vida ou porque reflete como mal no espelho do mundo.
Alguém já asseverou, e com fundamento, que dentre os animais o mais irracional é o homem. Ora, considerando-se a irracionalidade como ausência de raciocínio útil, como ação baseada na casualidade e sem observância das consequências, então aí se avistará o homem no seu estado mais conhecido, que é o da imperfeição.
Alguém também já assegurou ser o homem, e de longe, o mais perigoso dentre todos os animais. O bote peçonhento da cobra, o ataque mortal do felino, a abocanhada certeira do tubarão, nada disso se compara ao que o homem cotidianamente faz: apenas ferir por ferir.
Os outros animais geralmente atacam para se defender, porque tiveram seus territórios invadidos, por estarem famintos ou por se sentirem ameaçados, mas o homem não, pois age pela simples e deliberada violência, seja ela moral, psíquica, relacional ou corporal.
Afinal, quem é o verdadeiro bicho? Afirma-se ser bicho o animal irracional, daí considerar como bichos a raposa, o lobo, o urso, o falcão e tantos outros da natureza. Mas nenhum desses é, conscientemente, arrogante, intratável, falso, traiçoeiro, egoísta, vingativo e bestial. Somente o homem e seu instinto inconciliável com o mundo. Então, qual é o verdadeiro bicho?
Na selva há selvageria desenfreada, pois se usa da violência como forma instintiva de sobrevivência. Mas nada justifica que o meio social seja ainda pior, seja infinitamente mais violento e brutal. E tudo pelas mãos do homem. Daí chegar-se a uma simples conclusão: o selvagem é outro.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...


Minha avó materna Marieta sentada na calçada de sua histórica residência. Foi nesta moradia que Lampião se encontrou com o Padre Arthur Passos, quando de uma das visitas feito pelo Capitão Cangaceiro ao meu avô China, na povoação sertaneja de Poço Redondo. Retrato antigo, apenas a memória do que não se avista mais entre nós. Meus avôs desde muito que partiram e a residência deu lugar ao progresso da cidade.



O riacho de minha aldeia (Poesia)


O riacho de minha aldeia


Na tristeza da estiagem
o meu riacho adormece
no leito a triste paisagem
tudo que tanto entristece

no sentimento sertanejo
sempre uma visão dolorosa
avistar no riacho o cortejo
da degradação lastimosa

mas a nuvem carregada
desperta a vida e o sertão
e quando cai a trovoada
traz também ressurreição

então o Jacaré se largueia
para receber as enchentes
acolhe o que a chuva semeia
nas águas como sementes

e assim se faz renascido
o riacho que passa na aldeia
tornando todo olhar sofrido
num brilho de lua cheia.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: quebrando aricuri


Rangel Alves da Costa*


Não é aricuri não, gritava a velha Titonha. Que nada, o nome certo é ricuri, remedava a outra. Já outra dizia que as duas estavam erradas, pois tenha certeza que o nome era uricuri. Mas chegava o sabichão e tentava apaziguar a situação: Nem aricuri, ricuri ou uricuri, pois o nome certo mesmo é coquinho. Então as três se juntavam para contestar: Que nada. Você não entende nada de coquinho e muito menos de aricuri, ricuri ou uricuri. Coquinho é um coco miúdo pequeno, e não esse que a gente tá falando. Esse é tão miudinho que a gente tem o maior trabalho do mundo pra quebrar. E não há no mundo quem não machuque os dedos quebrando o aricuri, ricuri ou uricuri. Se não machucar não tem graça. Também haveria de ser assim, pois não sei o que a pessoa pensa em encontrar dentro de um piquititinho daqueles. Um trabalho danado pra quebrar e depois não encontra quase nada por dentro. É preciso duas pencas quebradas pra dar um bocadinho, que nem a boca enche. Sei que é bem melhor quebrar um coco de verdade e depois se empanturrar na sua carne macia e gostosa. Aí sim, aí vale a pena quebrar coco pra comer.


