CORREIO DA ILHA
Rangel Alves da Costa*
Nasci, me crio e certamente vou morrer nessa ilha. Ela fica ao norte de qualquer lugar e é tão minúscula e tão grande que cabe num passo e não cabe numa vida. Faz fronteira com o silêncio das águas, com os mistérios do alto e com qualquer lugar do oriente. Dizem que no outro lado da terra mais longe debaixo dos nossos pés o oriente está de cabeça pra baixo. Tanto faz.
Alguém que chegou na ilha num tempo muito distante, bem antes de mim, deixou escrito no tronco da única árvore existente algumas palavras que podem resumir tudo: Eis a ilha, onde piso e não posso ir adiante porque não sou mundo, também sou ilha.
E como não posso andar, correr, caminhar, viajo com o olhar, vivo da imaginação e tenho o que quero na mão que alcança onde quer chegar. E só sei que tudo existe porque não me falta o vento, que é o correio da ilha.
O correio da ilha sopra incessantemente, de norte a sul, de sul a norte, sem tempo para descansar e sem deixar de me informar sobre tudo. Se penso que devo esquecer ou que estou esquecido, eis que chega o carteiro certeiro e me joga na face, na memória e no olhar imagens, notícias e situações que confirmam que a ilha é um lugar cercado pelo presente e passado por todos os lados.
É um vento constante e moderado enquanto trabalha para me trazer lembranças e recordações; outras vezes sopra diferente, mais forte e ocasional, quando pressinto que tenho de conhecer ou simplesmente reviver coisas doloridas e que fazem sofrer. Mas não é somente assim, pois existe também instantes de brisa, quando sei que tudo que vivo naquele instante me é trazido pelos sonhos, quando é possível adormecer e sonhar.
Tenho medo que mesmo o vento que sopra mais forte cisme em se transformar em ventania, vendaval e, por motivos que não devem faltar, chegue destruindo e dilacerando tudo e, ao invés de espalhar e levar tudo pelo ar, simplesmente transforme a ilha e seu habitante numa agonia maior do que já existe.
Tenho esse temor porque muitas vezes olho o horizonte e está tudo diferente, mais escuro e amedrontador. Mesmo que o céu e redor estejam na mais pura brandura e harmonia, me sinto assim temeroso e pronto. Significa que as tempestades não se formam lá fora, ilha adiante, além da minha ilha, mas ao meu redor, sobre e dentro de mim. O pior é que sei a exata medida da destruição. A lembrança, a saudade no instante, tudo é a medida da destruição.
Queria usar o correio da minha ilha também para enviar notícias minhas, dizer como estou ou como já não sou. Mas todas as vezes que chamo o carteiro ele me diz que está ocupado separando minhas encomendas, que não tem tempo para levar nada, somente para me entregar o que enviaram. E quando as folhas da árvore que me serve como moradia começam a soprar já sei que ele vem chegando, e vai entrando sem bater na porta e me joga calhamaços de tudo que eu queria esquecer.
A porta fechando e eu saindo; o adeus não correspondido; a raiva, o ódio, a briga, a desculpa não aceita; o anel jogado no esgoto; as cartas e os retratos rasgados e destruídos; as manhãs passeando pelo jardim, os pássaros cantando, a flor colhida e entregue com um beijo à outra flor; o por do sol nos fotografando; gaivotas em revoada ao nosso redor; e como era belo ficar olhando os barquinhos singrando as águas e a caravela solitária aportando diante dos nossos olhos entristecidos.
Tudo isso o vento me traz, tudo isso ele me joga sem piedade. E depois faz a curva ali mesmo e retorna para buscar mais lembranças, tristezas, saudades...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...
A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.
domingo, 31 de outubro de 2010
Uma certa mulher (Poesia)
Uma certa mulher
Uma certa mulher
por certo é você mulher
porque nunca percebi
nas outras o que você é
em todas o que mais se quer
que é compreender
como se é flor e mulher
um certo desejo
por uma certa mulher
paixão invadindo por inteiro
que confunde homem e jardineiro
em saber quem colhe a flor
desse jardim de janeiro
da vida inteira na mulher
ai quem dera a certeza
que o sonho não é vão
em sonhar com certa mulher
mesmo que tenha espinhos
na flor que é essa mulher
como se tudo na vida
fosse apenas o que ela é.
Rangel Alves da Costa
Uma certa mulher
por certo é você mulher
porque nunca percebi
nas outras o que você é
em todas o que mais se quer
que é compreender
como se é flor e mulher
um certo desejo
por uma certa mulher
paixão invadindo por inteiro
que confunde homem e jardineiro
em saber quem colhe a flor
desse jardim de janeiro
da vida inteira na mulher
ai quem dera a certeza
que o sonho não é vão
em sonhar com certa mulher
mesmo que tenha espinhos
na flor que é essa mulher
como se tudo na vida
fosse apenas o que ela é.
Rangel Alves da Costa
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 12 (Conto)
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 12
Rangel Alves da Costa*
Para total espanto dos presentes, sem ao menos ter chance de dizer uma palavra sequer para se defender, para dizer que não era ladrão coisa nenhuma, que nunca havia roubado e que estava apenas correndo, foi seguro pela gola da camisa e arrastado como se fosse um saco vazio.
Foi arrastado aos trancos, de forma humilhante e desumana, pelo meio da rua e conduzido diretamente para um posto policial no mesmo quarteirão. Por onde o policial passava com o seu pequeno e pretenso marginal, a população indignada dizia, e em tom alto, para que o algoz pudesse ouvir:
"Mas isso não se faz, é apenas uma criança. Isto é uma judiação. Onde estão os direitos humanos?".
"Solte esse menino pelo amor de Deus. Você viu ele roubando, qual a prova que tem contra ele? Ademais, é só uma criança, não está vendo não!"
"Por que fazer isso com o menino, se vocês não têm coragem de enfrentar os verdadeiros marginais. Pegar uma criança nessa idade e sair arrastando feito bicho é fácil, mas queria ver se fosse um bandido de verdade e do seu tamanho!".
"Você não tem filho não? Seu brutamontes sem coração!"
Ouviu-se apenas o policial dizer, expressando um leve sorriso de satisfação: "A lei é para todos. E depois vocês ficam reclamando que damos mole pra marginal".
Assim que entraram no posto policial, uma pequena multidão começou a se formar do lado de fora, tendo que abrir passagem apenas para uma madame cheia de joias, toda no salto alto, roupas brilhosas e cabelos pintados, que chegou alvoroçada por ali, acompanhada de uma filhinha, e dizendo:
"Já pegaram o marginalzinho, onde ele está, encontraram minha bolsa com ele? Quero de volta a minha Givenchy. Saiam daí, saiam da minha frente. Gente feia, fedendo a suor. Odeio pobreza. Deixem-nos passar que quero fazer o reconhecimento do marginalzinho...".
"Ih!, pelo jeito a madame tá com pressa. Deixe ela passar que é pra ver se ela fica presa no lugar do menino. Quando vê esse povo assim, metido a besta, ricaço, é tudo ladrão. E rouba o dinheiro da gente, o que é pior!". Falou alto um rapaz indignado com as palavras mal-educadas da mulher, realmente arrogante demais para ter nascido gente.
Dentro do posto, ainda sem saber sobre qual a acusação que estava sendo lhe imputada, sem ser chamado para ser ouvido e sem poder dizer nada, Zezinho parecia um bicho assustado jogado num canto. Não chorava, não tinha medo, mas estava assustado pelo modo estranho e arrogante como havia sido tratado.
Vermelho de raiva, com os cabelos totalmente assanhados e o corpo um pouco dolorido ainda pela outra violência que havia sofrido e que tinha motivado a sua hospitalização, o menino estava só esperando o momento de ouvir alguma coisa para depois falar. Na sua mente de criança inocente, tudo aquilo estava relacionado com sua fuga do hospital. Nem imaginava que estava ali como ladrão de bolsa de madame.
Assim que a mulher entrou nem olhou para os lados e foi diretamente onde estavam o condutor e mais dois policiais, falando como se estivesse na sua cozinha: "Fizeram o trabalho de vocês. Recuperaram minha bolsa caríssima com os meus documentos, cartões de crédito, joias e dinheiro dentro?", perguntou.
Foi então que o chefe do posto intercedeu e falou: "Não sabemos bem que anel carrega no dedo a senhora, mas exigimos calma e paciência. Fizemos o nosso trabalho e flagranteamos o delinquente juvenil, um desses meninos de rua que andam roubando por aí, mas primeiro a senhora tem de reconhecer o flagranteado para depois tratarmos de seus pertences. Esta bem? Agora olhe para aquele canto ali e veja se foi aquele menino que assaltou a senhora e roubou sua bolsa". E o policial apontou pra Zezinho.
E a filhinha da madame, que pelo jeito e gestos parecia ter nascido de outra barriga, disse apressada: "Mamãe, não foi esse menino não. E por que ele está preso?".
E a madame quase cai de costas quando olhou para o menino naquela situação e, mirando nos olhos de Zezinho, enxergou alguma coisa que somente ela poderia explicar. Nervosa, agitada, quem sabe até envergonhada, sem tirar os olhos do olhar do menino, disse aos policiais:
"Foi este o menino que vocês prenderam? Se foi este prenderam o ladrão errado, e aliás este não tem nem cara de ladrão. E por que prenderam este menino no lugar do verdadeiro ladrão?".
E ouviu-se então uma resposta sem pé nem cabeça por parte de um dos policiais: "Madame, é procedimento policial ver todo menino de rua como perigoso, como usuário de drogas, como ladrão em potencial. São pequenos marginaizinhos que andam por aí aprendendo a furtar e a roubar e a praticar todos os tipos de crimes. Mais tarde, se não forem mortos antes, vão para as estatísticas das penitenciárias. A senhora entendeu o que queremos dizer? Se não foi este aí que lhe roubou, mas roubará outra pessoa qualquer. É ladrão de todo jeito...".
"Solte ele que ele não é ladrão não!". Disse a filhinha da madame, quase na mesma idade de Zezinho, com voz firme e certeza no coração.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Para total espanto dos presentes, sem ao menos ter chance de dizer uma palavra sequer para se defender, para dizer que não era ladrão coisa nenhuma, que nunca havia roubado e que estava apenas correndo, foi seguro pela gola da camisa e arrastado como se fosse um saco vazio.
Foi arrastado aos trancos, de forma humilhante e desumana, pelo meio da rua e conduzido diretamente para um posto policial no mesmo quarteirão. Por onde o policial passava com o seu pequeno e pretenso marginal, a população indignada dizia, e em tom alto, para que o algoz pudesse ouvir:
"Mas isso não se faz, é apenas uma criança. Isto é uma judiação. Onde estão os direitos humanos?".
"Solte esse menino pelo amor de Deus. Você viu ele roubando, qual a prova que tem contra ele? Ademais, é só uma criança, não está vendo não!"
"Por que fazer isso com o menino, se vocês não têm coragem de enfrentar os verdadeiros marginais. Pegar uma criança nessa idade e sair arrastando feito bicho é fácil, mas queria ver se fosse um bandido de verdade e do seu tamanho!".
"Você não tem filho não? Seu brutamontes sem coração!"
Ouviu-se apenas o policial dizer, expressando um leve sorriso de satisfação: "A lei é para todos. E depois vocês ficam reclamando que damos mole pra marginal".
Assim que entraram no posto policial, uma pequena multidão começou a se formar do lado de fora, tendo que abrir passagem apenas para uma madame cheia de joias, toda no salto alto, roupas brilhosas e cabelos pintados, que chegou alvoroçada por ali, acompanhada de uma filhinha, e dizendo:
"Já pegaram o marginalzinho, onde ele está, encontraram minha bolsa com ele? Quero de volta a minha Givenchy. Saiam daí, saiam da minha frente. Gente feia, fedendo a suor. Odeio pobreza. Deixem-nos passar que quero fazer o reconhecimento do marginalzinho...".
"Ih!, pelo jeito a madame tá com pressa. Deixe ela passar que é pra ver se ela fica presa no lugar do menino. Quando vê esse povo assim, metido a besta, ricaço, é tudo ladrão. E rouba o dinheiro da gente, o que é pior!". Falou alto um rapaz indignado com as palavras mal-educadas da mulher, realmente arrogante demais para ter nascido gente.
Dentro do posto, ainda sem saber sobre qual a acusação que estava sendo lhe imputada, sem ser chamado para ser ouvido e sem poder dizer nada, Zezinho parecia um bicho assustado jogado num canto. Não chorava, não tinha medo, mas estava assustado pelo modo estranho e arrogante como havia sido tratado.
Vermelho de raiva, com os cabelos totalmente assanhados e o corpo um pouco dolorido ainda pela outra violência que havia sofrido e que tinha motivado a sua hospitalização, o menino estava só esperando o momento de ouvir alguma coisa para depois falar. Na sua mente de criança inocente, tudo aquilo estava relacionado com sua fuga do hospital. Nem imaginava que estava ali como ladrão de bolsa de madame.
Assim que a mulher entrou nem olhou para os lados e foi diretamente onde estavam o condutor e mais dois policiais, falando como se estivesse na sua cozinha: "Fizeram o trabalho de vocês. Recuperaram minha bolsa caríssima com os meus documentos, cartões de crédito, joias e dinheiro dentro?", perguntou.
Foi então que o chefe do posto intercedeu e falou: "Não sabemos bem que anel carrega no dedo a senhora, mas exigimos calma e paciência. Fizemos o nosso trabalho e flagranteamos o delinquente juvenil, um desses meninos de rua que andam roubando por aí, mas primeiro a senhora tem de reconhecer o flagranteado para depois tratarmos de seus pertences. Esta bem? Agora olhe para aquele canto ali e veja se foi aquele menino que assaltou a senhora e roubou sua bolsa". E o policial apontou pra Zezinho.
E a filhinha da madame, que pelo jeito e gestos parecia ter nascido de outra barriga, disse apressada: "Mamãe, não foi esse menino não. E por que ele está preso?".
E a madame quase cai de costas quando olhou para o menino naquela situação e, mirando nos olhos de Zezinho, enxergou alguma coisa que somente ela poderia explicar. Nervosa, agitada, quem sabe até envergonhada, sem tirar os olhos do olhar do menino, disse aos policiais:
"Foi este o menino que vocês prenderam? Se foi este prenderam o ladrão errado, e aliás este não tem nem cara de ladrão. E por que prenderam este menino no lugar do verdadeiro ladrão?".
E ouviu-se então uma resposta sem pé nem cabeça por parte de um dos policiais: "Madame, é procedimento policial ver todo menino de rua como perigoso, como usuário de drogas, como ladrão em potencial. São pequenos marginaizinhos que andam por aí aprendendo a furtar e a roubar e a praticar todos os tipos de crimes. Mais tarde, se não forem mortos antes, vão para as estatísticas das penitenciárias. A senhora entendeu o que queremos dizer? Se não foi este aí que lhe roubou, mas roubará outra pessoa qualquer. É ladrão de todo jeito...".
"Solte ele que ele não é ladrão não!". Disse a filhinha da madame, quase na mesma idade de Zezinho, com voz firme e certeza no coração.
continua...
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sábado, 30 de outubro de 2010
NATUREZAS-MORTAS E CASARIOS: UM OLHAR DE SOLIDÃO (Crônica)
NATUREZAS-MORTAS E CASARIOS: UM OLHAR DE SOLIDÃO
Rangel Alves da Costa*
A arte, por mais representatividade e expressividade que possa conter em sua beleza criativa, é também uma forma de manifestação da solidão. Na pintura, o traço e a cor muitas vezes são caminhos para a tristeza, a angústia, o sofrimento e a dor. E acima de tudo solidão.
O artista, no seu ato de imaginação e criação, no esconderijo do seu ateliê ou do seu mundo, é um ser eminentemente solitário. O que é esboçado, desenhado e pintado na tela nada mais é do que uma solidão imposta pelo artista. E solidão esta que também é imposta ao artista por outras motivações.
Ora, além da paisagem ser triste e melancólica, há propositalmente um sol que se esconde, uma noite sem brilho, uma lua triste, estrelas sem luz, motivos que entristecem quem caminha pelos caminhos tortos, ruas sem saída e horizontes sem passarinho nem vida. E o que é pior: o pintor sempre fecha as janelas e portas, coloca um véu no rosto de alguém, faz com que se enxergue somente o silêncio, o desconstruído, a tristeza mesmo.
O apreciador da arte, imaginando se encantar com a multiplicidade das cores, com traços fortes e alegres, com óleos e aquarelas que simbolizem tudo de belo que há na vida, de repente se vê imaginando caminhando por paisagens tristes, dentro daquelas casinhas fechadas e buscando compreender porque, ainda assim, há tanta beleza, encontro consigo mesmo e reflexo psicológico em tudo aquilo que era pra ser diferente.
Contudo, existem criações artísticas que já são produzidas com a certeza do alcance. Não há maiores expectativas no impacto que possa causar no apreciador da pintura, pois já nasce tendo por motivo o retrato, a paisagem, o abstracionismo, o engajamento, dentre outras características próprias de cada pintor. Assim, nada demais encontrar jardins aquáticos em Monet, bandeirinhas e bandeirolas em Volpi, marinas em Pancetti.
Mas tudo isso é muito normal, apenas arte. Mesmo sabendo que vão ficar mais entristecidos, mais indagadores, mais molhados e mais alados com a visão, os olhos de muitos correm para diante das telas onde estão as naturezas-mortas e os casarios. Que gêneros mais tristemente realistas!
Segundo os estudiosos, naturezas-mortas são gêneros da pintura onde o artista reproduz, geralmente em tons ocres ou amenos, cenas com objetos de cozinhas populares ou seres inanimados, tais como frutas, flores, livros, taças de vidro, garrafas, jarras de metal, porcelanas, dentre outros objetos. Já os casarios fazem parte da pintura de paisagens, onde o artista se volta para a reprodução de fachadas de prédios históricos, antigos casarões ou moradias simples, dispostas nas ruas também de antigamente.
