Rangel Alves da
Costa*
Coronel
Ismerino Badaró, Senhor da Coivara Grande e arredores, era homem de poucas
palavras. Só abria a boca para ordenar. E o mando saído de sua boca era coisa
de ser cumprida e comprovada. Muita orelha e dedo - e até cabeça - já chegaram
à sua presença como prova do serviço feito, e bem feito. Corria o risco de
perder orelha, dedo e cabeça aquele jagunço que fielmente não cumprisse as
ordens do patrão.
Mas seu silêncio
era igualmente perigoso. Quem o avistasse cabisbaixo, ou mesmo mirando as
distâncias das terras sem fim, andando de lado a outro, logo imaginava que
coisa boa não estava sendo matutada. E que também não demoraria muito para que
o chamado desvendasse o mistério, pois certamente uma ordem seria dada. E para
ser desempenhada antes que o cuspe secasse. O pior é que nada de bom se
esperava daquele que era o mais potentado entre todos que ostentavam a patente
de mando na região.
Quando o
Coronel Ismerino gritou por Carniça, o seu mais confiado jagunço, este logo
riscou a seus pés igual a cavalo adestrado, manso. Mas era uma fera. E o
matador, depois de colocar o chapéu sobre o peito e engolir o cigarro de palha
que restava no canto da boca, logo perguntou em que podia servi-lo. Na sua
mente, a pergunta certa era sobre quem deveria morrer daquela vez. Mas a
resposta ouvida fez surgir um espanto descomunal. “Dessa vez não vai ter
tocaia, emboscada, nem tiro nem sangue. Só quero que me acompanhe até a varanda
para ouvir algumas coisas que tenho a dizer. Venha sem aperreio que dessa vez o
inimigo é outro, e coisa que eu mesmo resolvo”.
Seguiram
até a varanda, ou um grande alpendre descendo das paredes térreas do casarão,
onde o sombreado era garantido a qualquer momento. Ali, geralmente ao entardecer,
o coronel se amoitava assuntado sobre a vida e a morte. Sentado numa cadeira de
balanço ou em pé batendo na madeira com uma bengala adornada de pedrarias, o
poderoso senhor nordestino chamava ao seu destino aquilo que desejava como
sina. Era quando abria os velhos baús para espalhar fantasmas e recordações.
Apontou
uma cadeira ao jagunço e este não pensou duas vezes, mas antes mesmo de se
ajeitar no assento foi logo perguntando se o patrão já estava decidido a mandar
matar o Coronel Licurguino, seu desafeto maior por aquelas bandas. Esperou uma
resposta que veio mais que demorada. E antes de responder mandou que o seu
cabra de confiança lhe trouxesse uma garrafa de cachaça adormecida nos anos. O
coronel se serviu de dose e meia e disse ao outro que não se acanhasse de beber
o quanto quisesse. Depois acendeu um charuto, estendeu a ferrugem dos olhos a
qualquer lugar no meio do tempo, então começou a falar:
“Hoje não
vou lhe chamar de Carniça. Seu nome é Aniceto e é assim que foi vou lhe tratar.
Pois bem Aniceto, eis aqui um velho homem incompreendido. Um homem patenteado de
coronel pelas forças políticas, dono de terra de não acabar mais, influente em
tudo que pela região ponteia, fazedor de deputado e governante, amigo dos de lá
de riba, mas um pobre coitado. Sim Aniceto, um pobre coitado. Quando herdei
isso aqui do meu velho pai e fui alargando minhas terras por todo lugar, eu
pensei apenas em ser um homem de posses. Mas a danada da riqueza acaba chamando
tudo o que não presta para o seu lado. Logo me viram como o homem mais poderoso
da região e tantos e mais tantos logo quiseram tirar proveito da situação. E
gente grande, do meio político e do mando lá em riba. Entonce passei a ser
usado por essa gente falsa e aproveitadora. Coronel pra cá, coronel pra lá,
naquela conversa de bajular pra se aproveitar. Quando o povo me chamava assim
eu não me incomodava não, mas com gente do poder era diferente. O povo chamava
por ignorância, mas eles por esperteza. Mas o pior foi quando me deram um papel
confirmando o coronelato, com poder de vida e morte na região, e em troca eu
tendo de dar apoio político. E daí em diante comecei a maltratar as pessoas,
coisa que eu não fazia antes. E passei a maltratar para que o medo tornasse
todo mundo cativo no voto. Mandava ameaçar, prender e bater, de modo que o povo
nem pensasse duas vezes em atender minhas ordens. Se era pra votar num
candidato, então tinha de votar, a todo custo. Mas também, principalmente em
época de eleição, despejava comida na casa de qualquer um, oferecia esmola,
caixão de defunto e tudo o mais. Fazendo assim, não só colocava a pobreza como
num curral, encabrestado, como evitava que pendesse para o lado dos inimigos,
também poderosos e agindo do mesmo modo. E foi para manter o povo encabrestado
e lutando contra os inimigos, que aos poucos fui me tornando um desalmado, um
bicho com todas as armas na mão...”.
Parou um
instante, tomou outra dose e prosseguiu. Apenas ouvindo, sem entender o porquê
de o patrão estar relatando aquilo tudo a um jagunço, Carniça ficava imaginando
aonde ele queria chegar. E ouviu:
“Foi pra
manter o poder, pra dizer quem mandava aqui, que passei a ordenar que o sangue
jorrasse. Como vosmicê bem sabe, mandei matar coronel intrometido, mandei matar
jagunço de outro mando, mandei matar todo aquele que ousasse me desafiar. E até
inocente morreu. E pra que tudo isso Aniceto, pra que tudo isso? Pelo voto,
pelo mando, pra ter cada vez mais terra, pra eleger político da capital e lá de
riba, e depois viver sem qualquer prazer na vida. E como fazer uma fera voltar
a ser gente depois de tanta judiação?...”.
A voz
embargada, os olhos marejando, o coronel chorava. Não prosseguiu. Puxou um
lenço do paletó de linho branco, levou aos olhos, e em seguida gesticulou para
que o jagunço saísse dali. As sombras da noite chegavam. Tudo num estranho
silêncio ao redor. No alpendre do casarão apenas o vulto do coronel ainda
sentado na cadeira. E assim amanheceu, porém sem vida. E que coisa mais
estranha ser encontrado um rosário em suas mãos.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Excelente!
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