Poeta e cronista
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sábado, 23 de janeiro de 2016

NAS CHEIAS DO RIACHO JACARÉ


Rangel Alves da Costa*


Desde a semana passada, quando tomei conhecimento da cheia - e depois de tanto tempo - do riacho Jacaré, que logo me senti num misto de alegria e tristeza. Alegria pelo renascimento tão pujante desse riacho que é verdadeira raiz de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, pois o nome do município vem do seu leito (um poço redondo onde o gado era levado para matar a sede), e tristeza por não poder presenciar o retorno daquelas águas tão importantes na minha vida de menino interiorano.
Estava com viagem marcada para abraçá-lo, mas os problemas provocados pelas chuvas na estrada acabaram adiando o tão desejado reencontro com o singelo e grandioso riacho que passa na minha aldeia sertaneja. E hoje, ainda cedo, me chegaram outras notícias e fotografias de mais águas se avolumando no seu leito e já avançando sobre quintais e moradias às suas margens. Então entristeci mais ainda ante cada retrato de um povo feliz perante o seu riacho. Que bom dizer que o riacho Jacaré é meu, é de meu Poço Redondo, é do meu sertão, é de todo mundo que ali tem raiz.
Numa fotografia tirada de cima da ponte se avista a pujança de agora. Num vídeo postado, a correnteza das águas, o caminho apressado das águas tantas. E na distância, outra coisa não se pode fazer senão recordar os tempos idos e o quanto o riachinho foi importante na vida de gerações que hoje estão adultas e até envelhecidas. Porque ali, naquele leito que até quinze dias atrás estava tão feio e devastado, havia uma magia tamanha que quem colocasse os pés nas suas águas desejava não sair mais.
No passado, as cheias do Jacaré costumavam chegar já noite fechada, senão em plena madrugada. As pessoas no repouso noturno e de repente o barulho das águas avançando, levando tudo que encontrassem pela frente, carcaças de bichos, tocos de paus, árvores e animais. As águas vinham tão fortes, varrendo e levando tudo, que até os chiqueiros próximos às margens eram destruídos, as cercas dos quintais devastadas, as pedras soltas levadas também. Certa feita levou até a ponte.
Mesmo no meio da noite, assim que a cheia chegava grande da população seguia, mesmo debaixo de chuva, até suas beiradas. De lanterna à mão, ainda assim pouco se avistava em meio aquela profusão barrenta e barulhenta. Com o leito empoçado, sujo, cheio de garranchos e coisas velhas desde as cabeceiras, aquelas primeiras águas chegavam num amarelado quase marrom. E todo mundo sabia que somente após duas ou três enchentes na mesma cheia é que as águas já ficavam propícias ao banho, pois já sem as sujeiras da primeira leva.
É o que acontece agora. O leito do riacho estava tão putrefato e cheio de lixo que foi preciso a primeira correnteza para tudo levar adiante, mas as águas ainda ficaram sujas. As novas correntezas que vão chegando passam limpando tudo, preparando o leito para os banhos da meninada, como se fazia noutros tempos. Naqueles tempos, quando de cima já se avistava as areias ao fundo, então os banhos começavam ao alvorecer e se estendiam até o anoitecer, sendo, muitas vezes, preciso que os pais chegassem com taca de couro ou chinelo à mão e dizendo que ou saía dali ou ia se arrepender do dia que nasceu.
Também naqueles tempos o riacho era outro e totalmente diferente do que se tem agora. Hoje não há mais pedra grande, árvores frondosas no leito e pássaros cantando ao redor. Naqueles idos, famosas eram as pedras boas de “batim”, quando o meninote subia e se lançava em mergulho. Havia um local chamado “Poço de Ermerindo” que era o mais famoso e concorrido. E pela profundeza também o mais perigoso nas épocas das grandes cheias. Por todo lugar a festança da meninada e das moças tomando banho nos escondidos, de vestido e tudo.
É desse tempo o meu tempo. Não sei quantas vezes entrei no riacho ao amanhecer e de lá só saía quando as sombras da noite chegavam. Providenciava comida, bebida e um rol de amigos inesquecíveis. Jorge, Zé de Delino, Carlinhos, Doutor, Tonho Meu, Zelito, Chiquinho e tantos outros queridos amigos. E Aelson pelos arredores armando arapuca pra pegar passarinho. Êta tempo bom, êta vida boa meu Deus!