Estar diante de tais gêneros é impor ao olhar nada mais do que a realidade simples da vida. E esta realidade disposta nos casarios e nas naturezas-mortas doi e afeta porque a pessoa se defronta com aquilo que conhece bem, que viveu e conviveu, mas que está se tornando cada vez mais difícil de ser encontrada.
Nada mais belo e sublime do que poder ver e conversar com prédios rústicos e antigos, nas ruas que vão se estreitando e em calçadas por onde já se começa a caminhar, porque é tudo retrato de um tempo e uma realidade que nos faz muita falta. E lá está a cidadezinha representada na casa antiga, de rica construção ou pobrezinha, na calçada de paralelepípedo que vai dá igrejinha ao fundo, no sol que vai se escondendo por trás da montanha.
Para o olhar triste que repousa sobre a tela há a certeza de que aquela ruazinha é igual a rua que nasceu, cresceu e caminhou; aquele casarão ficava na esquina e de sua janela de repente surgia a moça mais linda do mundo; a casinha simples, com portas azuladas guardava ele por dentro. E no seu interior as coisas simples da vida e de uma casa: a fruta na mesa, o jarro de flores, o vinho, a taça. E a solidão, a solidão...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
A arte, por mais representatividade e expressividade que possa conter em sua beleza criativa, é também uma forma de manifestação da solidão. Na pintura, o traço e a cor muitas vezes são caminhos para a tristeza, a angústia, o sofrimento e a dor. E acima de tudo solidão.
O artista, no seu ato de imaginação e criação, no esconderijo do seu ateliê ou do seu mundo, é um ser eminentemente solitário. O que é esboçado, desenhado e pintado na tela nada mais é do que uma solidão imposta pelo artista. E solidão esta que também é imposta ao artista por outras motivações.
Ora, além da paisagem ser triste e melancólica, há propositalmente um sol que se esconde, uma noite sem brilho, uma lua triste, estrelas sem luz, motivos que entristecem quem caminha pelos caminhos tortos, ruas sem saída e horizontes sem passarinho nem vida. E o que é pior: o pintor sempre fecha as janelas e portas, coloca um véu no rosto de alguém, faz com que se enxergue somente o silêncio, o desconstruído, a tristeza mesmo.
O apreciador da arte, imaginando se encantar com a multiplicidade das cores, com traços fortes e alegres, com óleos e aquarelas que simbolizem tudo de belo que há na vida, de repente se vê imaginando caminhando por paisagens tristes, dentro daquelas casinhas fechadas e buscando compreender porque, ainda assim, há tanta beleza, encontro consigo mesmo e reflexo psicológico em tudo aquilo que era pra ser diferente.
Contudo, existem criações artísticas que já são produzidas com a certeza do alcance. Não há maiores expectativas no impacto que possa causar no apreciador da pintura, pois já nasce tendo por motivo o retrato, a paisagem, o abstracionismo, o engajamento, dentre outras características próprias de cada pintor. Assim, nada demais encontrar jardins aquáticos em Monet, bandeirinhas e bandeirolas em Volpi, marinas em Pancetti.
Mas tudo isso é muito normal, apenas arte. Mesmo sabendo que vão ficar mais entristecidos, mais indagadores, mais molhados e mais alados com a visão, os olhos de muitos correm para diante das telas onde estão as naturezas-mortas e os casarios. Que gêneros mais tristemente realistas!
Segundo os estudiosos, naturezas-mortas são gêneros da pintura onde o artista reproduz, geralmente em tons ocres ou amenos, cenas com objetos de cozinhas populares ou seres inanimados, tais como frutas, flores, livros, taças de vidro, garrafas, jarras de metal, porcelanas, dentre outros objetos. Já os casarios fazem parte da pintura de paisagens, onde o artista se volta para a reprodução de fachadas de prédios históricos, antigos casarões ou moradias simples, dispostas nas ruas também de antigamente.
Estar diante de tais gêneros é impor ao olhar nada mais do que a realidade simples da vida. E esta realidade disposta nos casarios e nas naturezas-mortas doi e afeta porque a pessoa se defronta com aquilo que conhece bem, que viveu e conviveu, mas que está se tornando cada vez mais difícil de ser encontrada.
Nada mais belo e sublime do que poder ver e conversar com prédios rústicos e antigos, nas ruas que vão se estreitando e em calçadas por onde já se começa a caminhar, porque é tudo retrato de um tempo e uma realidade que nos faz muita falta. E lá está a cidadezinha representada na casa antiga, de rica construção ou pobrezinha, na calçada de paralelepípedo que vai dá igrejinha ao fundo, no sol que vai se escondendo por trás da montanha.
Para o olhar triste que repousa sobre a tela há a certeza de que aquela ruazinha é igual a rua que nasceu, cresceu e caminhou; aquele casarão ficava na esquina e de sua janela de repente surgia a moça mais linda do mundo; a casinha simples, com portas azuladas guardava ele por dentro. E no seu interior as coisas simples da vida e de uma casa: a fruta na mesa, o jarro de flores, o vinho, a taça. E a solidão, a solidão...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Amor de anjo (Poesia)
Amor de anjo
O vento passou apressado
e disse num segredo soprado
para não ficar desesperado
porque o amor disfarçado
de anjo de voo alado
chegará sem ser chamado
e pousará ao meu lado
e silenciosamente pousado
soprará lição e ditado
dirá que serei amado
dirá que serei adorado
dirá que ficarei apaixonado
porque o anjo ao meu lado
não passa de anjo safado
de anjo de amor embriagado
e é o meu anjo adorado
que tanto tenho esperado.
Rangel Alves da Costa
O vento passou apressado
e disse num segredo soprado
para não ficar desesperado
porque o amor disfarçado
de anjo de voo alado
chegará sem ser chamado
e pousará ao meu lado
e silenciosamente pousado
soprará lição e ditado
dirá que serei amado
dirá que serei adorado
dirá que ficarei apaixonado
porque o anjo ao meu lado
não passa de anjo safado
de anjo de amor embriagado
e é o meu anjo adorado
que tanto tenho esperado.
Rangel Alves da Costa
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 11 (Conto)
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 11
Rangel Alves da Costa*
Completamente comovido com a situação, o senhor parecia sem reação para falar, para dizer alguma coisa que confortasse o menino. Ora, mas quem sou eu que pensava que já havia visto de tudo nessa vida, confessou intimamente. Aos poucos conseguiu dizer: "E o que pensa em fazer agora, meu triste menino?".
Para o que Zezinho respondeu:
"Gostaria também de saber. Na verdade, só pode retornar quem tem lugar pra retornar; só pode voltar pra casa quem tem casa de portas abertas esperando, quem tem família esperando. Eu lhe garanto que não tenho mais nada disso. Mataram meu pai, isso eu vi, pois ainda toquei o dedo no sangue dele; dizem que minha morreu, mas eu não pude fechar os olhos dela. Não posso viajar sozinho porque não tenho passagem, não tenho nenhum dinheiro e não sei pra onde ir; não posso ficar porque esse povo não me conhece, não gosta de ninguém, é um povo que faz mais medo do que bicho, tem ladrão em todo lugar, e também porque não sou daqui e nem quero ficar aqui. Deus me livre de dormir debaixo da lua toda noite e beber água e tomar banho na mangueira do jardim. E comer, eu vou comer o que, se não tenho tostão nem pra comprar um pão? Ontem mesmo comi... – E lembrou do hospital e evitou falar sobre isso – Ontem mesmo comi frango assado com arroz porque me deram, e tava bom demais. Se encontrar hoje um pedaço de pão, com a fome que eu tô, vai ser mais saboroso ainda...".
"Calma, calma, descanse um pouquinho estas palavras tão verdadeiramente cruéis e vamos pensar um pouco, vamos tentar buscar uma solução para tudo isso. Mas antes disso espere um pouquinho aqui que já volto, vou apenas ali em frente e já volto. Não saia não...". E o senhor levantou e se dirigiu até uma lanchonete na proximidade.
Ao retornar, caminhando com uma bolsa na mão contendo refrigerante, bolos e salgados, avistou Zezinho de cabeça baixa e olhos fixos na fotografia do jornal. Limpava os olhos com a mão e dizia algumas coisas que somente ele podia ouvir. Mais tarde tais palavras seriam o norte de sua vida.
E foi uma festa momentânea para o menino. Comeu de se fartar e guardou um resto do lanche para mais tarde. Quando percebeu que o menino estava saciado, menos triste e mais disposto, o senhor começou a falar novamente:
"Moro num bairro aqui próximo e unicamente com minha esposa. Meus filhos já estão todos casados e tenho netos que são uma maravilhosa. Tem assim na sua idade, maior e menor. Mas todos moram com os pais e só recebo a visita deles quando cismam de aparecer. A cada dia que passa demoram mais a aparecer, e acho isso muito ruim porque ficamos com muita saudade. Mas isso é com os pais, e eles devem saber o quanto somos sozinhos e gostamos de estar ao lado, brincando e sorrindo com os nossos netinhos. Parece que nós quando envelhecemos criamos mais sentimentos do que os mais jovens...".
E o senhor parou um pouco de falar porque lhe veio à mente que não estava conversando com adulto ou gente de sua idade, mas com um garoto que não tinha nada a ver com aquilo e que, aliás, já tinha problemas demais. Modificou o contexto do assunto e procurou ir logo ao ponto onde queria realmente chegar:
"Você bem que poderia passar um tempo com a gente até que tudo fosse se resolvendo. Vou falar com minha esposa e amanhã nos encontraremos aqui nesse mesmo horário, está certo?".
Mas Zezinho nem ouvia o que ele dizia, pois estava desconfiado com uma ambulância que parecia estar fazendo ronda pelos arredores, pois já era a segunda vez que ela aparecia e sumia. E se o pessoal do hospital já tivesse descoberto a sua fuga e por isso mesmo aquela ambulância estava à sua procura? Perguntava-se preocupado.
Fazia tudo para esconder o rosto no jornal, porém o medo era maior. Pediu licença ao senhor para ir ao banheiro, dizendo que voltaria num instante para acertarem tudo, mas assim que se distanciou um pouco, olhou onde era a esquina mais próxima, caminhou até lá e depois começou a correr feito um desesperado.
Ainda correndo com toda a velocidade que podia, vez que ainda não estava totalmente recuperado, dois trechos adiante esbarrou bem aos pés de um policial fardado:
"Vem correndo assim porque roubou, não é seu ladrãozinho?".
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Completamente comovido com a situação, o senhor parecia sem reação para falar, para dizer alguma coisa que confortasse o menino. Ora, mas quem sou eu que pensava que já havia visto de tudo nessa vida, confessou intimamente. Aos poucos conseguiu dizer: "E o que pensa em fazer agora, meu triste menino?".
Para o que Zezinho respondeu:
"Gostaria também de saber. Na verdade, só pode retornar quem tem lugar pra retornar; só pode voltar pra casa quem tem casa de portas abertas esperando, quem tem família esperando. Eu lhe garanto que não tenho mais nada disso. Mataram meu pai, isso eu vi, pois ainda toquei o dedo no sangue dele; dizem que minha morreu, mas eu não pude fechar os olhos dela. Não posso viajar sozinho porque não tenho passagem, não tenho nenhum dinheiro e não sei pra onde ir; não posso ficar porque esse povo não me conhece, não gosta de ninguém, é um povo que faz mais medo do que bicho, tem ladrão em todo lugar, e também porque não sou daqui e nem quero ficar aqui. Deus me livre de dormir debaixo da lua toda noite e beber água e tomar banho na mangueira do jardim. E comer, eu vou comer o que, se não tenho tostão nem pra comprar um pão? Ontem mesmo comi... – E lembrou do hospital e evitou falar sobre isso – Ontem mesmo comi frango assado com arroz porque me deram, e tava bom demais. Se encontrar hoje um pedaço de pão, com a fome que eu tô, vai ser mais saboroso ainda...".
"Calma, calma, descanse um pouquinho estas palavras tão verdadeiramente cruéis e vamos pensar um pouco, vamos tentar buscar uma solução para tudo isso. Mas antes disso espere um pouquinho aqui que já volto, vou apenas ali em frente e já volto. Não saia não...". E o senhor levantou e se dirigiu até uma lanchonete na proximidade.
Ao retornar, caminhando com uma bolsa na mão contendo refrigerante, bolos e salgados, avistou Zezinho de cabeça baixa e olhos fixos na fotografia do jornal. Limpava os olhos com a mão e dizia algumas coisas que somente ele podia ouvir. Mais tarde tais palavras seriam o norte de sua vida.
E foi uma festa momentânea para o menino. Comeu de se fartar e guardou um resto do lanche para mais tarde. Quando percebeu que o menino estava saciado, menos triste e mais disposto, o senhor começou a falar novamente:
"Moro num bairro aqui próximo e unicamente com minha esposa. Meus filhos já estão todos casados e tenho netos que são uma maravilhosa. Tem assim na sua idade, maior e menor. Mas todos moram com os pais e só recebo a visita deles quando cismam de aparecer. A cada dia que passa demoram mais a aparecer, e acho isso muito ruim porque ficamos com muita saudade. Mas isso é com os pais, e eles devem saber o quanto somos sozinhos e gostamos de estar ao lado, brincando e sorrindo com os nossos netinhos. Parece que nós quando envelhecemos criamos mais sentimentos do que os mais jovens...".
E o senhor parou um pouco de falar porque lhe veio à mente que não estava conversando com adulto ou gente de sua idade, mas com um garoto que não tinha nada a ver com aquilo e que, aliás, já tinha problemas demais. Modificou o contexto do assunto e procurou ir logo ao ponto onde queria realmente chegar:
"Você bem que poderia passar um tempo com a gente até que tudo fosse se resolvendo. Vou falar com minha esposa e amanhã nos encontraremos aqui nesse mesmo horário, está certo?".
Mas Zezinho nem ouvia o que ele dizia, pois estava desconfiado com uma ambulância que parecia estar fazendo ronda pelos arredores, pois já era a segunda vez que ela aparecia e sumia. E se o pessoal do hospital já tivesse descoberto a sua fuga e por isso mesmo aquela ambulância estava à sua procura? Perguntava-se preocupado.
Fazia tudo para esconder o rosto no jornal, porém o medo era maior. Pediu licença ao senhor para ir ao banheiro, dizendo que voltaria num instante para acertarem tudo, mas assim que se distanciou um pouco, olhou onde era a esquina mais próxima, caminhou até lá e depois começou a correr feito um desesperado.
Ainda correndo com toda a velocidade que podia, vez que ainda não estava totalmente recuperado, dois trechos adiante esbarrou bem aos pés de um policial fardado:
"Vem correndo assim porque roubou, não é seu ladrãozinho?".
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
sexta-feira, 29 de outubro de 2010
SENTENÇA E SINA (Crônica)
SENTENÇA E SINA
Rangel Alves da Costa*
Pois bem. Consultado o maior sábio da região sobre o que poderia ocorrer com aquela linda mulher que desprezou todos os amores que rogavam por um simples olhar, um breve abraço ou um rápido beijo, ele não pensou duas vezes e disse que consultaria o oráculo para ter as respostas seguras o mais rápido possível.
Depois de consultar oráculo, que lhe permitiria fazer conexões com deuses míticos e entes superiores, o sábio prometeu que traria a solução mais coerente para o caso, mas não de forma verbal, pelo uso da palavra simplesmente dita, e sim através de uma sentença escrita, cuja disposição final, ao invés da absolvição ou condenação, seria dada por meio de uma sina.
Como é do conhecimento de todos, sentença é uma decisão, um julgamento, uma pronúncia de determinado julgador sobre um caso levado ao seu entendimento e análise. Depois da análise profunda sobre a questão vem a sentença, a decisão. Já a sina, neste caso, seria o destino assegurado à pessoa depois do que determinar a sentença. Julgado traidor, por exemplo, a sina é perder a confiança de todos pelo resto da vida.
Assim, depois de três dias e três noites consultando o oráculo, o velho sábio pegou uma pena de ganso, estendeu um pergaminho numa velha escrivaninha, molhou a pena num frasco de carvão líquido e escreveu sentença e sina, como a seguir se avista:
Vistos, etc.
A juventude apaixonada da região, consubstanciada em provas de que a bela Maria jamais atendeu aos rogos dos corações enamorados e, ao invés de permitir-lhe ao menos a esperança de qualquer felicidade advinda de um gesto, um olhar, uma carícia, um beijo ou um abraço, procurou a sabedoria do oráculo para, através dos juízos dos deuses e entidades, anteverem o que poderá acontecer com a doce e meiga donzela acaso insista em evitar a todos, desprezar a todos, negar-lhes o doce sentimento da esperança.
Tais alegações foram comprovadas nos olhos tristes de cada um, na angústia que invade os corações tão jovens e tão aflitos, nos poemas que foram e são escritos e reescritos e nas trovas de amor que são rimadas sempre com o nome da meiga Maria.
É, em síntese, o relatório do que me veio ao conhecimento, para o qual, por meio da razão do grande Aor, da sabedoria feminina de Lilás e da palavra inconteste do venerável Passioncárdio, passo a decidir.
Ressoa dos relatos a culpa, a máxima culpa da bela Maria. Na justiça dos homens, seu tão grandioso erro se aproximaria da omissão, dos maus tratos, da lesão corporal, do auxílio ao suicídio, do infame homicídio. E por quê? Perguntaria a defesa da bela Maria.
Ora, simplesmente porque a loucura trazida pela paixão, pelo amor não correspondido, pelo contumaz e injustificado abandono e, o que é mais grave, pelo desdém com que se trata o coração do outro, outra coisa não faz senão deixar que o desprezado e relegado ao mundo dos amores impossíveis se torne em vítima potencial.
Ademais, há tristeza maior do que ser desprezado por quem tanto ama? Há dor, angústia e sofrimento maior do que viver somente da esperança e a cada dia aumentar a certeza de que tudo na vida é vão? Há dor maior do que a certeza de ser enxergado e não ser visto por quem um olhar de compreensão seria tudo?
Aor, Lilás e Passioncárdio, com o zelo e o acerto de sempre, afirmaram que não significa que ela tenha que se submeter ao amor, ao desejo, ao querer dos outros. Não. O coração é livre para escolher quem quer amar! Contudo, não se deve, por vaidade ou egoísmo, deixar desvanecer a esperança de ninguém. Não queira amar, bela e meiga Maria, mas também não aja para destruir. Cadê o olhar, cadê o sorriso? E isso bastaria!
