Rangel Alves da Costa*
Haveria de se imaginar que a Súplica Cearense,
de autoria de Nelinho e Gordurinha, eternizada na voz de Luiz Gonzaga, se
ajusta ao momento vivido pelo sertanejo ante a chuvarada que vem caindo e
causando transtornos nas cidades e estradas. “Oh Deus perdoe este pobre
coitado, que de joelhos rezou um bocado, pedindo pra chuva cair sem parar. Oh
Deus será que o senhor se zangou só por isso o sol arretirou fazendo cair toda
a chuva que há...”, eis trechos da letra. As rezas continuam, mas implorando
mais chuva, não há que duvidar.
Invocando mais chuva porque o sertanejo conhece
bem a dor sentida na seca inclemente, no sofrimento sem igual para o homem e o
bicho. E também porque sabe que o seu destino apenas está sendo reescrito. Certamente que há um destino de Eclesiastes
existente no sertão nordestino. Quando o livro bíblico diz sobre nascer e
morrer, entristecer e depois se alegrar, sofrer e depois se contentar, como um
percurso inevitável de acontecimentos, com um ocorrendo e depois se fazendo o
inverso, certamente que tudo se amolda à realidade sertaneja.
Ora, o que é a vida do sertão senão ou a seca
ou a chuva, a chuva e depois a seca, e assim em diante? E por consequência a
tristeza pelo sol escaldante devorando tudo e o renascimento festivo quando as
chuvaradas começam a cair. Mas não duram muito o contentamento, a terra semeada
e o grão brotando em flor, para novamente faltar a paz e o sossego do humilde
trabalhador. E com a falta de água e de chuva, logo a sede, a fome, a
desesperança. Então surgem os rogos, as orações e as promessas para que as
forças do alto façam cair pingo d’água.
Talvez daí também a força da expressão de ser
o sertanejo antes de tudo um forte. Não apenas pela valentia, pelo destemor e
pelo caminho de luta, mas principalmente por suportar - e sem se alquebrar de
vez - os desconcertantes caprichos do tempo e as dolorosas imposições
climatológicas. Não é tarefa fácil ao ser humano aturar o que o sertanejo
silenciosamente tolera na força da fé e do amor nutrido pelo seu raquítico
rebanho, pela sua vaquinha no couro e no osso. E também saber que depois da
chuvarada voltará ao mesmo sofrimento, pois assim acontece desde que o seu
mundo é mundo.
A exemplificação disso tudo está ocorrendo
agora. Já fazia muito tempo que o sertanejo outra coisa não fazia senão sonhar
com as chuvaradas, as chuvas de invernada, as trovoadas tão milagrosas. A cada
dia que passava o sofrimento aumentava pelo chão ressequido, o cacto
definhando, a falta do de beber e do de comer para cada ser sertanejo. E tendo
de se submeter aos políticos aproveitadores na esperança de uma carrada de
água. E tendo de se fragilizar - e na fragilização as sombras do escravismo -
perante as ambições impiedosas daqueles mesmos desumanos aproveitadores.
Mas as barras do horizonte avermelharam, as
nuvens prenhes chegaram e de repente aquele bafo quente e de cheiro
inconfundível levantando da terra ao receber molhação. As chuvas chegaram. Como
cumprimento do destino do Eclesiastes, as chuvas chegaram. Não faz muito tempo
que retornei de meu sertão sergipano de Nossa Senhora da Conceição de Poço
Redondo e por lá deixei a seca maior do mundo. Tudo cinza, tudo esturricado, um
calor de mil sóis, uma desolação de entristecer e fazer chorar. Mas as últimas
notícias recebidas são de chuvaradas fortes e trovoadas. E por todo o sertão.
Numa questão de poucos dias, a coivara da
terra se transformou em poça e lamaçal, a planta morta ou quebradiça foi
renascendo verdosa, o barro do fundo de tanque se diluindo para se transmudar
em água jorrando pelas beiradas. Coisa de não acreditar, mas é assim que
acontece por lá. Para um exemplo desse destino eclesiástico, o Riacho Jacaré,
que passa entrecortando a cidade de Poço Redondo, desde muito seco, devastado e
putrefato, de repente irrompeu com uma cheia desde muito não avistada. Chegou
veloz, em correntezas e seguindo imponente para desaguar no Velho Chico. Mas
como dito, apenas uma feição passageira.
Em alguns municípios sertanejos as chuvaradas
foram menores, mas enchendo fontes e tanques e alagando ruas e estradas, mas
noutros a situação se tornou de calamidade. Uma barragem rompeu em Monte Alegre
de Sergipe e suas águas invadiram ruas e casas, deixando famílias quase ao
desabrigo. A pista asfáltica entre o mesmo município e Nossa Senhora da Glória
não suportou a força das correntezas de um riachinho e foi destruída por uma
cratera que se abriu de lado a outro, impedindo o trânsito de veículos.
No sertão é assim, ou tudo ou nada. Ou seca
demais ou chuvarada voraz causando inundações e estragos. Como afirma um bom
pastor que por lá cuida de rebanhos, um sertão de vidas secas e molhadas. As
dádivas de hoje até o sol novamente vingar e tudo voltar ao percurso de sempre,
com as secas e as promessas para chover. Assim é e assim será. Sempre. Só na
política que há uma continuidade perniciosa, aviltante e lesiva à população
sertaneja.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
2 comentários:
boa tarde, Rangel! Que bom encontrar um escritor. Estou começando a trilhar esse caminho ,tão difícil, e ao mesmo tempo, tão gostoso. voltarei sempre e lhe convido para uma visitinha no meu blog.
Gostei do texto!
Abraço, Rangel.
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