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...


A casa de meus avôs paternos, Seu Ermerindo e Dona Emeliana, no centro de Poço Redondo, no sertão sergipano. Hoje somente a saudade.


Retratos (Poesia)


Retratos


Caminho e retorno
aos retratos na parede
com feições familiares
e os velhos sorrisos
nas velhas molduras
de adeuses passados

sorrisos que são os meus
olhares que são os meus
feições que são a minha
pessoas que são as minhas
pois não sou o que sou
senão aquelas velhas raízes

e então fico imaginando
quando outro retrato
for ali dependurado
e meu olhar na moldura
possa sentir a verdade
em quem diz sentir saudade.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: “seu fi do cabrunco...”


Rangel Alves da Costa*


Armado de peixeira afiada, raivoso que só, avançou em direção ao outro dizendo: “seu fi do cabrunco, vou estrebuchar vosmicê agorinha mermo...”. O ameaçado, lançando mão de um tamborete de três pernas, retrucou: “seu fi de água, venha que vou amassar seu chifre todinho, seu corno manso, seu cabeça de vaca chifruda...”. O da peixeira, ao ouvir a menção de corno contra si lançada, enraiveceu-se ainda mais e puxou a peixeira, dizendo: “corno é vosmice seu fi de rapariga, seu viado safado, vou lhe cortar todinho agora...”. Como resposta ouviu: “venha seu chifrudim de merda, seu corno conformado, mai acho mió tu pegar essa faca e arrancá as ponta ou cortar o cangote daquela puta gaieira de sua muié, mai se achar mió venha se for homi...”. O outro avançou com a peixeira, deu um primeiro bote errado e teve como resposta uma tamboretada nas fuças. “Vou matá, vou matá esse fi de égua, vou matá...”. “Mata ninguém seu chifrudo, venha qui quem vai arrancá suas ponta sou eu, venha...”. O vigário foi chegando em correria e logo gritando: “Parem com isso agora mesmo. Quem já se viu uma coisa feia dessas só porque um corno e o outro é lá não sei o que. Cada um que vá viver sua vida. Cada um que vá pra sua casa. Só tenho pena desse aí. O coitado não pode nem passar pela porta de casa. O chifre não deixa”.


Poeta e cronista
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sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