Não vejo senão sua culpa, sua máxima culpa. Entretanto, como não deve ser imposta condenação para os que não querem amar, transformo a pena em sina. E o mais grave é que a sina, diferentemente da pena, se cumpre pela eternidade.
Então, a tua sina, bela Maria, será ter de suportar o desprezo do próprio espelho pelo resto da vida. Nada Mais.
Poeta e cronista
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Rangel Alves da Costa*
Pois bem. Consultado o maior sábio da região sobre o que poderia ocorrer com aquela linda mulher que desprezou todos os amores que rogavam por um simples olhar, um breve abraço ou um rápido beijo, ele não pensou duas vezes e disse que consultaria o oráculo para ter as respostas seguras o mais rápido possível.
Depois de consultar oráculo, que lhe permitiria fazer conexões com deuses míticos e entes superiores, o sábio prometeu que traria a solução mais coerente para o caso, mas não de forma verbal, pelo uso da palavra simplesmente dita, e sim através de uma sentença escrita, cuja disposição final, ao invés da absolvição ou condenação, seria dada por meio de uma sina.
Como é do conhecimento de todos, sentença é uma decisão, um julgamento, uma pronúncia de determinado julgador sobre um caso levado ao seu entendimento e análise. Depois da análise profunda sobre a questão vem a sentença, a decisão. Já a sina, neste caso, seria o destino assegurado à pessoa depois do que determinar a sentença. Julgado traidor, por exemplo, a sina é perder a confiança de todos pelo resto da vida.
Assim, depois de três dias e três noites consultando o oráculo, o velho sábio pegou uma pena de ganso, estendeu um pergaminho numa velha escrivaninha, molhou a pena num frasco de carvão líquido e escreveu sentença e sina, como a seguir se avista:
Vistos, etc.
A juventude apaixonada da região, consubstanciada em provas de que a bela Maria jamais atendeu aos rogos dos corações enamorados e, ao invés de permitir-lhe ao menos a esperança de qualquer felicidade advinda de um gesto, um olhar, uma carícia, um beijo ou um abraço, procurou a sabedoria do oráculo para, através dos juízos dos deuses e entidades, anteverem o que poderá acontecer com a doce e meiga donzela acaso insista em evitar a todos, desprezar a todos, negar-lhes o doce sentimento da esperança.
Tais alegações foram comprovadas nos olhos tristes de cada um, na angústia que invade os corações tão jovens e tão aflitos, nos poemas que foram e são escritos e reescritos e nas trovas de amor que são rimadas sempre com o nome da meiga Maria.
É, em síntese, o relatório do que me veio ao conhecimento, para o qual, por meio da razão do grande Aor, da sabedoria feminina de Lilás e da palavra inconteste do venerável Passioncárdio, passo a decidir.
Ressoa dos relatos a culpa, a máxima culpa da bela Maria. Na justiça dos homens, seu tão grandioso erro se aproximaria da omissão, dos maus tratos, da lesão corporal, do auxílio ao suicídio, do infame homicídio. E por quê? Perguntaria a defesa da bela Maria.
Ora, simplesmente porque a loucura trazida pela paixão, pelo amor não correspondido, pelo contumaz e injustificado abandono e, o que é mais grave, pelo desdém com que se trata o coração do outro, outra coisa não faz senão deixar que o desprezado e relegado ao mundo dos amores impossíveis se torne em vítima potencial.
Ademais, há tristeza maior do que ser desprezado por quem tanto ama? Há dor, angústia e sofrimento maior do que viver somente da esperança e a cada dia aumentar a certeza de que tudo na vida é vão? Há dor maior do que a certeza de ser enxergado e não ser visto por quem um olhar de compreensão seria tudo?
Aor, Lilás e Passioncárdio, com o zelo e o acerto de sempre, afirmaram que não significa que ela tenha que se submeter ao amor, ao desejo, ao querer dos outros. Não. O coração é livre para escolher quem quer amar! Contudo, não se deve, por vaidade ou egoísmo, deixar desvanecer a esperança de ninguém. Não queira amar, bela e meiga Maria, mas também não aja para destruir. Cadê o olhar, cadê o sorriso? E isso bastaria!
Não vejo senão sua culpa, sua máxima culpa. Entretanto, como não deve ser imposta condenação para os que não querem amar, transformo a pena em sina. E o mais grave é que a sina, diferentemente da pena, se cumpre pela eternidade.
Então, a tua sina, bela Maria, será ter de suportar o desprezo do próprio espelho pelo resto da vida. Nada Mais.
Poeta e cronista
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Pó (Poesia)
Pó
Eis que tenho medo da ventania
porque um dia
quando apenas ser folha queria
fui transformado em pó
e a poeira se espalhou em agonia
fui parar no ar
fui afogar no mar
fui ferir o olhar
fui pra todo lugar
até um dia chegar
que o teu caminhar
no pó chegou a pisar
eis que tenho medo da chuva
porque o pó espalhado
no barro é transformado
e você vem passando
e amaldiçoa a vida
porque caiu em cima de mim.
Rangel Alves da Costa
Eis que tenho medo da ventania
porque um dia
quando apenas ser folha queria
fui transformado em pó
e a poeira se espalhou em agonia
fui parar no ar
fui afogar no mar
fui ferir o olhar
fui pra todo lugar
até um dia chegar
que o teu caminhar
no pó chegou a pisar
eis que tenho medo da chuva
porque o pó espalhado
no barro é transformado
e você vem passando
e amaldiçoa a vida
porque caiu em cima de mim.
Rangel Alves da Costa
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 10 (Conto)
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 10
Rangel Alves da Costa*
Sem saber o que fazer diante daquela fotografia e da notícia estampada no jornal, até mesmo porque tinha certeza que nada havia acontecido com sua mãe, Zezinho colocou a parte do jornal que lhe interessava embaixo do braço e saiu quase correndo em direção a uma pracinha nas proximidades.
Chegando ao local, encurtou o passo e, como quem não queria nada, foi sentar bem ao lado de um senhor de cabelos e bigode totalmente embranquecidos, que estava ali parecendo todo contente observando a movimentação ao redor. Sorte que o tempo estava nublado e soprava um vento agradável na pracinha, do contrário seria impossível estar sentado no local em plena manhã.
O senhor achou de bom agrado dividir o banco com o jovem visitante. Perguntou se o menino estava bem e este, após afirmar que estava passeando e sentou para descansar um pouco, aproveitou para ir bem ao ponto onde queria:
"O senhor, que deve entender mais de leitura do que eu, poderia ler essa notícia aqui – Mostrando o jornal – inteirinha pra mim?". E o homem respondeu: "Mas claro, será um prazer, mas na sua idade já deveria estar um mestre no conhecimento das letras, está entendendo?".
"Eu sei ler, e até já li, mas é só pra poder entender melhor o que diz aí", falou Zezinho, querendo esboçar um sorriso em meio ao nervosismo. E o outro continuou:
"Então vamos lá. Diz aqui exatamente o seguinte: "Ontem, por volta das seis horas da noite, a senhora Maria Rosa dos Santos sofreu um ataque súbito do coração no terminal rodoviário e veio a óbito. Segundo testemunhas, a mulher se encontrava totalmente aflita porque no tumulto do terminal havia se perdido do filho menor, de nome Zezinho, com quem iria viajar para o sul do país. Depois da intensa procura e de não ter encontrado o filho, a mulher começou a se desesperar e isto pode ter provocado o mal súbito que a fez cair sem vida em meio aos passageiros. O corpo foi recolhido pelo serviço de atendimento funeral da prefeitura para a tomada das providências cabíveis". Então é isto que está escrito aqui. Mas posso lhe fazer uma pergunta?".
E ao olhar para o menino enxergou a tristeza, a angústia, a dor e o sofrimento em pessoa. Para quem já estava abatido pela violência sofrida e pelo internamento no hospital, a confirmação da notícia chegou como um baque difícil de suportar. Zezinho chorava de cabeça baixa, com as mãos nos cabelos, procurando não demonstrar que estava sofrendo.
Vendo o menino daquele jeito, o senhor se espantou: "Mas o que está acontecendo meu filho, foi a notícia do jornal que lhe deixou tão triste assim? Vá, me diga...". "Não, nada não. É que esqueci de deixar desarmada a arapuca de pegar passarinho...".
"Mas isto não seria motivo para choro e tristeza tão grande assim. Tenho certeza que o seu estado tem a ver sim com a notícia que li. Por favor, pode me falar, me diga a verdade. Foi a notícia que li? Você conhece essa mulher que o jornal informa ter morrido na rodoviária? Era alguma conhecida ou parente sua? Vá, me diga..."
E Zezinho levantou a cabeça, limpou os olhos molhados com a mão, procurou respirar fundo e depois disse em voz baixa: "Se essa notícia que tá aí for verdade, a mulher que morreu é a minha mãe. E se ela morreu a culpa é minha que me soltei da mão dela e fui subir naquele outro ônibus. Se eu não tivesse feito aquilo ela não ia ficar me procurando, não ia ficar preocupada, doente, e não teria acontecido nada com ela...".
E o senhor, totalmente estarrecido com essa novidade, interrompeu para falar:
"Mas é verdade o que está dizendo, meu filho? Você tem aí algum documento, alguma coisa que comprove que é realmente filho desta mulher que morreu e cujo retrato está aqui no jornal?"
"Ter documento eu não tenho não. Não tenho nada. Mas um filho conhece o retrato de sua mãe, sabe o nome dela e sabe onde foi a última vez que deixou ela. E quando aquele ônibus saiu comigo dormindo dentro dele, ela ficou na rodoviária, e ficou lá porque a gente ia viajar. E eu vim parar aqui mas tava fazendo tudo pra ir pra lá, pra rodoviária encontrar ela pra gente viajar. É que eu só tinha minha mãe na vida e agora...".
E agora era o senhor que deixava escorrer uma lágrima pelo canto do olho. "E agora o que?", perguntou.
"Agora eu não tenho mais nada na vida, mais ninguém na vida. Meu pai já morreu e agora minha mãe também. Eu também quase morro. Agora eu tenho que me virar sozinho na vida. Se ao menos eu tivesse lá no sertão...".
continua...
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Sem saber o que fazer diante daquela fotografia e da notícia estampada no jornal, até mesmo porque tinha certeza que nada havia acontecido com sua mãe, Zezinho colocou a parte do jornal que lhe interessava embaixo do braço e saiu quase correndo em direção a uma pracinha nas proximidades.
Chegando ao local, encurtou o passo e, como quem não queria nada, foi sentar bem ao lado de um senhor de cabelos e bigode totalmente embranquecidos, que estava ali parecendo todo contente observando a movimentação ao redor. Sorte que o tempo estava nublado e soprava um vento agradável na pracinha, do contrário seria impossível estar sentado no local em plena manhã.
O senhor achou de bom agrado dividir o banco com o jovem visitante. Perguntou se o menino estava bem e este, após afirmar que estava passeando e sentou para descansar um pouco, aproveitou para ir bem ao ponto onde queria:
"O senhor, que deve entender mais de leitura do que eu, poderia ler essa notícia aqui – Mostrando o jornal – inteirinha pra mim?". E o homem respondeu: "Mas claro, será um prazer, mas na sua idade já deveria estar um mestre no conhecimento das letras, está entendendo?".
"Eu sei ler, e até já li, mas é só pra poder entender melhor o que diz aí", falou Zezinho, querendo esboçar um sorriso em meio ao nervosismo. E o outro continuou:
"Então vamos lá. Diz aqui exatamente o seguinte: "Ontem, por volta das seis horas da noite, a senhora Maria Rosa dos Santos sofreu um ataque súbito do coração no terminal rodoviário e veio a óbito. Segundo testemunhas, a mulher se encontrava totalmente aflita porque no tumulto do terminal havia se perdido do filho menor, de nome Zezinho, com quem iria viajar para o sul do país. Depois da intensa procura e de não ter encontrado o filho, a mulher começou a se desesperar e isto pode ter provocado o mal súbito que a fez cair sem vida em meio aos passageiros. O corpo foi recolhido pelo serviço de atendimento funeral da prefeitura para a tomada das providências cabíveis". Então é isto que está escrito aqui. Mas posso lhe fazer uma pergunta?".
E ao olhar para o menino enxergou a tristeza, a angústia, a dor e o sofrimento em pessoa. Para quem já estava abatido pela violência sofrida e pelo internamento no hospital, a confirmação da notícia chegou como um baque difícil de suportar. Zezinho chorava de cabeça baixa, com as mãos nos cabelos, procurando não demonstrar que estava sofrendo.
Vendo o menino daquele jeito, o senhor se espantou: "Mas o que está acontecendo meu filho, foi a notícia do jornal que lhe deixou tão triste assim? Vá, me diga...". "Não, nada não. É que esqueci de deixar desarmada a arapuca de pegar passarinho...".
"Mas isto não seria motivo para choro e tristeza tão grande assim. Tenho certeza que o seu estado tem a ver sim com a notícia que li. Por favor, pode me falar, me diga a verdade. Foi a notícia que li? Você conhece essa mulher que o jornal informa ter morrido na rodoviária? Era alguma conhecida ou parente sua? Vá, me diga..."
E Zezinho levantou a cabeça, limpou os olhos molhados com a mão, procurou respirar fundo e depois disse em voz baixa: "Se essa notícia que tá aí for verdade, a mulher que morreu é a minha mãe. E se ela morreu a culpa é minha que me soltei da mão dela e fui subir naquele outro ônibus. Se eu não tivesse feito aquilo ela não ia ficar me procurando, não ia ficar preocupada, doente, e não teria acontecido nada com ela...".
E o senhor, totalmente estarrecido com essa novidade, interrompeu para falar:
"Mas é verdade o que está dizendo, meu filho? Você tem aí algum documento, alguma coisa que comprove que é realmente filho desta mulher que morreu e cujo retrato está aqui no jornal?"
"Ter documento eu não tenho não. Não tenho nada. Mas um filho conhece o retrato de sua mãe, sabe o nome dela e sabe onde foi a última vez que deixou ela. E quando aquele ônibus saiu comigo dormindo dentro dele, ela ficou na rodoviária, e ficou lá porque a gente ia viajar. E eu vim parar aqui mas tava fazendo tudo pra ir pra lá, pra rodoviária encontrar ela pra gente viajar. É que eu só tinha minha mãe na vida e agora...".
E agora era o senhor que deixava escorrer uma lágrima pelo canto do olho. "E agora o que?", perguntou.
"Agora eu não tenho mais nada na vida, mais ninguém na vida. Meu pai já morreu e agora minha mãe também. Eu também quase morro. Agora eu tenho que me virar sozinho na vida. Se ao menos eu tivesse lá no sertão...".
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quinta-feira, 28 de outubro de 2010
A ÁRVORE MORENA (E DE OLHOS VERDES) (Crônica)
A ÁRVORE MORENA (E DE OLHOS VERDES)
Rangel Alves da Costa*
Talvez uma árvore com tais características não exista em lugar nenhum do planeta, principalmente pelos olhos e a sua cor, pois todo mundo sabe que árvore não tem visão, mas somente coração.
Mesmo assim vou contar a história que um dia ouvi de um velho monge budista, e segundo a narrativa sempre existiu uma árvore morena e de olhos verdes. Mas apenas uma, somente uma.
Contou-me o velho monge que no ponto mais alto da mais alta montanha nasceu uma planta com características diferentes de qualquer outra planta jamais vista.
A planta, na estatura de uma pessoa mediana, era fincada à terra por raízes que eram verdadeiras veias, crescia a partir de dois troncos que pareciam pernas, possuía no centro todos os aspectos de um corpo humano, se expandia em dois braços alongados e na parte de cima uma pequena copa nos moldes de uma cabeça. Dos galhos que se curvavam ovalmente despontavam folhas compridas que, sopradas pela aragem do entardecer, assemelhavam-se com cabelos ao vento.
Dessa planta diferente, tão bela enquanto parte da vegetação e tão triste enquanto semelhante ao ser humano, nunca nasceu um fruto, nunca vingou um broto, nunca surgiu uma flor. Era planta triste por alguma coisa misteriosa.
Em meio às folhagens podia-se avistar apenas uma minúscula formação arredondada que, surgida do nada e da pele nua, crescia pelo período de um dia e quando chegava ao anoitecer se abria e soltava um pó embranquecido que se espalhava pelo ar e era levado pelo vento.
Não se sabe como, mas este pozinho, ao invés de se espalhar por lugares cada vez mais distantes, ia se juntando lá por cima e de repente estava formado um pingo de água volumoso que ia caindo e molhava sempre no mesmo lugar. E este pingo estranho e de diferente formação descia sempre sobre uma árvore chamada Adrishya.
No dialeto Pali, que é uma forma simplificada do sânscrito, Adrishya significa aquela que não pode ser percebida pelo olho humano. Assim, essa árvore existente num cume um pouco abaixo da mais alta montanha, e que recebia todos os dias aquela gota d'água como forma de rejuvenescer e se perpetuar, possuía características que não podiam ser percebidas através do simples olhar.
Contudo, nem todos os seres humanos viviam impossibilitados de enxergar, se encantar e se apaixonar por aquela árvore com corpo belo, esguio e esbelto de mulher, de pele de um moreno trigueiro e de olhos verdes, bem esverdeados.
Perguntei ao monge porque aquela plantinha cuja formação parecia também um corpo humano soltava aquele pó que se transformava em pingo d'água para molhar a Adrishya, que era uma verdadeira mulher para quem tivesse a permissão de vê-la. E ele respondeu calmamente que era o amor, simplesmente o amor.
E por quê? Insisti em perguntar. Foi a única forma que a natureza encontrou de fazer os seres que se amam dependentes um do outro. Porque ainda não foi permitida a união entre seres vegetais, a divindade fez com que um alimente o outro até o dia que puderem realizar seus desejos como simples mortais.
