SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 23 de janeiro de 2016

NAS CHEIAS DO RIACHO JACARÉ


Rangel Alves da Costa*


Desde a semana passada, quando tomei conhecimento da cheia - e depois de tanto tempo - do riacho Jacaré, que logo me senti num misto de alegria e tristeza. Alegria pelo renascimento tão pujante desse riacho que é verdadeira raiz de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, pois o nome do município vem do seu leito (um poço redondo onde o gado era levado para matar a sede), e tristeza por não poder presenciar o retorno daquelas águas tão importantes na minha vida de menino interiorano.
Estava com viagem marcada para abraçá-lo, mas os problemas provocados pelas chuvas na estrada acabaram adiando o tão desejado reencontro com o singelo e grandioso riacho que passa na minha aldeia sertaneja. E hoje, ainda cedo, me chegaram outras notícias e fotografias de mais águas se avolumando no seu leito e já avançando sobre quintais e moradias às suas margens. Então entristeci mais ainda ante cada retrato de um povo feliz perante o seu riacho. Que bom dizer que o riacho Jacaré é meu, é de meu Poço Redondo, é do meu sertão, é de todo mundo que ali tem raiz.
Numa fotografia tirada de cima da ponte se avista a pujança de agora. Num vídeo postado, a correnteza das águas, o caminho apressado das águas tantas. E na distância, outra coisa não se pode fazer senão recordar os tempos idos e o quanto o riachinho foi importante na vida de gerações que hoje estão adultas e até envelhecidas. Porque ali, naquele leito que até quinze dias atrás estava tão feio e devastado, havia uma magia tamanha que quem colocasse os pés nas suas águas desejava não sair mais.
No passado, as cheias do Jacaré costumavam chegar já noite fechada, senão em plena madrugada. As pessoas no repouso noturno e de repente o barulho das águas avançando, levando tudo que encontrassem pela frente, carcaças de bichos, tocos de paus, árvores e animais. As águas vinham tão fortes, varrendo e levando tudo, que até os chiqueiros próximos às margens eram destruídos, as cercas dos quintais devastadas, as pedras soltas levadas também. Certa feita levou até a ponte.
Mesmo no meio da noite, assim que a cheia chegava grande da população seguia, mesmo debaixo de chuva, até suas beiradas. De lanterna à mão, ainda assim pouco se avistava em meio aquela profusão barrenta e barulhenta. Com o leito empoçado, sujo, cheio de garranchos e coisas velhas desde as cabeceiras, aquelas primeiras águas chegavam num amarelado quase marrom. E todo mundo sabia que somente após duas ou três enchentes na mesma cheia é que as águas já ficavam propícias ao banho, pois já sem as sujeiras da primeira leva.
É o que acontece agora. O leito do riacho estava tão putrefato e cheio de lixo que foi preciso a primeira correnteza para tudo levar adiante, mas as águas ainda ficaram sujas. As novas correntezas que vão chegando passam limpando tudo, preparando o leito para os banhos da meninada, como se fazia noutros tempos. Naqueles tempos, quando de cima já se avistava as areias ao fundo, então os banhos começavam ao alvorecer e se estendiam até o anoitecer, sendo, muitas vezes, preciso que os pais chegassem com taca de couro ou chinelo à mão e dizendo que ou saía dali ou ia se arrepender do dia que nasceu.
Também naqueles tempos o riacho era outro e totalmente diferente do que se tem agora. Hoje não há mais pedra grande, árvores frondosas no leito e pássaros cantando ao redor. Naqueles idos, famosas eram as pedras boas de “batim”, quando o meninote subia e se lançava em mergulho. Havia um local chamado “Poço de Ermerindo” que era o mais famoso e concorrido. E pela profundeza também o mais perigoso nas épocas das grandes cheias. Por todo lugar a festança da meninada e das moças tomando banho nos escondidos, de vestido e tudo.
É desse tempo o meu tempo. Não sei quantas vezes entrei no riacho ao amanhecer e de lá só saía quando as sombras da noite chegavam. Providenciava comida, bebida e um rol de amigos inesquecíveis. Jorge, Zé de Delino, Carlinhos, Doutor, Tonho Meu, Zelito, Chiquinho e tantos outros queridos amigos. E Aelson pelos arredores armando arapuca pra pegar passarinho. Êta tempo bom, êta vida boa meu Deus!


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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