OS GRILOS


Rangel Alves da Costa*


Os grilos são os insetos noturnos mais insuportáveis que existem. Muito mais que as muriçocas, os pernilongos, as vespas de luz, os cascudos e tantos outros. A desaparecida Sinhá Senhora já dizia que abaixo do céu e acima da terra nada atormenta mais que os grilos. E mais ainda porque a pessoa nunca sabe se estão na cumeeira, nas frestas da casa, embaixo da cama ou mesmo do lado de fora. E já teve gente que endoidou atrás dos cricrilados dos grilos.
Com efeito, o que aconteceu com João Vicentino foi coisa de não acreditar. O coitado do homem armou sua rede na sala do casebre de barro e ripa e se acomodou com a barriga roncando. Quando já começava uma madorna, eis que o cricri começou a ecoar. Tão alto era que parecia bem acima de sua cabeça. Tentou adormecer e não conseguiu. O cricri se fez ainda mais alto. Então se levantou, resolveu que iria ali e voltava já para resolver o problema.
Foi até a birosca mais próxima e tomou logo duas doses de casca de pau, pinga legítima com quebra-pedra. E mais umas três. Voltou raivoso e pronto para o extermínio de todo e qualquer grilo que houvesse na sua morada. Nem bem entrou na porta e já ouviu o cricado, mais outro e tantos outros. Meio tonto das doses a mais, começou a dizer que se era guerra que eles queriam, então era guerra que iam ter. Então começou a cutucar por todo lugar, a bater nos paus e nas ripas, até que o pior aconteceu.
Uma madeira de sustentação desabou e parte do telhado caiu bem em cima do coitado. E sobre sua cabeça, na ripa apodrecida, os grilos surgiram em cantoria festiva: cricri, cricri, cricri. Depois disso o juízo do homem nunca mais foi o mesmo. Não se sabe se pela pancada recebida ou por outro motivo, mas a verdade é que depois disso outra coisa não sai de sua boca que não cricri, cricri, cricri. E vive procurando oco de pau para se esconder e cricrilar como todo grilo faz.
Realmente difícil conviver com tais insetos sempre ocultos, sempre nos escondidos, ecoando sons que ora parecem perto ora longe, com aquelas fricções estridentes e suas inafastáveis presenças. Por que eles sempre estão, sempre cantam, sempre estridulam, sempre chilreiam, sempre cricrilam. E assim porque na ação noturna e costumeira de atormentar, os grilos guizalham, trilam, tritinam, e tudo se resumindo em insuportáveis e intermináveis cricri, cricri, cricri, cricri, cricri...
Não pelo perigo que apresentem, pelos ataques ou possíveis vítimas que possam fazer, mas simplesmente pelo seu canto. Sim, o seu canto. Imagina-se que toda canção soa bem aos ouvidos ou ao menos não dilacera os sentidos, mas com a dos grilos é diferente. Na verdade, os grilos não cantam, não assobiam nem soltam pios, apenas cricrilam de forma aterrorizante. É o cricrilar que atormenta a vida de qualquer um, que faz qualquer sujeito perder o juízo, como aconteceu com o coitado do Vicentino.
Imagine-se que após o anoitecer, quando a pessoa supõe poder encontrar a paz para repousar, e de repente tem início aquele som contínuo, invisível e apavorante. Cricri, cricri, cricri, cricri, cricri... A pessoa olha pelos cantos e nada encontra, sai em busca de alguma toca, mas apenas ouve cricri, cricri, cricri, cricri, cricri... Sente que os sons estão próximos, que enfim encontrou os malditos insetos noturnos, e então bate nos paus, sacoleja tudo até silenciar. Mas quando imagina ter resolvido o problema, após o primeiro passo começa a novamente ouvir cricri, cricri, cricri, cricri, cricri... A verdade é que ninguém em sã consciência seria capaz de suportar quase dentro dos ouvidos, repetidamente: cricri, cricri, cricri, cricri, cricri, cricri, cricri... Deseja apenas um pouco de sossego, deseja apenas dormir ouvindo apenas o som da ventania açoitando as folhagens, mas não consegue. Apenas o cricri, cricri, cricri.
Mas os grilos não se contentam em serem apenas insetos noturnos e cricrilando nas brechas escuras e ocos de pau, pois uma espécie humana sai de suas tocas durante o dia para os mesmos sons repetitivos e insuportáveis. Quem suporta os grilos humanos repetindo as mesmas ladainhas políticas, as mesmas gozações de futebol, as mesmas fofocas, os mesmos assuntos o dia inteiro e perante qualquer um que possa encontrar? “Você soube...”, “Tá vendo, eu bem disse que...”, “Só tem ladrão e quero ver se ainda votam num cabra assim...”.
Não somente no reino animal os cricrilados ecoam intoleráveis. Além de ser grilo dos piores, os seres humanos têm de conviver com outros grilos tão incômodos quanto os insetos. As contas que chegam, os preços nos produtos, os enredos televisivos, o sangue jorrando nos noticiários, os crimes e as roubalheiras. Todo santo dia tais grilos se repetem para atormentar ainda mais a já tão difícil existência. Difícil mesmo é saber o que é mais difícil de suportar, se o cricri cri dos grilos ou cricri cri de Brasília.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...


A natureza retomando sua cor verdosa após as chuvas no sertão sergipano. Coisa mais bonita de se ver!





Moringa na janela (Poesia)


Moringa na janela


Uma moringa
e uma janela

uma sede
e um gole d´água

uma caneca
e um gostoso beber

um sabor
de barro e vida

da moringa
corre rio imenso

na moringa
a água do mundo

e pela boca
a chuva abençoada.


Rangel Alves da Costa