E a Adrishya não pode expor sua beleza perante todos porque está prometida. E aqueles que têm permissão para vê-la o fazem somente para ter a certeza de que o amor se alimenta de muito mais mistérios do que imagina nossa vã filosofia.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Talvez uma árvore com tais características não exista em lugar nenhum do planeta, principalmente pelos olhos e a sua cor, pois todo mundo sabe que árvore não tem visão, mas somente coração.
Mesmo assim vou contar a história que um dia ouvi de um velho monge budista, e segundo a narrativa sempre existiu uma árvore morena e de olhos verdes. Mas apenas uma, somente uma.
Contou-me o velho monge que no ponto mais alto da mais alta montanha nasceu uma planta com características diferentes de qualquer outra planta jamais vista.
A planta, na estatura de uma pessoa mediana, era fincada à terra por raízes que eram verdadeiras veias, crescia a partir de dois troncos que pareciam pernas, possuía no centro todos os aspectos de um corpo humano, se expandia em dois braços alongados e na parte de cima uma pequena copa nos moldes de uma cabeça. Dos galhos que se curvavam ovalmente despontavam folhas compridas que, sopradas pela aragem do entardecer, assemelhavam-se com cabelos ao vento.
Dessa planta diferente, tão bela enquanto parte da vegetação e tão triste enquanto semelhante ao ser humano, nunca nasceu um fruto, nunca vingou um broto, nunca surgiu uma flor. Era planta triste por alguma coisa misteriosa.
Em meio às folhagens podia-se avistar apenas uma minúscula formação arredondada que, surgida do nada e da pele nua, crescia pelo período de um dia e quando chegava ao anoitecer se abria e soltava um pó embranquecido que se espalhava pelo ar e era levado pelo vento.
Não se sabe como, mas este pozinho, ao invés de se espalhar por lugares cada vez mais distantes, ia se juntando lá por cima e de repente estava formado um pingo de água volumoso que ia caindo e molhava sempre no mesmo lugar. E este pingo estranho e de diferente formação descia sempre sobre uma árvore chamada Adrishya.
No dialeto Pali, que é uma forma simplificada do sânscrito, Adrishya significa aquela que não pode ser percebida pelo olho humano. Assim, essa árvore existente num cume um pouco abaixo da mais alta montanha, e que recebia todos os dias aquela gota d'água como forma de rejuvenescer e se perpetuar, possuía características que não podiam ser percebidas através do simples olhar.
Contudo, nem todos os seres humanos viviam impossibilitados de enxergar, se encantar e se apaixonar por aquela árvore com corpo belo, esguio e esbelto de mulher, de pele de um moreno trigueiro e de olhos verdes, bem esverdeados.
Perguntei ao monge porque aquela plantinha cuja formação parecia também um corpo humano soltava aquele pó que se transformava em pingo d'água para molhar a Adrishya, que era uma verdadeira mulher para quem tivesse a permissão de vê-la. E ele respondeu calmamente que era o amor, simplesmente o amor.
E por quê? Insisti em perguntar. Foi a única forma que a natureza encontrou de fazer os seres que se amam dependentes um do outro. Porque ainda não foi permitida a união entre seres vegetais, a divindade fez com que um alimente o outro até o dia que puderem realizar seus desejos como simples mortais.
E a Adrishya não pode expor sua beleza perante todos porque está prometida. E aqueles que têm permissão para vê-la o fazem somente para ter a certeza de que o amor se alimenta de muito mais mistérios do que imagina nossa vã filosofia.
Poeta e cronista
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Verdade (Poesia)
Verdade
Vou mentir
e dizer que te amo
e certamente você
com o egoísmo
com a vaidade
e com o orgulho
que impedem que ame
dirá não
e dirá não e não
porque ninguém
é tão brilhante
quanto a tua joia
porque ninguém
é tão perfeito
quanto a tua criação
e então
com a humildade
que tenho
direi a verdade
direi que sou
muito pequeno
muito pouco
quase nada para amar
o que não pode ser amado
porque é demasiadamente
nada
porque não existe.
Rangel Alves da Costa
Vou mentir
e dizer que te amo
e certamente você
com o egoísmo
com a vaidade
e com o orgulho
que impedem que ame
dirá não
e dirá não e não
porque ninguém
é tão brilhante
quanto a tua joia
porque ninguém
é tão perfeito
quanto a tua criação
e então
com a humildade
que tenho
direi a verdade
direi que sou
muito pequeno
muito pouco
quase nada para amar
o que não pode ser amado
porque é demasiadamente
nada
porque não existe.
Rangel Alves da Costa
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 9 (Conto)
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 9
Rangel Alves da Costa*
O que causava imensa preocupação aos médicos, enfermeiros e assistentes sociais é que não se tinha conhecimento de nenhum familiar do menino, não aparecia ninguém para obter informações ou para visitá-lo.
Em casos assim, a política de assistência ao paciente geralmente previa que esperasse o doente se recuperar para repassar informações sobre sua família, de modo que o hospital pudesse tomar as devidas providências quando de sua liberação.
O problema é que o menino quando pôde falar, já no segundo dia de internamento, disse apenas o que parecia muito vago e impreciso, talvez ainda porque estivesse dizendo coisa com coisa, como consequencia de sua dificuldade de raciocinar e se expressar.
A verdade é que disse que a família se resumia à sua mãe, que não existiam outros familiares, que não tinha nenhum outro parente nem nada, e que sua mãe era pai, mãe e irmã e tudo. E que não eram dali daquela cidade, mas sim de um lugar muito distante e que sua mãe podia ser encontrada na rodoviária, pois estava esperando ele para viajarem para um lugar mais longe ainda.
Na manhã do terceiro dia, quando já estava se sentindo plenamente recuperado e sem aquelas dores pela cabeça e pelo corpo, ouviu de olhos fechados o seguinte diálogo travado entre duas enfermeiras:
"Mais tarde, assim que o médico o examine, esse menino vai ter alta. O problema é que não apareceu ainda nenhum familiar dele, ninguém sabe onde ele mora, quem é, nem quem são os seus pais. E em casos assim...". Foi prontamente interrompida pela outra, que disse:
"Já conheço essa história de em casos assim. Em casos assim vão maltratar o menino, vão jogá-lo no esquecimento e dizer que tudo é passageiro, que ele ficará praticamente abandonado só até encontrarem a família. E digo abandonado porque o abrigo para onde ele vai ser levado não passa de uma pocilga, com maus tratos das crianças e tudo que de ruim pode acontecer".
"Mas não tem jeito. Aqui ele não pode ficar, não aparece ninguém e ele não tem aonde ir. Ser levado para um abrigo será o único jeito de não deixá-lo simplesmente na porta do hospital e dizer que agora se vire", completou a outra.
Ouvindo tudo caladinho, quietinho como se estivesse dormindo, Zezinho ficou imaginando sobre o que elas tinham conversado e sobre para onde seria levado. E logo lhe veio à mente a ideia de fugir dali e ir imediatamente até a rodoviária procurar sua mãe. Uns três dias já haviam se passado, mas tinha certeza que ela ainda estava por lá esperando ele.
Desceu da cama, ajeitou sobre ela alguns travesseiros e depois colocou uma coberta por cima. Quem olhasse diria que alguém estava deitado totalmente coberto. Quando descobrissem já estaria longe. Assim, saindo cuidadosamente, se escondendo pelos cantos, foi alcançando a parte dos fundos do hospital até chegar próximo a um muro bem alto.
Escondeu-se debaixo de uma pequena cobertura e ficou observando as construções próximas ao muro, de modo que escalando uma pudesse chegar à outra e assim por diante. E não demorou muito já estava descendo por um pé de goiabeira num quintal do outro lado do muro.
Estava com sorte, pensou. O quintal totalmente em silêncio, a porta dos fundos da casa trancada, algumas roupas de gente na sua idade no varal e até uma mangueira para tomar banho. Não pensou duas vezes, e não demorou muito já estava tomado banho e vestido numa bermuda e camisa de malha. Só faltou um espelho, ficou imaginando sorridente.
Já estava caminhando cuidadosamente pelos cantos da rua quando avistou um jornal espalhando suas folhas pelo chão. Curioso como sempre foi, abaixou e trouxe diante dos olhos uma página que lhe despertou imensa curiosidade. Havia uma foto de uma mulher estampada na página e não teve dúvida: aquela era sua mãe. Mas o que o retrato dela estava fazendo ali?
Então, com a maior dificuldade do mundo, juntando letra com letra, e para seu espanto, conseguiu ler o que estava escrito: "Mulher morre no terminal rodoviário".
Não podia ser, pois sua mãe estava vivinha lhe esperando na rodoviária. Mas se aquilo fosse verdade então ela havia morrido. E o que fazer agora?
continua...
Poeta e cronista
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Rangel Alves da Costa*
O que causava imensa preocupação aos médicos, enfermeiros e assistentes sociais é que não se tinha conhecimento de nenhum familiar do menino, não aparecia ninguém para obter informações ou para visitá-lo.
Em casos assim, a política de assistência ao paciente geralmente previa que esperasse o doente se recuperar para repassar informações sobre sua família, de modo que o hospital pudesse tomar as devidas providências quando de sua liberação.
O problema é que o menino quando pôde falar, já no segundo dia de internamento, disse apenas o que parecia muito vago e impreciso, talvez ainda porque estivesse dizendo coisa com coisa, como consequencia de sua dificuldade de raciocinar e se expressar.
A verdade é que disse que a família se resumia à sua mãe, que não existiam outros familiares, que não tinha nenhum outro parente nem nada, e que sua mãe era pai, mãe e irmã e tudo. E que não eram dali daquela cidade, mas sim de um lugar muito distante e que sua mãe podia ser encontrada na rodoviária, pois estava esperando ele para viajarem para um lugar mais longe ainda.
Na manhã do terceiro dia, quando já estava se sentindo plenamente recuperado e sem aquelas dores pela cabeça e pelo corpo, ouviu de olhos fechados o seguinte diálogo travado entre duas enfermeiras:
"Mais tarde, assim que o médico o examine, esse menino vai ter alta. O problema é que não apareceu ainda nenhum familiar dele, ninguém sabe onde ele mora, quem é, nem quem são os seus pais. E em casos assim...". Foi prontamente interrompida pela outra, que disse:
"Já conheço essa história de em casos assim. Em casos assim vão maltratar o menino, vão jogá-lo no esquecimento e dizer que tudo é passageiro, que ele ficará praticamente abandonado só até encontrarem a família. E digo abandonado porque o abrigo para onde ele vai ser levado não passa de uma pocilga, com maus tratos das crianças e tudo que de ruim pode acontecer".
"Mas não tem jeito. Aqui ele não pode ficar, não aparece ninguém e ele não tem aonde ir. Ser levado para um abrigo será o único jeito de não deixá-lo simplesmente na porta do hospital e dizer que agora se vire", completou a outra.
Ouvindo tudo caladinho, quietinho como se estivesse dormindo, Zezinho ficou imaginando sobre o que elas tinham conversado e sobre para onde seria levado. E logo lhe veio à mente a ideia de fugir dali e ir imediatamente até a rodoviária procurar sua mãe. Uns três dias já haviam se passado, mas tinha certeza que ela ainda estava por lá esperando ele.
Desceu da cama, ajeitou sobre ela alguns travesseiros e depois colocou uma coberta por cima. Quem olhasse diria que alguém estava deitado totalmente coberto. Quando descobrissem já estaria longe. Assim, saindo cuidadosamente, se escondendo pelos cantos, foi alcançando a parte dos fundos do hospital até chegar próximo a um muro bem alto.
Escondeu-se debaixo de uma pequena cobertura e ficou observando as construções próximas ao muro, de modo que escalando uma pudesse chegar à outra e assim por diante. E não demorou muito já estava descendo por um pé de goiabeira num quintal do outro lado do muro.
Estava com sorte, pensou. O quintal totalmente em silêncio, a porta dos fundos da casa trancada, algumas roupas de gente na sua idade no varal e até uma mangueira para tomar banho. Não pensou duas vezes, e não demorou muito já estava tomado banho e vestido numa bermuda e camisa de malha. Só faltou um espelho, ficou imaginando sorridente.
Já estava caminhando cuidadosamente pelos cantos da rua quando avistou um jornal espalhando suas folhas pelo chão. Curioso como sempre foi, abaixou e trouxe diante dos olhos uma página que lhe despertou imensa curiosidade. Havia uma foto de uma mulher estampada na página e não teve dúvida: aquela era sua mãe. Mas o que o retrato dela estava fazendo ali?
Então, com a maior dificuldade do mundo, juntando letra com letra, e para seu espanto, conseguiu ler o que estava escrito: "Mulher morre no terminal rodoviário".
Não podia ser, pois sua mãe estava vivinha lhe esperando na rodoviária. Mas se aquilo fosse verdade então ela havia morrido. E o que fazer agora?
continua...
Poeta e cronista
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quarta-feira, 27 de outubro de 2010
REFLEXÕES SOBRE O ESPELHO (Crônica)
REFLEXÕES SOBRE O ESPELHO
Rangel Alves da Costa*
Havia manhã, mas não havia espelho nem quem se olhasse no espelho. Logicamente que ele ainda estava lá pendurado na parede, com sua moldura antiga e bonita, quieto e triste, parecendo passagem para o mundo de ilusão, querendo mostrar firmeza, porém sabendo que não havia mais razão para existir.
Ora, não há espelho que exista ou resista se não há ninguém para refletir, se não há mais ninguém que vá lhe perguntar como está o rosto, o olhar, o cabelo. O espelho nasceu para dialogar, para suportar o outro, para mentir, para fingir formosura onde não há nenhum sinal de boniteza. E se nada existe mais também não haverá mais razão para que o espelho continue existindo.
Ao amanhecer, sem ter quem corra para se enxergar, para contar as rugas, para se espantar com o próprio reflexo, para implorar aos céus que ainda haja um sinal de adolescência ou de mocidade, o valor que tem um espelho é o mesmo que uma fotografia totalmente desbotada, que uma tinta se desprendendo da parede, que uma casa de aranha que se forma num canto qualquer.
Espelho sem vida, sem espelhar ninguém é igual ao teto da Capela Sistina sem o monumental afresco de Michelangelo. Há quem diga que o garante a sobrevivência do espelho não é aquele que vai nele se olhar, mas a vida refletida que se fixa nele e vai vivendo até morrer se outra face não chegue para garantir a continuidade.
Sem os passos daqueles que vivem tomando elixir da eterna juventude não há espelho que encontre motivo para continuar vivendo, esbanjando egoísmo e vaidade, glamour e falsidade. Todo espelho vive achando que as pessoas dependem dele para terem um dia feliz, que tudo na vida depende de sua sinalize que alguém está com um rosto atraente ou não, que ele diga a todo custo se a patinha feia está um cisne encantador.
O pior é que usando de armas pouco honestas e confiáveis, o espelho realmente passa a ter o poder de vida e de morte sobre as pessoas. Contam que na França, no reinado de Luís XIV, uma depravada dama da corte exigiu que o seu traído esposo encomendasse milhares de espelhos e os estocasse nos porões. Todas as vezes que ela achava que determinado espelho não a refletia sempre bela e atraente, mandava destruí-lo na hora. O problema é que não tinha estoque que desse jeito.
Um dia foi adquirido mais um carregamento de espelhos e junto com ele foi um espelho diferente, já experiente de situações tais e pronto para enfrentar qualquer monstro que pretendesse se ver como bela princesa. E a dama foi quebrando um a um dos espelhos até que só restou o danado daquele espelho.
Não pode ser, linda e encantadora como sou, e estes malditos espelhos me deixando torta, envelhecida, cheia de rugas, com um olho maior que o outro, a boca murcha e a pele enrugada, dizia consigo mesma, enquanto mandava quebrar o espelho e colocar outro no lugar. E de repente ela se olhou e se achou a mais linda, a mais encantadora, a mais sexy e atraente das mulheres.
Eu sabia que um dia um espelho haveria de reconhecer-me como realmente sou, disse com exuberância e felicidade. E se olhou mais uma, duas, mil vezes, e a cada novo olhar era como se algo mais belo fosse surgindo na sua feição. Procurou onde haviam adquirido aquele sábio espelho e ordenou que outros iguaizinhos fossem adquiridos urgentemente e espalhados pelo castelo inteiro.
Dito e feito. Só que nenhum dos outros espelhos refletia a princesa tão bela como aquele espelho e então esta, depois de passar mais de três horas se olhando e se encantando, perguntou-lhe porque os outros não conseguiam mostrá-la como verdadeiramente era, como a mulher mais linda do reino.
E então o espelho, que sempre ficava calado e morrendo de rir, não suportou e falou: Exatamente porque reflito o que você não é. Enquanto você mente para si mesma, eu minto para mim e para você. Mas não sou bobo refletir sua feiúra com minha própria luz, pois cada vez que você se olha eu lhe reflito com a luz dos outros espelhos que você quebrou. Somente assim você sobrevive da mentira e eu mentindo porque estou lhe espelhando. Nada diferente da vida...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Rangel Alves da Costa*
Havia manhã, mas não havia espelho nem quem se olhasse no espelho. Logicamente que ele ainda estava lá pendurado na parede, com sua moldura antiga e bonita, quieto e triste, parecendo passagem para o mundo de ilusão, querendo mostrar firmeza, porém sabendo que não havia mais razão para existir.
Ora, não há espelho que exista ou resista se não há ninguém para refletir, se não há mais ninguém que vá lhe perguntar como está o rosto, o olhar, o cabelo. O espelho nasceu para dialogar, para suportar o outro, para mentir, para fingir formosura onde não há nenhum sinal de boniteza. E se nada existe mais também não haverá mais razão para que o espelho continue existindo.
Ao amanhecer, sem ter quem corra para se enxergar, para contar as rugas, para se espantar com o próprio reflexo, para implorar aos céus que ainda haja um sinal de adolescência ou de mocidade, o valor que tem um espelho é o mesmo que uma fotografia totalmente desbotada, que uma tinta se desprendendo da parede, que uma casa de aranha que se forma num canto qualquer.
Espelho sem vida, sem espelhar ninguém é igual ao teto da Capela Sistina sem o monumental afresco de Michelangelo. Há quem diga que o garante a sobrevivência do espelho não é aquele que vai nele se olhar, mas a vida refletida que se fixa nele e vai vivendo até morrer se outra face não chegue para garantir a continuidade.
Sem os passos daqueles que vivem tomando elixir da eterna juventude não há espelho que encontre motivo para continuar vivendo, esbanjando egoísmo e vaidade, glamour e falsidade. Todo espelho vive achando que as pessoas dependem dele para terem um dia feliz, que tudo na vida depende de sua sinalize que alguém está com um rosto atraente ou não, que ele diga a todo custo se a patinha feia está um cisne encantador.
O pior é que usando de armas pouco honestas e confiáveis, o espelho realmente passa a ter o poder de vida e de morte sobre as pessoas. Contam que na França, no reinado de Luís XIV, uma depravada dama da corte exigiu que o seu traído esposo encomendasse milhares de espelhos e os estocasse nos porões. Todas as vezes que ela achava que determinado espelho não a refletia sempre bela e atraente, mandava destruí-lo na hora. O problema é que não tinha estoque que desse jeito.
Um dia foi adquirido mais um carregamento de espelhos e junto com ele foi um espelho diferente, já experiente de situações tais e pronto para enfrentar qualquer monstro que pretendesse se ver como bela princesa. E a dama foi quebrando um a um dos espelhos até que só restou o danado daquele espelho.
Não pode ser, linda e encantadora como sou, e estes malditos espelhos me deixando torta, envelhecida, cheia de rugas, com um olho maior que o outro, a boca murcha e a pele enrugada, dizia consigo mesma, enquanto mandava quebrar o espelho e colocar outro no lugar. E de repente ela se olhou e se achou a mais linda, a mais encantadora, a mais sexy e atraente das mulheres.
Eu sabia que um dia um espelho haveria de reconhecer-me como realmente sou, disse com exuberância e felicidade. E se olhou mais uma, duas, mil vezes, e a cada novo olhar era como se algo mais belo fosse surgindo na sua feição. Procurou onde haviam adquirido aquele sábio espelho e ordenou que outros iguaizinhos fossem adquiridos urgentemente e espalhados pelo castelo inteiro.
Dito e feito. Só que nenhum dos outros espelhos refletia a princesa tão bela como aquele espelho e então esta, depois de passar mais de três horas se olhando e se encantando, perguntou-lhe porque os outros não conseguiam mostrá-la como verdadeiramente era, como a mulher mais linda do reino.
E então o espelho, que sempre ficava calado e morrendo de rir, não suportou e falou: Exatamente porque reflito o que você não é. Enquanto você mente para si mesma, eu minto para mim e para você. Mas não sou bobo refletir sua feiúra com minha própria luz, pois cada vez que você se olha eu lhe reflito com a luz dos outros espelhos que você quebrou. Somente assim você sobrevive da mentira e eu mentindo porque estou lhe espelhando. Nada diferente da vida...
Poeta e cronista
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Como você ama? (Poesia)
Como você ama?
Dois peixinhos estavam nadando
e começaram a borbulhar
"você me ama?"
"amor de amar
ou de amor do mar?"
"qual a diferença?"
"amor de amar
só se ama se não for no mar
que não é doce como namorar"
Dois passarinhos estavam voando
e começaram a conversar
"você me ama?"
"amor de voar
ou de amor pousar?"
"qual a diferença?"
"amor de voar
só se ama com liberdade de amar
e não é gaiola para aprisionar"
Duas pessoas estavam passeando
e começaram a se olhar
"você me ama?"
"amor de namorar
ou de amor brincar?"
"qual a diferença?"
"amor de namorar
só ama quem sabe amar
e não é brinquedo para se usar".
Rangel Alves da Costa
Dois peixinhos estavam nadando
e começaram a borbulhar
"você me ama?"
"amor de amar
ou de amor do mar?"
"qual a diferença?"
"amor de amar
só se ama se não for no mar
que não é doce como namorar"
Dois passarinhos estavam voando
e começaram a conversar
"você me ama?"
"amor de voar
ou de amor pousar?"
"qual a diferença?"
"amor de voar
só se ama com liberdade de amar
e não é gaiola para aprisionar"
Duas pessoas estavam passeando
e começaram a se olhar
"você me ama?"
"amor de namorar
ou de amor brincar?"
"qual a diferença?"
"amor de namorar
só ama quem sabe amar
e não é brinquedo para se usar".
Rangel Alves da Costa
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 8 (Conto)
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 8
Rangel Alves da Costa*
Assim que o ladrão arrancou-lhe violentamente o dinheiro das mãos, Zezinho saiu correndo no seu encalço e gritando: "Esse dinheiro é meu, esse dinheiro é meu, me dê de volta...".
Sem perceber, havia corrido muito e virado umas três esquinas e agora se encontrava num lugar esquisito, abandonado, com mato tomando conta de quase tudo. Não conseguia mais enxergar o ladrão à sua frente e, totalmente exausto, parou suado e entristecido.
Olhou para os lados e não viu ninguém, não conseguia enxergar um pé de pessoa, como costumava dizer. E agora, meu Deus, o que vou fazer se me levaram tudo?, se perguntou com lágrima nos olhos. Quem dera se as lágrimas pudessem esfriar a raiva e o ódio que sentia naquele momento.
Sentou no chão, colocou a cabeça por cima dos joelhos, mas não teve nem tempo de chorar em paz, de refletir sobre aquele momento de indignação e revolta. Sentiu tocarem no seu ombro e quando levantou o olhar se viu cercado por três moleques que tinham mais que o obro de sua idade.
"Aí garotão, estamos aqui pra agradecer pela bufunfa que tu emprestou a gente. Tu tava cheio da grana, hein moleque? Andou roubando também? Pode dizer onde tem um banco igual que a gente vai lá tomar emprestado. Agora levanta safado, que é pra fazer a entrega do resto da mercadoria...".
Depois de dar um chute numa das pernas do menino, puxaram-lhe pelo cabelo e o levantaram à força. E um dos três continuou falando:
"Mamãe é boazinha, hein, compra roupa de marca pra o moleque, tênis bonito, tudo chique, hein mano? Isso vai dar um bocado de trocado também. Furiba e Traquina, segurem o pivete que eu vou pelar ele todinho, vou tirar essa roupa e esse sapato e depois deixar ele só de cueca, e ainda com sorte de continuar vivendo. Segurem...".
Assim que Zezinho ouviu tais palavras, nem pensou duas vezes, pois buscou forças e saiu em disparada pelo descampado. Mas não correu muito e uma pedrada atingiu-lhe as costas, fazendo perder o equilíbrio e cair.
Só viu quando os três o alcançaram furiosos e começaram a lhe esbofetear de todas as formas, com murros, pontapés e até beliscões. Depois apagou de vez, cheio de marcas da violência na fragilidade de uma criança. Ficou ali desacordado somente de cueca, pois os marginais arrancaram-lhe tudo em segundos.
Foi o faro de um cachorro que denunciou a presença do menino ali ferido e desacordado, com o rosto virado para cima, as mãos e as pernas abertas como se estivesse morto. O animal começou a latir com mais força e mais insistência do que o costumeiro, e quando o seu dono foi até o local saber do que se tratava encontrou a lamentável cena.
Não demorou muito e uma ambulância chegou para prestar assistência. Logo no primeiro instante o socorrista percebeu que o caso era mais grave do que o descrito pelo senhor ao telefone. Não era questão de prestar os primeiros socorros ali mesmo no local, mas sim de removê-lo imediatamente para um hospital de urgência. E assim foi feito.
Já no amanhecer do dia seguinte, uma das enfermeiras em constante vigília percebeu que o menino, ainda de olhos fechados e apresentado espasmos momentâneos, começou a pronunciar palavras desconexas:
"Me dê a caneca mamãe", "O leite tá virando sangue mamãe, o leite não é branco não, é da cor de sangue mamãe", "Mamãe, me espere, não viaje agora não que eu vou também", "Mamãe, me espere que já tô indo", "Hoje vai chover porque o céu tá muito feio mamãe", "Me espere mamãe, que já tô indo...".
Coitadinho! Disse a enfermeira consigo mesma. E onde estará essa mãe que ele tanto chama?
continua...
Poeta e cronista
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Rangel Alves da Costa*
Assim que o ladrão arrancou-lhe violentamente o dinheiro das mãos, Zezinho saiu correndo no seu encalço e gritando: "Esse dinheiro é meu, esse dinheiro é meu, me dê de volta...".
Sem perceber, havia corrido muito e virado umas três esquinas e agora se encontrava num lugar esquisito, abandonado, com mato tomando conta de quase tudo. Não conseguia mais enxergar o ladrão à sua frente e, totalmente exausto, parou suado e entristecido.
Olhou para os lados e não viu ninguém, não conseguia enxergar um pé de pessoa, como costumava dizer. E agora, meu Deus, o que vou fazer se me levaram tudo?, se perguntou com lágrima nos olhos. Quem dera se as lágrimas pudessem esfriar a raiva e o ódio que sentia naquele momento.
Sentou no chão, colocou a cabeça por cima dos joelhos, mas não teve nem tempo de chorar em paz, de refletir sobre aquele momento de indignação e revolta. Sentiu tocarem no seu ombro e quando levantou o olhar se viu cercado por três moleques que tinham mais que o obro de sua idade.
"Aí garotão, estamos aqui pra agradecer pela bufunfa que tu emprestou a gente. Tu tava cheio da grana, hein moleque? Andou roubando também? Pode dizer onde tem um banco igual que a gente vai lá tomar emprestado. Agora levanta safado, que é pra fazer a entrega do resto da mercadoria...".
Depois de dar um chute numa das pernas do menino, puxaram-lhe pelo cabelo e o levantaram à força. E um dos três continuou falando:
"Mamãe é boazinha, hein, compra roupa de marca pra o moleque, tênis bonito, tudo chique, hein mano? Isso vai dar um bocado de trocado também. Furiba e Traquina, segurem o pivete que eu vou pelar ele todinho, vou tirar essa roupa e esse sapato e depois deixar ele só de cueca, e ainda com sorte de continuar vivendo. Segurem...".
Assim que Zezinho ouviu tais palavras, nem pensou duas vezes, pois buscou forças e saiu em disparada pelo descampado. Mas não correu muito e uma pedrada atingiu-lhe as costas, fazendo perder o equilíbrio e cair.
Só viu quando os três o alcançaram furiosos e começaram a lhe esbofetear de todas as formas, com murros, pontapés e até beliscões. Depois apagou de vez, cheio de marcas da violência na fragilidade de uma criança. Ficou ali desacordado somente de cueca, pois os marginais arrancaram-lhe tudo em segundos.
Foi o faro de um cachorro que denunciou a presença do menino ali ferido e desacordado, com o rosto virado para cima, as mãos e as pernas abertas como se estivesse morto. O animal começou a latir com mais força e mais insistência do que o costumeiro, e quando o seu dono foi até o local saber do que se tratava encontrou a lamentável cena.
Não demorou muito e uma ambulância chegou para prestar assistência. Logo no primeiro instante o socorrista percebeu que o caso era mais grave do que o descrito pelo senhor ao telefone. Não era questão de prestar os primeiros socorros ali mesmo no local, mas sim de removê-lo imediatamente para um hospital de urgência. E assim foi feito.
Já no amanhecer do dia seguinte, uma das enfermeiras em constante vigília percebeu que o menino, ainda de olhos fechados e apresentado espasmos momentâneos, começou a pronunciar palavras desconexas:
"Me dê a caneca mamãe", "O leite tá virando sangue mamãe, o leite não é branco não, é da cor de sangue mamãe", "Mamãe, me espere, não viaje agora não que eu vou também", "Mamãe, me espere que já tô indo", "Hoje vai chover porque o céu tá muito feio mamãe", "Me espere mamãe, que já tô indo...".
Coitadinho! Disse a enfermeira consigo mesma. E onde estará essa mãe que ele tanto chama?
continua...
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terça-feira, 26 de outubro de 2010
TE AMO ASSIM MESMO (Crônica)
TE AMO ASSIM MESMO
Rangel Alves da Costa*
A língua portuguesa tem algo de raivoso contra a gente, pois sempre que escrevo te amo, ela me repreende e diz que o correto seria amo-te. Mas pouco importa para a inveja e o ciúme da língua, pois te amo assim mesmo.
Mas não é só essa gramática que vive tentando nos separar. Ultimamente tenho percebido que uma verdadeira legião de empecilhos tenta nos ver cada vez mais distantes. E imagine você que coisa mais maluca ter aquilo que a gente confia tanto agindo como inimigo.
Pode parecer mentira, mas é verdade que tudo que você possa imaginar, tudo que há entre o céu e a terra, vive tramando contra a nossa paz, contra a nossa felicidade, contra o nosso amor. E eu disse tudo, até nós mesmo, até eu e você.
Pois é. A poesia, a música, a manhã, a tarde, o sol, a lua, a noite, o espelho, a janela, a paisagem, a brisa, a ventania, o passarinho, a tempestade, o sonho, o pesadelo, o leiteiro, o pão, o padeiro, o céu, o pensamento, a imaginação, a voz, a boca, o corpo, o outro, a gente, a distância, o horizonte, tudo.
Mas tudo, tudo isso e muito mais, nos odeia, nos quer destruir, separar, acabar de vez com nossa relação, com nosso namoro, com nosso amor. E só não consegue porque não estou nem aí para essas falsidades e te amo assim mesmo.
Ontem mesmo, sem fazer nada para que tantos inimigos me provocassem, passei por uma série de situações que enlouqueceria qualquer um que não defendesse com unhas e dentes o amor que sente. Parece que agiam conjuntamente, numa conspiração destruidora, como se uma situação dissesse a outra que mais cedo ou mais tarde ele vai ceder, vai cansar, vai entregar os pontos, vai desamar.
Acordei pensando em você e fui diretamente ao jardim olhar o seu rosto numa flor. Quando acariciei as pétalas e chamei o seu nome, o que era perfume sumiu, a flor logo murchou e da roseira desabou. Do que restou, um espinho furou meu dedo e sangrou.
Tendo a gota de sangue como símbolo da paixão, quis eternizar esse momento numa poesia que fosse a perfeita síntese do que sempre sentimos um pelo outro, num misto de encantamento e sedução, de desejo e arrebatamento, de certeza do amor demais.
Na segunda estrofe, quando já olhava seus olhos e ia beijar a boca, escrevi o seu nome para desgraça do poeta. E veio uma inesperada ventania, dessas que chegam acompanhadas de folhas e fúrias, e de repente o olhar se perdia no horizonte, o beijo se consumia pelos ares e o seu nome esvoaçava feito poeira.
E nessa manhã não pude ouvir nossa música, pois o som cismou de não aceitar o CD; quis cantar e do nada surgiu uma insuportável rouquidão; olhei no espelho para ver se estava bonito para você e eis que o espelho cai da parede bem no momento que eu disse: "Tudo em nome de Isolda".
Caiu bem em cima do meu pé descalço. Sangrando, ao invés de ir trabalhar fui procurar atendimento médico. Voltei pra casa e peguei o telefone para lhe avisar sobre o pequeno incidente. Tanto o residencial como o celular emudeceu de vez. Deixei pra ligar depois e deitei para descansar. Pensando em sonhar com você, me vem um pesadelo que me fez pular da cama.
Mas não pode ser, disse bem alto. E depois gritei: "Nada vai me impedir de pensar em você, de chamar o teu nome, pois eu te amo Isolda!". "Eu te amo Isolda, te amo Isolda!".
A casa começou a estremecer e saí correndo. Tudo caiu, tudo desabou. Mas eu continuei amando Isolda assim mesmo.
Hoje não tenho mais casa nem Isolda. Mas juro que continuo amando assim mesmo.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Rangel Alves da Costa*
A língua portuguesa tem algo de raivoso contra a gente, pois sempre que escrevo te amo, ela me repreende e diz que o correto seria amo-te. Mas pouco importa para a inveja e o ciúme da língua, pois te amo assim mesmo.
Mas não é só essa gramática que vive tentando nos separar. Ultimamente tenho percebido que uma verdadeira legião de empecilhos tenta nos ver cada vez mais distantes. E imagine você que coisa mais maluca ter aquilo que a gente confia tanto agindo como inimigo.
Pode parecer mentira, mas é verdade que tudo que você possa imaginar, tudo que há entre o céu e a terra, vive tramando contra a nossa paz, contra a nossa felicidade, contra o nosso amor. E eu disse tudo, até nós mesmo, até eu e você.
Pois é. A poesia, a música, a manhã, a tarde, o sol, a lua, a noite, o espelho, a janela, a paisagem, a brisa, a ventania, o passarinho, a tempestade, o sonho, o pesadelo, o leiteiro, o pão, o padeiro, o céu, o pensamento, a imaginação, a voz, a boca, o corpo, o outro, a gente, a distância, o horizonte, tudo.
Mas tudo, tudo isso e muito mais, nos odeia, nos quer destruir, separar, acabar de vez com nossa relação, com nosso namoro, com nosso amor. E só não consegue porque não estou nem aí para essas falsidades e te amo assim mesmo.
Ontem mesmo, sem fazer nada para que tantos inimigos me provocassem, passei por uma série de situações que enlouqueceria qualquer um que não defendesse com unhas e dentes o amor que sente. Parece que agiam conjuntamente, numa conspiração destruidora, como se uma situação dissesse a outra que mais cedo ou mais tarde ele vai ceder, vai cansar, vai entregar os pontos, vai desamar.
Acordei pensando em você e fui diretamente ao jardim olhar o seu rosto numa flor. Quando acariciei as pétalas e chamei o seu nome, o que era perfume sumiu, a flor logo murchou e da roseira desabou. Do que restou, um espinho furou meu dedo e sangrou.
Tendo a gota de sangue como símbolo da paixão, quis eternizar esse momento numa poesia que fosse a perfeita síntese do que sempre sentimos um pelo outro, num misto de encantamento e sedução, de desejo e arrebatamento, de certeza do amor demais.
Na segunda estrofe, quando já olhava seus olhos e ia beijar a boca, escrevi o seu nome para desgraça do poeta. E veio uma inesperada ventania, dessas que chegam acompanhadas de folhas e fúrias, e de repente o olhar se perdia no horizonte, o beijo se consumia pelos ares e o seu nome esvoaçava feito poeira.
E nessa manhã não pude ouvir nossa música, pois o som cismou de não aceitar o CD; quis cantar e do nada surgiu uma insuportável rouquidão; olhei no espelho para ver se estava bonito para você e eis que o espelho cai da parede bem no momento que eu disse: "Tudo em nome de Isolda".
Caiu bem em cima do meu pé descalço. Sangrando, ao invés de ir trabalhar fui procurar atendimento médico. Voltei pra casa e peguei o telefone para lhe avisar sobre o pequeno incidente. Tanto o residencial como o celular emudeceu de vez. Deixei pra ligar depois e deitei para descansar. Pensando em sonhar com você, me vem um pesadelo que me fez pular da cama.
Mas não pode ser, disse bem alto. E depois gritei: "Nada vai me impedir de pensar em você, de chamar o teu nome, pois eu te amo Isolda!". "Eu te amo Isolda, te amo Isolda!".
A casa começou a estremecer e saí correndo. Tudo caiu, tudo desabou. Mas eu continuei amando Isolda assim mesmo.
Hoje não tenho mais casa nem Isolda. Mas juro que continuo amando assim mesmo.
Poeta e cronista
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Ao meu amor de ontem (Poesia)
Ao meu amor de ontem
Havia uma janela
Havia uma flor na janela
Havia um olhar
mirando a janela
Havia uma vidraça
Havia uma cortina
Havia solidão na janela
Não havia ela na janela
Até que passarinho passou
e parou pra cantar na janela
a melodia mais bela
que já se ouviu na janela
e um perfume surgiu
e ela apareceu na janela
linda feito Cinderela
e não vi mais vento soprar
não ouvi canto nem passarinho
apenas um jardim na janela
mil flores espalhada nela
era ela...
era ela...
Rangel Alves da Costa
Havia uma janela
Havia uma flor na janela
Havia um olhar
mirando a janela
Havia uma vidraça
Havia uma cortina
Havia solidão na janela
Não havia ela na janela
Até que passarinho passou
e parou pra cantar na janela
a melodia mais bela
que já se ouviu na janela
e um perfume surgiu
e ela apareceu na janela
linda feito Cinderela
e não vi mais vento soprar
não ouvi canto nem passarinho
apenas um jardim na janela
mil flores espalhada nela
era ela...
era ela...
Rangel Alves da Costa
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 7 (Conto)
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 7
Rangel Alves da Costa*
Mexendo numa coisinha e noutra, revirando tudo, arrancando as ervas daninhas, cortando galhos e fazendo podagem, Zezinho foi organizando novamente aquilo que havia sido um jardim. Depois disso ainda mexeu na terra antiga e colocou outra nova, adubou e fez algumas replantações. Molhou tudo bem molhado e deu o trabalho por encerrado.
Isso já era pra mais de quatro horas da tarde, depois de ter almoçado na companhia da senhora e ter de falar muito mais do que estava acostumado. Será que ela não tá vendo que isso é conversa pra gente grande, pra adulto? Indagava-se de vez em quando.
Chamou a velha senhora ao jardim refeito e deu algumas explicações de como deveria proceder dali em diante, sob pena de que a maravilha que ela tanta queria se transformasse novamente numa lixeira.
E disse brincando: "Só em ter limpado o jardim já fez com que o Brigadeiro viesse dá uma olhadinha. Ele tava por aí passeando entre os canteiros...". E a velha senhora pareceu acreditar, pois imediatamente falou espantada e com os olhos cheios de lágrimas:
"Você viu ele mesmo? Falou em com ele? Como ele estava? Ele gostava de passear por aqui mesmo ao entardecer, e sempre cantando aquela velha canção napolitana. Sempre cantava e cantava, mas nunca conversava comigo, não sei porque. Mas ele disse alguma coisa a você?".
Aí não teve jeito mesmo e teve que continuar na mentira: "Primeiro ele cantou, mas era outra música que falava em saudade. Depois veio pra perto de mim e começou a falar...". "Me conte, me conte!", pediu a senhora apertando os ombros de Zezinho, em total desespero:
"Bem, ele disse que a senhora não deixe de cuidar do jardim, tenha cuidado com os filhos e netos interesseiros e que plante aqui também umas plantinhas de fazer remédio, daquelas que o chá cura qualquer coisa, que é pra evitar que a senhora vá pra onde ele tá assim ainda tão cheia de vida...".
"E o que ele disse mais, diga, diga!", insistia agora aos prantos de lágrimas corridas.
"Deixe-me lembrar. Ah!, disse mais que a senhora mais tarde fique passeando por aqui que ele vai aparecer novamente. E disse que dessa vez não vai só cantar não, vai também conversar e dizer uma coisa que gostaria de dizer sempre..."
"Diga meu filho, diga!". E balançava o menino como se quisesse tirar a palavra à força.
"Ele disse que me solte que eu digo depois o que ele disse...". A velha se conteve um pouco e o menino continuou: "Ele disse que te ama muito e vai continuar te amando para sempre e cada vez mais".
Mas pra que Zezinho foi dizer isso? A velha abraçou o menino e chorou tanto que este pensava que já estava tomando banho. Pacientemente esperou ela se recompor e depois pediu para tomar um banho de verdade.
Ela mostrou onde era o banheiro e disse que havia providenciado uma roupa nova pra ele vestir. E Zezinho não sabe o momento que ela havia saído pra comprar aquilo tudo, mas a verdade é que ali estava uma bermuda, uma camisa, uma cueca e até um sapato, tudo novinho e bonito demais, cheirando a leite, como ele gostava de dizer.
Depois do banho e se vestir todo, se olhou no espelho e disse a si mesmo que sua mãe iria chorar de alegria, iria dizer que ele estava lindo e viria com um beijo carinhoso. Mais tarde ela poderia fazer isso, assim que a encontrasse na rodoviária, pensou. E estava bonito mesmo, concluiu por conta própria.
"Tome meu filho, eis aqui o seu pagamento, mas não pelo trabalho realizado no jardim, mas sim pelo dia maravilhoso que me deste. Se quiser pode voltar amanhã...". Disse a senhora, entregando um pequeno envelope nas mãos dele, numa profunda feição de agradecimento.
"Mas não posso voltar mais aqui não porque minha mãe está me esperando pra gente viajar. E tenho que ir logo pra rodoviária senão ela fica preocupada comigo. Até e muito obrigado por tudo".
Estavam no jardim, e quando ele deu uma última olhada pelos canteiros, eis que avistou um homem acenando um adeus com cara de felicidade. Só pode ser o Brigadeiro, pensou. E falou baixinho no ouvido da velha senhora: "Olhe ali, o seu Brigadeiro está ali esperando para conversar. Vá lá que hoje ele não vai só cantar, vai também dizer te amo".
E saiu sem olhar pra trás.
Encontrou o ponto de ônibus indicado pelo dono da padaria e enquanto esperava o transporte lembrou do envelope com o pagamento que estava no seu bolso. Foi olhar para ver quanto havia recebido e os olhos ficaram com intenso brilho repentinamente.
Na inocência, foi contar o dinheiro ali mesmo. E não demorou nem um minuto uma mão puxou com violência tudo o que tinha.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Mexendo numa coisinha e noutra, revirando tudo, arrancando as ervas daninhas, cortando galhos e fazendo podagem, Zezinho foi organizando novamente aquilo que havia sido um jardim. Depois disso ainda mexeu na terra antiga e colocou outra nova, adubou e fez algumas replantações. Molhou tudo bem molhado e deu o trabalho por encerrado.
Isso já era pra mais de quatro horas da tarde, depois de ter almoçado na companhia da senhora e ter de falar muito mais do que estava acostumado. Será que ela não tá vendo que isso é conversa pra gente grande, pra adulto? Indagava-se de vez em quando.
Chamou a velha senhora ao jardim refeito e deu algumas explicações de como deveria proceder dali em diante, sob pena de que a maravilha que ela tanta queria se transformasse novamente numa lixeira.
E disse brincando: "Só em ter limpado o jardim já fez com que o Brigadeiro viesse dá uma olhadinha. Ele tava por aí passeando entre os canteiros...". E a velha senhora pareceu acreditar, pois imediatamente falou espantada e com os olhos cheios de lágrimas:
"Você viu ele mesmo? Falou em com ele? Como ele estava? Ele gostava de passear por aqui mesmo ao entardecer, e sempre cantando aquela velha canção napolitana. Sempre cantava e cantava, mas nunca conversava comigo, não sei porque. Mas ele disse alguma coisa a você?".
Aí não teve jeito mesmo e teve que continuar na mentira: "Primeiro ele cantou, mas era outra música que falava em saudade. Depois veio pra perto de mim e começou a falar...". "Me conte, me conte!", pediu a senhora apertando os ombros de Zezinho, em total desespero:
"Bem, ele disse que a senhora não deixe de cuidar do jardim, tenha cuidado com os filhos e netos interesseiros e que plante aqui também umas plantinhas de fazer remédio, daquelas que o chá cura qualquer coisa, que é pra evitar que a senhora vá pra onde ele tá assim ainda tão cheia de vida...".
"E o que ele disse mais, diga, diga!", insistia agora aos prantos de lágrimas corridas.
"Deixe-me lembrar. Ah!, disse mais que a senhora mais tarde fique passeando por aqui que ele vai aparecer novamente. E disse que dessa vez não vai só cantar não, vai também conversar e dizer uma coisa que gostaria de dizer sempre..."
"Diga meu filho, diga!". E balançava o menino como se quisesse tirar a palavra à força.
"Ele disse que me solte que eu digo depois o que ele disse...". A velha se conteve um pouco e o menino continuou: "Ele disse que te ama muito e vai continuar te amando para sempre e cada vez mais".
Mas pra que Zezinho foi dizer isso? A velha abraçou o menino e chorou tanto que este pensava que já estava tomando banho. Pacientemente esperou ela se recompor e depois pediu para tomar um banho de verdade.
Ela mostrou onde era o banheiro e disse que havia providenciado uma roupa nova pra ele vestir. E Zezinho não sabe o momento que ela havia saído pra comprar aquilo tudo, mas a verdade é que ali estava uma bermuda, uma camisa, uma cueca e até um sapato, tudo novinho e bonito demais, cheirando a leite, como ele gostava de dizer.
Depois do banho e se vestir todo, se olhou no espelho e disse a si mesmo que sua mãe iria chorar de alegria, iria dizer que ele estava lindo e viria com um beijo carinhoso. Mais tarde ela poderia fazer isso, assim que a encontrasse na rodoviária, pensou. E estava bonito mesmo, concluiu por conta própria.
"Tome meu filho, eis aqui o seu pagamento, mas não pelo trabalho realizado no jardim, mas sim pelo dia maravilhoso que me deste. Se quiser pode voltar amanhã...". Disse a senhora, entregando um pequeno envelope nas mãos dele, numa profunda feição de agradecimento.
"Mas não posso voltar mais aqui não porque minha mãe está me esperando pra gente viajar. E tenho que ir logo pra rodoviária senão ela fica preocupada comigo. Até e muito obrigado por tudo".
Estavam no jardim, e quando ele deu uma última olhada pelos canteiros, eis que avistou um homem acenando um adeus com cara de felicidade. Só pode ser o Brigadeiro, pensou. E falou baixinho no ouvido da velha senhora: "Olhe ali, o seu Brigadeiro está ali esperando para conversar. Vá lá que hoje ele não vai só cantar, vai também dizer te amo".
E saiu sem olhar pra trás.
Encontrou o ponto de ônibus indicado pelo dono da padaria e enquanto esperava o transporte lembrou do envelope com o pagamento que estava no seu bolso. Foi olhar para ver quanto havia recebido e os olhos ficaram com intenso brilho repentinamente.
Na inocência, foi contar o dinheiro ali mesmo. E não demorou nem um minuto uma mão puxou com violência tudo o que tinha.
continua...
Poeta e cronista
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segunda-feira, 25 de outubro de 2010
CÓDIGOS DA VIDA (Crônica)
CÓDIGOS DA VIDA
Rangel Alves da Costa*
Nem todos percebem e nem é fácil perceber, mas todas as ações humanas obedecem a códigos para serem justificadas.
Neste sentido, códigos são leis que regem a existência humana; são normas de conduta que as pessoas consideram como válidas nas suas ações; são formas de representar seu conhecimento de mundo e de manifestar-se perante os fenômenos.
Códigos são ainda conjuntos de preceitos e normas de comportamento; são sinais que delimitam e caracterizam o pensar e o fazer de um povo. Daí ser correta a afirmação de que o principal código da vida é a existência. Contudo, como esse existir realmente se manifesta nas pessoas?
Todos pregam que a existência do ser humano deve ter por base alguns preceitos básicos, que qualificam e dignificam as pessoas. Estes seriam, dentre outros, a dignidade, a honra, a moral, a ética, a solidariedade e o respeito e amor ao próximo.
Seria essencial que tais códigos estivessem sempre presentes na essência do indivíduo, no seu contexto mais íntimo, e que pudessem ser expressados perante as mais diversas situações da vida. Contudo, logicamente que o elemento característico da imperfeição impede que aqueles preceitos básicos tenham a mesma visibilidade em cada um.
Muitos devem se contentar ao menos em conhecê-los e buscar manifestá-los como podem; alguns se esforçam ao longo da vida para não se desviarem completamente das boas condutas; e outros sabem que vivem e procuram continuar vivendo à margem de qualquer daqueles preceitos.
Buscar a perfeição no homem que vive na sociedade imperfeita seria utopia e sonho. Mas é preciso saber que até o mínimo existencial não prescinde da observância de alguns daqueles preceitos. Ora, como a própria expressão deixa claro, o ser é humano, e não animal ou bestial.
Enquanto ser que é humano e pretende que o pó dos tempos não deixe marcas enegrecidas pela sua passagem terrena, urge que cada um saiba se tem agido em consonância com os tais e imprescindíveis códigos. É preciso que cada um olhe no espelho de sua consciência e reflita se ainda lembra dos conceitos de dignidade, honra, moral, ética, a solidariedade e o respeito e amor ao próximo.
Sobre a dignidade já disse o filósofo Immanuel Kant que o homem é um fim em si mesmo e, por isso, tem valor absoluto, não podendo, por conseguinte, ser usado como instrumento para algo, e, justamente por isso tem dignidade, é pessoa. Assim a dignidade é a característica do indivíduo que o define como honesto, que age com retidão, honradez e respeito a si próprio e que, por isso mesmo, não se deixará violar nos seus direitos enquanto pessoa humana.
Quando o indivíduo busca verem preservados e incólumes seus gestos de seriedade, de respeito, honestidade e integridade, diz-se que este é honrado. E tem honra porque a sociedade faminta para denegrir e macular a imagem das pessoas, muitas vezes não consegue penetrar naqueles valores intrinsecamente existentes.
A moral, enquanto consciência individual e não coletiva, pressupõe o indivíduo que sabe distinguir o bem do mal, o certo do errado, mas principalmente que não aceita inverter essa realidade, vivendo sempre a partir de condutas que são respeitadas pelos outros e que valorizam e dignificam socialmente.
A ética deve ser vista como a forma que o indivíduo se comporta no meio social, refletindo nos seus gestos e atitudes enquanto pessoa ou profissional, não deixando que suas ações deturpem sua imagem nem provoquem prejuízos aos outros. Age com ética, por exemplo, aquele que sabe dizer não quando todos querem ouvir sim a todo custo.
A solidariedade consiste no sentimento bom que é criado intimamente por poder ajudar o próximo, servi-lo nas suas necessidades; compartilhar de suas alegrias, angústias e preocupações. Os interesses e as ações deixam de ser meramente pessoais, egoístas e mesquinhas, para se tornarem meios de compartilhamento.
Por sua vez, o respeito e amor ao próximo, mais do que códigos humanos, são expressões que devem ser consideradas por todos aqueles que seguem os mandamentos divinos: "Amai ao próximo como a ti mesmo".
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Nem todos percebem e nem é fácil perceber, mas todas as ações humanas obedecem a códigos para serem justificadas.
Neste sentido, códigos são leis que regem a existência humana; são normas de conduta que as pessoas consideram como válidas nas suas ações; são formas de representar seu conhecimento de mundo e de manifestar-se perante os fenômenos.
Códigos são ainda conjuntos de preceitos e normas de comportamento; são sinais que delimitam e caracterizam o pensar e o fazer de um povo. Daí ser correta a afirmação de que o principal código da vida é a existência. Contudo, como esse existir realmente se manifesta nas pessoas?
Todos pregam que a existência do ser humano deve ter por base alguns preceitos básicos, que qualificam e dignificam as pessoas. Estes seriam, dentre outros, a dignidade, a honra, a moral, a ética, a solidariedade e o respeito e amor ao próximo.
Seria essencial que tais códigos estivessem sempre presentes na essência do indivíduo, no seu contexto mais íntimo, e que pudessem ser expressados perante as mais diversas situações da vida. Contudo, logicamente que o elemento característico da imperfeição impede que aqueles preceitos básicos tenham a mesma visibilidade em cada um.
Muitos devem se contentar ao menos em conhecê-los e buscar manifestá-los como podem; alguns se esforçam ao longo da vida para não se desviarem completamente das boas condutas; e outros sabem que vivem e procuram continuar vivendo à margem de qualquer daqueles preceitos.
Buscar a perfeição no homem que vive na sociedade imperfeita seria utopia e sonho. Mas é preciso saber que até o mínimo existencial não prescinde da observância de alguns daqueles preceitos. Ora, como a própria expressão deixa claro, o ser é humano, e não animal ou bestial.
Enquanto ser que é humano e pretende que o pó dos tempos não deixe marcas enegrecidas pela sua passagem terrena, urge que cada um saiba se tem agido em consonância com os tais e imprescindíveis códigos. É preciso que cada um olhe no espelho de sua consciência e reflita se ainda lembra dos conceitos de dignidade, honra, moral, ética, a solidariedade e o respeito e amor ao próximo.
Sobre a dignidade já disse o filósofo Immanuel Kant que o homem é um fim em si mesmo e, por isso, tem valor absoluto, não podendo, por conseguinte, ser usado como instrumento para algo, e, justamente por isso tem dignidade, é pessoa. Assim a dignidade é a característica do indivíduo que o define como honesto, que age com retidão, honradez e respeito a si próprio e que, por isso mesmo, não se deixará violar nos seus direitos enquanto pessoa humana.
Quando o indivíduo busca verem preservados e incólumes seus gestos de seriedade, de respeito, honestidade e integridade, diz-se que este é honrado. E tem honra porque a sociedade faminta para denegrir e macular a imagem das pessoas, muitas vezes não consegue penetrar naqueles valores intrinsecamente existentes.
A moral, enquanto consciência individual e não coletiva, pressupõe o indivíduo que sabe distinguir o bem do mal, o certo do errado, mas principalmente que não aceita inverter essa realidade, vivendo sempre a partir de condutas que são respeitadas pelos outros e que valorizam e dignificam socialmente.
A ética deve ser vista como a forma que o indivíduo se comporta no meio social, refletindo nos seus gestos e atitudes enquanto pessoa ou profissional, não deixando que suas ações deturpem sua imagem nem provoquem prejuízos aos outros. Age com ética, por exemplo, aquele que sabe dizer não quando todos querem ouvir sim a todo custo.
A solidariedade consiste no sentimento bom que é criado intimamente por poder ajudar o próximo, servi-lo nas suas necessidades; compartilhar de suas alegrias, angústias e preocupações. Os interesses e as ações deixam de ser meramente pessoais, egoístas e mesquinhas, para se tornarem meios de compartilhamento.
Por sua vez, o respeito e amor ao próximo, mais do que códigos humanos, são expressões que devem ser consideradas por todos aqueles que seguem os mandamentos divinos: "Amai ao próximo como a ti mesmo".
Poeta e cronista
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Poucas palavras (Poesia)
Poucas palavras
Tentei
falei
gritei
depois
calei
não sei
mentir
não hei
ferir
não sei
só sei
o que
farei
amar
isso direi
e farei
se errei
errei
mas amei
e amarei
e isso
direi
eu sei.
Rangel Alves da Costa
Tentei
falei
gritei
depois
calei
não sei
mentir
não hei
ferir
não sei
só sei
o que
farei
amar
isso direi
e farei
se errei
errei
mas amei
e amarei
e isso
direi
eu sei.
Rangel Alves da Costa
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 6 (Conto)
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 6
Rangel Alves da Costa*
A senhora, já bastante idosa, com roupas simples e gestos educados, conduziu Zezinho para uma verdadeira mansão. Quando, ainda se aproximando, informou qual era a casa que morava, o menino ficou espantado.
"Me desculpe perguntar, mas a senhora mora num muro senhora?". E a velha sorriu, achando engraçada a pergunta do menino. "É isso mesmo, meu filho, infelizmente temos que morar atrás de muros como estes, sob pena de que entrem na nossa casa e levem ou destruam tudo", respondeu a senhora.
O jardim da velha senhora era grandioso em tudo, mas naquele momento principalmente no abandono, na feiúra, na tristeza. Aos olhos de Zezinho logo veio a lembrança do sertão esturricado pelas estiagens, com plantas morrendo e folhas espalhadas pelo chão.
"Mas dona, do jeito que está isso aqui nem chuva de três dias seguidos vai trazer o verde de volta. Nem bicho ia gostar de pastar por aqui, pois veja só isso que judiação, tudo derrubado, tudo destruído, tudo se acabando...", dizia o menino, andando de um lado para outro, levantando caqueiros e ajeitando galhos pendidos.
E a senhora, que resolveu sentar num dos muitos banquinhos, levantou o olhar em direção às nuvens e começou a falar, toda cheia de melancolia e tristeza:
"Quando o Brigadeiro era vivo tudo era diferente meu filho, tudo era bonito e conservado, tudo era verdejante e florido. Esse jardim era famoso pelo perfume de suas flores, pelos peixinhos que viviam nadando naquele pequeno lago e na quantidade e qualidade de plantas de todos os tipos, desde as nativas às mais exóticas. Mas depois que o Brigadeiro foi chamando dessa vida, aqui mesmo num entardecer desse jardim, enquanto fazia um buquê para mim e cantarolava uma velha canção napolitana, nada mais foi como antes...".
E Zezinho percebeu que a senhora já se deixava molhar pelas lágrimas de saudade. E continuou a entristecida mulher:
"... Depois que ele se foi fiquei praticamente sozinha e abandonada. Tenho muitos filhos e muitos netos, mas é quase como se não existissem para mim, pois vivo esquecida por eles. Só aparecem aqui quando precisam de dinheiro, mas nunca, nem uma vez sequer, perguntaram como eu estava me sentindo, se estou precisando de alguma coisa, se tenho mais doença do que saúde, se tenho vontade de passear ou se gostaria de ter empregados aqui me ajudando em tudo. Mas não, pois o que fazem é buzinar fora daquele portão e pronto, e o resto nem querem saber de nada. Por essas e outras é que vivo cada vez mais entristecida e me sentindo abandonada e essas coisas ruins da vida vão fazendo com que eu deixe de cuidar das coisas que eu mais gosto, como este jardim que era tão maravilhoso e hoje está assim tão desprezado. Mas veja o que pode fazer meu filho, ao menos varrendo um pouco, ajeitando essas plantas que estão ao deus-dará, capinando um pouquinho e depois jogando água na torneira por toda a sua extensão, tá certo? Faça o que puder que será bem recompensado, tá certo?".
E então Zezinho passou a usar sua experiência de menino sertanejo para começar a dizer sobre o que achava daquilo tudo, do jardim e das outras coisas que ela tinha falado:
"Sobre esse negócio de família que a senhora falou aí eu não entendo nada não, mas pelo que a senhora disse isso não é nem família. A senhora só vale alguma coisa pra eles pelo que dá, só presta pelo que tem, e não ache estranho não se já não tiverem pensado na senhora bater as botas para caírem em cima do que a senhora deixar igualzinho a gavião em cima de carniça...".
Ouvia-se agora o choro mais alto da mulher, sentindo as palavras realistas do menino.
"Não é diferente não. Só gostam do dinheiro, só chegam aqui para pedir isso ou aquilo. Quando a senhora morrer e eles se acabarem por eles mesmos, brigando feito inimigos pelo que a senhora deixar, depois que tudo se acabar aí é que a senhora vai ser esquecida de vez. Primeiro porque morreu e depois porque acabou o que eles gostavam, que era o seu dinheiro. Mas vamos deixar isso pra lá...".
E a mulher continuava aos prantos. E Zezinho continuou:
"Agora vamos falar sobre o jardim, que vai ser o modo que a senhora vai encontrar deles saberem que a senhora está bem vivinha e não está nem aí pra eles. E quando eles se sentirem também rejeitados, aí vão entrar na casa, vão se surpreender com a senhora mais contente e vão saber que a sua felicidade pode ser comprovada pelo jardim que tem...".
"Mas você pode fazer isso mesmo, meu filho?", perguntou. "Eu não, mas vou deixar em ponto de bala pra senhora chamar um jardineiro", respondeu Zezinho.
"E você acha que isso pode dar certo, meu filho?". "Minha senhora, se um jardim bonito não mudar a sua vida a senhora pode mudar de vida", foi o que prontamente respondeu o pequeno lavrador, de pá e enxada na mão.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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A senhora, já bastante idosa, com roupas simples e gestos educados, conduziu Zezinho para uma verdadeira mansão. Quando, ainda se aproximando, informou qual era a casa que morava, o menino ficou espantado.
"Me desculpe perguntar, mas a senhora mora num muro senhora?". E a velha sorriu, achando engraçada a pergunta do menino. "É isso mesmo, meu filho, infelizmente temos que morar atrás de muros como estes, sob pena de que entrem na nossa casa e levem ou destruam tudo", respondeu a senhora.
O jardim da velha senhora era grandioso em tudo, mas naquele momento principalmente no abandono, na feiúra, na tristeza. Aos olhos de Zezinho logo veio a lembrança do sertão esturricado pelas estiagens, com plantas morrendo e folhas espalhadas pelo chão.
"Mas dona, do jeito que está isso aqui nem chuva de três dias seguidos vai trazer o verde de volta. Nem bicho ia gostar de pastar por aqui, pois veja só isso que judiação, tudo derrubado, tudo destruído, tudo se acabando...", dizia o menino, andando de um lado para outro, levantando caqueiros e ajeitando galhos pendidos.
E a senhora, que resolveu sentar num dos muitos banquinhos, levantou o olhar em direção às nuvens e começou a falar, toda cheia de melancolia e tristeza:
"Quando o Brigadeiro era vivo tudo era diferente meu filho, tudo era bonito e conservado, tudo era verdejante e florido. Esse jardim era famoso pelo perfume de suas flores, pelos peixinhos que viviam nadando naquele pequeno lago e na quantidade e qualidade de plantas de todos os tipos, desde as nativas às mais exóticas. Mas depois que o Brigadeiro foi chamando dessa vida, aqui mesmo num entardecer desse jardim, enquanto fazia um buquê para mim e cantarolava uma velha canção napolitana, nada mais foi como antes...".
E Zezinho percebeu que a senhora já se deixava molhar pelas lágrimas de saudade. E continuou a entristecida mulher:
"... Depois que ele se foi fiquei praticamente sozinha e abandonada. Tenho muitos filhos e muitos netos, mas é quase como se não existissem para mim, pois vivo esquecida por eles. Só aparecem aqui quando precisam de dinheiro, mas nunca, nem uma vez sequer, perguntaram como eu estava me sentindo, se estou precisando de alguma coisa, se tenho mais doença do que saúde, se tenho vontade de passear ou se gostaria de ter empregados aqui me ajudando em tudo. Mas não, pois o que fazem é buzinar fora daquele portão e pronto, e o resto nem querem saber de nada. Por essas e outras é que vivo cada vez mais entristecida e me sentindo abandonada e essas coisas ruins da vida vão fazendo com que eu deixe de cuidar das coisas que eu mais gosto, como este jardim que era tão maravilhoso e hoje está assim tão desprezado. Mas veja o que pode fazer meu filho, ao menos varrendo um pouco, ajeitando essas plantas que estão ao deus-dará, capinando um pouquinho e depois jogando água na torneira por toda a sua extensão, tá certo? Faça o que puder que será bem recompensado, tá certo?".
E então Zezinho passou a usar sua experiência de menino sertanejo para começar a dizer sobre o que achava daquilo tudo, do jardim e das outras coisas que ela tinha falado:
"Sobre esse negócio de família que a senhora falou aí eu não entendo nada não, mas pelo que a senhora disse isso não é nem família. A senhora só vale alguma coisa pra eles pelo que dá, só presta pelo que tem, e não ache estranho não se já não tiverem pensado na senhora bater as botas para caírem em cima do que a senhora deixar igualzinho a gavião em cima de carniça...".
Ouvia-se agora o choro mais alto da mulher, sentindo as palavras realistas do menino.
"Não é diferente não. Só gostam do dinheiro, só chegam aqui para pedir isso ou aquilo. Quando a senhora morrer e eles se acabarem por eles mesmos, brigando feito inimigos pelo que a senhora deixar, depois que tudo se acabar aí é que a senhora vai ser esquecida de vez. Primeiro porque morreu e depois porque acabou o que eles gostavam, que era o seu dinheiro. Mas vamos deixar isso pra lá...".
E a mulher continuava aos prantos. E Zezinho continuou:
"Agora vamos falar sobre o jardim, que vai ser o modo que a senhora vai encontrar deles saberem que a senhora está bem vivinha e não está nem aí pra eles. E quando eles se sentirem também rejeitados, aí vão entrar na casa, vão se surpreender com a senhora mais contente e vão saber que a sua felicidade pode ser comprovada pelo jardim que tem...".
"Mas você pode fazer isso mesmo, meu filho?", perguntou. "Eu não, mas vou deixar em ponto de bala pra senhora chamar um jardineiro", respondeu Zezinho.
"E você acha que isso pode dar certo, meu filho?". "Minha senhora, se um jardim bonito não mudar a sua vida a senhora pode mudar de vida", foi o que prontamente respondeu o pequeno lavrador, de pá e enxada na mão.
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domingo, 24 de outubro de 2010
MENINA, ABRA A JANELA E VÁ AVOAR!!! (Crônica)
MENINA, ABRA A JANELA E VÁ AVOAR!!!
Rangel Alves da Costa*
Basta o pensamento do voo e a gente já sai avoando, dizia uma conhecida.
Até achava esquisito quando ela dizia "avoar" e não voar, como normalmente se fala e escreve. Mas depois descobri que ela tinha razão, pois avoando se voa muito mais longe do que simplesmente voando.
Simplesmente voando a pessoa depende de uma série de coisas para estar pelos ares, tais como asas, mesmo que as do pensamento; força para fazer as asas baterem e o pensamento voar; e um destino certo onde se quer alcançar no voo.
Avoar não, é muito melhor, é muito mais bonito, é muito mais significativo e profundo. Para avoar a pessoa não precisa de nada, não precisa ter asas nem levantar voo no pensamento. Para avoar basta imaginar o silêncio, o que quer, e pronto.
E sabe-se quando já está avoando quando as pessoas ao redor não existem, quando tanto faz essa bagunça do mundo, quando não se enxerga mais nada à frente, quando faz de conta que tudo morreu e tudo acabou, e só existe o mundo do voo do avoante.
Avoar é como se tivesse sumido desse mundo vão, partido sem compromisso de volta, simplesmente sumir porque não vale a pena ficar aqui. O único compromisso é conosco mesmo e com os nossos objetivos. Ora, o mundo ingrato que se exploda!
Ademais, voando corre-se o risco de cair, de ser abatido, de despencar pela maldade dos outros, de ser impedido de ter a liberdade que quiser por aí, pelos ares, pelas distâncias dos horizontes.
Avoando não, pois o avoador está no chão e em todo lugar ao mesmo tempo. O único risco que corre é não querer deixar de avoar e os outros acharem que se tornou abobalhado ou lerdo. Sem falar que ninguém pode ver o outro voejando pelo mundo que imagina e já fica falando besteira.
Continuo dando razão à conhecida e hoje tenho certeza que avoar é muito melhor do que voar. E tanto é assim que tenho que dizer àquela menina que fica ao entardecer na janela que ela está perdendo o seu tempo voando nos pensamentos.
Nem de longe sei o que ela fica imaginando, pensando, sonhando, viajando todas as tardes naquela janela, assim que se arruma todinha, fica linda igual a ela mesma e cheirando igual à flor mais cheirosa de qualquer estação. Não sei. Só sei que ela fica voando.
E sei que ela fica voando porque vejo o seu olhar distante, sinto seus sonhos e esperanças pegando carona nas nuvens, imagino que dali sai correndo em busca das realizações da idade.
Sem falar no príncipe encantado que vem no vento em cima de um cavalo branco; na palavra que ouve ele falar, no olhar que lhe entontece, no beijo que lhe fará princesa. E depois viverão felizes para sempre... E a menina fica voando, voando, até que chega o anoitecer e nada acontece.
Se ao invés disso ela ficasse avoando tudo seria diferente, mais verdadeiro e realizável. Avoando ela não ficaria entristecida mais tarde, não choraria trancada dentro do quarto, não viveria se achando a pessoa mais triste, mais feia e mais injustiçada do mundo. E tudo porque os voos do entardecer não produziam resultado algum.
Mas vou escrever um bilhetinho pra ela e vou dizer como se faz para avoar na janela e conseguir tudo que não conseguiu voando. O bilhetinho vai ser simples e vai dizer somente isto:
"Tente enxergar quem te ama e deixe de viver voando atrás do impossível. Príncipes de cavalo branco não existem, mas eu sim".
Poeta e cronista
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Rangel Alves da Costa*
Basta o pensamento do voo e a gente já sai avoando, dizia uma conhecida.
Até achava esquisito quando ela dizia "avoar" e não voar, como normalmente se fala e escreve. Mas depois descobri que ela tinha razão, pois avoando se voa muito mais longe do que simplesmente voando.
Simplesmente voando a pessoa depende de uma série de coisas para estar pelos ares, tais como asas, mesmo que as do pensamento; força para fazer as asas baterem e o pensamento voar; e um destino certo onde se quer alcançar no voo.
Avoar não, é muito melhor, é muito mais bonito, é muito mais significativo e profundo. Para avoar a pessoa não precisa de nada, não precisa ter asas nem levantar voo no pensamento. Para avoar basta imaginar o silêncio, o que quer, e pronto.
E sabe-se quando já está avoando quando as pessoas ao redor não existem, quando tanto faz essa bagunça do mundo, quando não se enxerga mais nada à frente, quando faz de conta que tudo morreu e tudo acabou, e só existe o mundo do voo do avoante.
Avoar é como se tivesse sumido desse mundo vão, partido sem compromisso de volta, simplesmente sumir porque não vale a pena ficar aqui. O único compromisso é conosco mesmo e com os nossos objetivos. Ora, o mundo ingrato que se exploda!
Ademais, voando corre-se o risco de cair, de ser abatido, de despencar pela maldade dos outros, de ser impedido de ter a liberdade que quiser por aí, pelos ares, pelas distâncias dos horizontes.
Avoando não, pois o avoador está no chão e em todo lugar ao mesmo tempo. O único risco que corre é não querer deixar de avoar e os outros acharem que se tornou abobalhado ou lerdo. Sem falar que ninguém pode ver o outro voejando pelo mundo que imagina e já fica falando besteira.
Continuo dando razão à conhecida e hoje tenho certeza que avoar é muito melhor do que voar. E tanto é assim que tenho que dizer àquela menina que fica ao entardecer na janela que ela está perdendo o seu tempo voando nos pensamentos.
Nem de longe sei o que ela fica imaginando, pensando, sonhando, viajando todas as tardes naquela janela, assim que se arruma todinha, fica linda igual a ela mesma e cheirando igual à flor mais cheirosa de qualquer estação. Não sei. Só sei que ela fica voando.
E sei que ela fica voando porque vejo o seu olhar distante, sinto seus sonhos e esperanças pegando carona nas nuvens, imagino que dali sai correndo em busca das realizações da idade.
Sem falar no príncipe encantado que vem no vento em cima de um cavalo branco; na palavra que ouve ele falar, no olhar que lhe entontece, no beijo que lhe fará princesa. E depois viverão felizes para sempre... E a menina fica voando, voando, até que chega o anoitecer e nada acontece.
Se ao invés disso ela ficasse avoando tudo seria diferente, mais verdadeiro e realizável. Avoando ela não ficaria entristecida mais tarde, não choraria trancada dentro do quarto, não viveria se achando a pessoa mais triste, mais feia e mais injustiçada do mundo. E tudo porque os voos do entardecer não produziam resultado algum.
Mas vou escrever um bilhetinho pra ela e vou dizer como se faz para avoar na janela e conseguir tudo que não conseguiu voando. O bilhetinho vai ser simples e vai dizer somente isto:
"Tente enxergar quem te ama e deixe de viver voando atrás do impossível. Príncipes de cavalo branco não existem, mas eu sim".
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Vida breve, amor eterno (Poesia)
Vida breve, amor eterno
Ao teu lado e sempre ao teu lado
tenho vivido de alegrias e felicidades
e por isso não há manhã nem noite
que não agradeça pela tua presença
que não ore pelo dom dessa nossa união
mas é quando chega o entardecer
e essa razão do tempo começa
a soprar certezas no pensamento
que vem o medo, a angústia,
a tristeza, a dor...
por mais amor que tenhamos
e tudo tenha sido construído
para durar eternamente
somos humanos, somos frágeis
somos simplesmente pó
e ao pó retornaremos um dia
como se a vida fosse somente
um instante que nos é dado para amar
e depois tudo será fim
e fim como não queríamos jamais...
e quando desejamos tanto
amar um pouco mais
chega o destino e nos chama
de volta ao nosso lar
e ficamos somente com a certeza
de que a vida é breve e o amor eterno.
Rangel Alves da Costa
Ao teu lado e sempre ao teu lado
tenho vivido de alegrias e felicidades
e por isso não há manhã nem noite
que não agradeça pela tua presença
que não ore pelo dom dessa nossa união
mas é quando chega o entardecer
e essa razão do tempo começa
a soprar certezas no pensamento
que vem o medo, a angústia,
a tristeza, a dor...
por mais amor que tenhamos
e tudo tenha sido construído
para durar eternamente
somos humanos, somos frágeis
somos simplesmente pó
e ao pó retornaremos um dia
como se a vida fosse somente
um instante que nos é dado para amar
e depois tudo será fim
e fim como não queríamos jamais...
e quando desejamos tanto
amar um pouco mais
chega o destino e nos chama
de volta ao nosso lar
e ficamos somente com a certeza
de que a vida é breve e o amor eterno.
Rangel Alves da Costa
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 5 (Conto)
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 5
Rangel Alves da Costa*
"Ei pivete, chispa daqui, certamente tá olhando pra querer roubar...". Disse o dono da padaria com cara de poucos amigos.
"Eu querendo roubar? Não sei nem o que é isso, seu Zé. Meus pais me disseram que roubar é um pecado muito grande e uma coisa muito feia da pessoa fazer. É dez vezes melhor pedir do que pegar no que é dos outros. E se a gente pedir e a pessoa não der, mesmo assim não se deve roubar de jeito nenhum. E mais, seu Zé, se eu fosse de roubar não tava aqui olhando o seu pão não, já tina entrando, pegado um e saído correndo...".
Respondeu Zezinho ainda em pé no mesmo local onde havia sido confundido pelo padeiro. E falou sério demais para que o vendedor não desse importância ao que ouvia. E porque ouviu muito bem foi que falou ao menino:
"Suba aqui, venha cá. Não tenho medo não, venha cá...". E Zezinho entrou na padaria e seguiu em direção ao balcão onde estava o moço. "O que é que o senhor quer, perguntar de novo se estou querendo roubar?", indagou.
"Deixe pra lá molecote. Gostei da seriedade nas palavras, provando que é um bom filho e um bom menino. Mas pelo jeito você não veio comprar nada, talvez não tenha um só tostão. O que vejo em ti, guri, é uma carinha de quem está com fome. Está com fome, não é mesmo, e por isso estava de olho arregalado naquela bisnaga, não é mesmo?
O dono da padaria agora se mostrava amigueiro, compreensivo, acertando direitinho no pronto fraco de Zezinho, que naquele momento era a fome. E este falou:
"Essa hora lá em casa eu já tinha comido qualquer coisa, nem que fosse uma caneca de leite com farinha ou um bolachão de muitos dias. Tô com fome porque não tô em casa, porque se tivesse lá nem dava vontade de olhar pra o pão dos outros...".
E o moço da padaria esboçou um leve sorriso na cara vermelha e triste que se mostrou naquele momento. Visivelmente abalado pelas palavras do menino, chamou-o mais pra perto e falou baixinho: "Sente ali naquela mesinha que vou lhe servir por conta da casa uma boa xícara de café com leite e um pão com manteiga, tá certo? Sente ali que já volto...".
"Você é bom demais seu moço, e juro que vou comer com gosto, pois tô com a fome de um bezerro". E seguiu em direção à mesa.
Uns dois minutos após e o homem colocou à sua frente um pão com queijo e manteiga, um pedaço de bolo de ovos e um copo cheio de café com leite. Os olhos do menino brilharam de alegria e satisfação. A fome não deixou que dissesse mais nada, a não ser começar a beliscar aquilo tudo.
Depois que se fartou e passou a apresentar uma feição mais alegre, Zezinho levantou, recolheu o prato, os talheres e o copo e foi em direção ao balcão, pedindo para que o moço lhe desse um pano para passar na mesinha.
"Mas ora, guri, nem pense em fazer isto, pois logo estará limpinha. Mas agora que já não está mais com cara de fome me diga uma coisa, você vai pra onde assim?" Perguntou o moço. E o menino prontamente respondeu:
"Vou procurar e encontrar minha mãe que ficou lá na rodoviária me esperando. Por falar nisso, o senhor pode me dizer pra que lado fica a rodoviária, aquela onde para um monte de ônibus e é cheinha de gente pra todo lado?"
Antes de responder, o moço perguntou: "E sua mãe sabe que você anda aqui por essas bandas?". "Ah, não tenho certeza se ela sabe onde eu tô agora, mas sei que ela tá me esperando lá na rodoviária porque a gente vai viajar pra bem longe. Acho que é pra São Paulo". Disse o menino na maior inocência do mundo.
"Então tome essa moeda aqui e caminhe mais dois trechos naquela direção – Apontando para o lado direito da rua - até chegar num ponto de ônibus. Lá você pede as pessoas para lhe informarem quando passa o ônibus que vai pra rodoviária. Então você entra, paga sua passagem e diz ao cobrador que vai descer na rodoviária. E é só isso e boa viagem. Ah, espere aí – E foi buscar mais alguma coisa -, leve esses dois pães nesse embrulho que é para o caso da fome aparecer novamente.
Zezinho não saiu da padaria sem agradecer ao homem por tudo de mais sagrado que existisse. E quando já estava na calçada ouviu alguém lhe chamando:
"Ei garotinho, por favor venha aqui". Era uma senhora que ficou grande parte do tempo ouvindo o diálogo inicial entre o menino e o moço da padaria. E assim que Zezinho se aproximou ela continuou:
"Eu estava há pouco aí dentro e não pude deixar de ouvir você conversar. Parabéns por demonstrar ser um menino sério e respeitoso. Mas você gostaria de ganhar algumas moedas limpando um pequeno jardim na minha casa, logo ali adiante?".
"Acho que ainda tenho um tempinho. Depois é que vou encontrar minha mãe. Vamos lá...". Disse Zezinho.
continua...
Poeta e cronista
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Rangel Alves da Costa*
"Ei pivete, chispa daqui, certamente tá olhando pra querer roubar...". Disse o dono da padaria com cara de poucos amigos.
"Eu querendo roubar? Não sei nem o que é isso, seu Zé. Meus pais me disseram que roubar é um pecado muito grande e uma coisa muito feia da pessoa fazer. É dez vezes melhor pedir do que pegar no que é dos outros. E se a gente pedir e a pessoa não der, mesmo assim não se deve roubar de jeito nenhum. E mais, seu Zé, se eu fosse de roubar não tava aqui olhando o seu pão não, já tina entrando, pegado um e saído correndo...".
Respondeu Zezinho ainda em pé no mesmo local onde havia sido confundido pelo padeiro. E falou sério demais para que o vendedor não desse importância ao que ouvia. E porque ouviu muito bem foi que falou ao menino:
"Suba aqui, venha cá. Não tenho medo não, venha cá...". E Zezinho entrou na padaria e seguiu em direção ao balcão onde estava o moço. "O que é que o senhor quer, perguntar de novo se estou querendo roubar?", indagou.
"Deixe pra lá molecote. Gostei da seriedade nas palavras, provando que é um bom filho e um bom menino. Mas pelo jeito você não veio comprar nada, talvez não tenha um só tostão. O que vejo em ti, guri, é uma carinha de quem está com fome. Está com fome, não é mesmo, e por isso estava de olho arregalado naquela bisnaga, não é mesmo?
O dono da padaria agora se mostrava amigueiro, compreensivo, acertando direitinho no pronto fraco de Zezinho, que naquele momento era a fome. E este falou:
"Essa hora lá em casa eu já tinha comido qualquer coisa, nem que fosse uma caneca de leite com farinha ou um bolachão de muitos dias. Tô com fome porque não tô em casa, porque se tivesse lá nem dava vontade de olhar pra o pão dos outros...".
E o moço da padaria esboçou um leve sorriso na cara vermelha e triste que se mostrou naquele momento. Visivelmente abalado pelas palavras do menino, chamou-o mais pra perto e falou baixinho: "Sente ali naquela mesinha que vou lhe servir por conta da casa uma boa xícara de café com leite e um pão com manteiga, tá certo? Sente ali que já volto...".
"Você é bom demais seu moço, e juro que vou comer com gosto, pois tô com a fome de um bezerro". E seguiu em direção à mesa.
Uns dois minutos após e o homem colocou à sua frente um pão com queijo e manteiga, um pedaço de bolo de ovos e um copo cheio de café com leite. Os olhos do menino brilharam de alegria e satisfação. A fome não deixou que dissesse mais nada, a não ser começar a beliscar aquilo tudo.
Depois que se fartou e passou a apresentar uma feição mais alegre, Zezinho levantou, recolheu o prato, os talheres e o copo e foi em direção ao balcão, pedindo para que o moço lhe desse um pano para passar na mesinha.
"Mas ora, guri, nem pense em fazer isto, pois logo estará limpinha. Mas agora que já não está mais com cara de fome me diga uma coisa, você vai pra onde assim?" Perguntou o moço. E o menino prontamente respondeu:
"Vou procurar e encontrar minha mãe que ficou lá na rodoviária me esperando. Por falar nisso, o senhor pode me dizer pra que lado fica a rodoviária, aquela onde para um monte de ônibus e é cheinha de gente pra todo lado?"
Antes de responder, o moço perguntou: "E sua mãe sabe que você anda aqui por essas bandas?". "Ah, não tenho certeza se ela sabe onde eu tô agora, mas sei que ela tá me esperando lá na rodoviária porque a gente vai viajar pra bem longe. Acho que é pra São Paulo". Disse o menino na maior inocência do mundo.
"Então tome essa moeda aqui e caminhe mais dois trechos naquela direção – Apontando para o lado direito da rua - até chegar num ponto de ônibus. Lá você pede as pessoas para lhe informarem quando passa o ônibus que vai pra rodoviária. Então você entra, paga sua passagem e diz ao cobrador que vai descer na rodoviária. E é só isso e boa viagem. Ah, espere aí – E foi buscar mais alguma coisa -, leve esses dois pães nesse embrulho que é para o caso da fome aparecer novamente.
Zezinho não saiu da padaria sem agradecer ao homem por tudo de mais sagrado que existisse. E quando já estava na calçada ouviu alguém lhe chamando:
"Ei garotinho, por favor venha aqui". Era uma senhora que ficou grande parte do tempo ouvindo o diálogo inicial entre o menino e o moço da padaria. E assim que Zezinho se aproximou ela continuou:
"Eu estava há pouco aí dentro e não pude deixar de ouvir você conversar. Parabéns por demonstrar ser um menino sério e respeitoso. Mas você gostaria de ganhar algumas moedas limpando um pequeno jardim na minha casa, logo ali adiante?".
"Acho que ainda tenho um tempinho. Depois é que vou encontrar minha mãe. Vamos lá...". Disse Zezinho.
continua...
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sábado, 23 de outubro de 2010
SILÊNCIO DE MARIA (Crônica)
SILÊNCIO DE MARIA
Rangel Alves da Costa*
Maria viu quando os bichos se avexaram no meio da noite, sinalizando que estranhos haviam chegado; viu pela fresta os estranhos se escondendo por trás das moitas, fazendo tocaias; viu quando Belarmino ia passando despreocupado na sua montaria; viu quando os homens dispararam contra ele; viu ele caindo e morto; viu os estranhos sumirem na madrugada; e viu tudo acontecer novamente com outras pessoas.
Maria viu tudo, mas ficou em silêncio. Maria não disse nada...
Maria viu que a barra não tinha jeito de se formar no horizonte sertanejo; viu o tempo mudar e ficar cada vez mais quente; viu quando o sol começou a aparecer cada vez mais cedo e ir embora cada vez mais tarde; viu o povo se abanando dia e noite por causa do calor; viu bichos e plantas entristecerem; viu a natureza esturricar, os descampados acinzentarem; viu quando o riacho secou, a água sumiu dos tanques e barreiros; viu quando a água acabou; viu quando a seca escancarou; viu quando não tinha mais planta, viu quando o gado começou a morrer; viu a dor e a tristeza, a lágrima e a agonia.
Maria viu tudo isso, mas ficou em silêncio. Maria não disse nada...
Maria viu a natureza em fúria; viu a mãe terra chorar sem ninguém se importar com a dor; viu as estações se confundirem e inverno se fazer verão, outono querer ser primavera e um jardim se formar na aridez do sertão; viu o rio virar córrego, viu córrego virar lamaçal, viu mar querendo ser rio pra correr nas ribanceiras, mas viu também a correnteza sair do leito e invadir as cidades, derrubando casas, destruindo tudo, levando vidas e sonhos.
Maria viu tudo isso, mas ficou em silêncio. Maria não disse nada...
Maria viu o céu estremecer; viu estrelas cadentes caindo aos seus pés; viu relâmpagos, raios, trovões e trovadas, e viu granizo cair; viu temporais, ventanias e vendavais, assombrosas forças derrubando árvores e espantando bichos, fazendo casas voar pelos ares, viu os ares cheios de coisas que eram da terra; e viu quando o povo fugiu quando o terremoto surgiu, o vulcão explodiu e as lavas se transformaram em veias de sangue procurando vítimas.
Maria viu tudo isso, mas ficou em silêncio. Maria não disse nada...
Maria viu o povo mudar, o povo se transformar, o povo ser menos humano e se tornar mais gente, e gente toda descrente; e por isso viu o pecado se espalhar; viu a idolatria, o ateísmo e a desonra se disseminar; viu o padre pecador, a beata traindo a igreja, o crente traindo a religião; viu o templo sem fiéis, viu o templo sem sermões, viu o templo desacreditado; e viu que muitos caminhavam por outros caminhos para preservar e fortalecer sua fé, pois diziam que nos templos construídos pelo homem estava faltando a presença de Deus.
Maria viu tudo isso, mas ficou em silêncio. Maria não disse nada...
Maria viu a fome diante dos olhos, e viu a feiúra dos olhos da fome; viu crianças chorando sem pão; viu bicho berrando com sede; viu a panela vazia, viu o pote, a lata e a moringa, e viu tudo vazio; viu pai de família erguendo a mão; viu quando deram uma esmola; viu que o tostão da doação matou a fome de muitos; pois viu na casa da família a farinha seca sendo distribuída e pessoas comendo e se engasgando com a maior felicidade do mundo; viu a fome do dia seguinte; viu novamente a mão estendida, mas não viu nada.
Maria viu tudo isso, mas ficou em silêncio. Maria não disse nada...
E por que tanto silêncio Maria? Um dia tive coragem de perguntar. E Maria me respondeu:
"Todo mundo vê isso tudo e ninguém faz nada. Para ver e não poder fazer nada é melhor ficar calada. E quando estou em silêncio é porque estou orando. É como eu posso dizer isso tudo ao meu Deus!".
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Rangel Alves da Costa*
Maria viu quando os bichos se avexaram no meio da noite, sinalizando que estranhos haviam chegado; viu pela fresta os estranhos se escondendo por trás das moitas, fazendo tocaias; viu quando Belarmino ia passando despreocupado na sua montaria; viu quando os homens dispararam contra ele; viu ele caindo e morto; viu os estranhos sumirem na madrugada; e viu tudo acontecer novamente com outras pessoas.
Maria viu tudo, mas ficou em silêncio. Maria não disse nada...
Maria viu que a barra não tinha jeito de se formar no horizonte sertanejo; viu o tempo mudar e ficar cada vez mais quente; viu quando o sol começou a aparecer cada vez mais cedo e ir embora cada vez mais tarde; viu o povo se abanando dia e noite por causa do calor; viu bichos e plantas entristecerem; viu a natureza esturricar, os descampados acinzentarem; viu quando o riacho secou, a água sumiu dos tanques e barreiros; viu quando a água acabou; viu quando a seca escancarou; viu quando não tinha mais planta, viu quando o gado começou a morrer; viu a dor e a tristeza, a lágrima e a agonia.
Maria viu tudo isso, mas ficou em silêncio. Maria não disse nada...
Maria viu a natureza em fúria; viu a mãe terra chorar sem ninguém se importar com a dor; viu as estações se confundirem e inverno se fazer verão, outono querer ser primavera e um jardim se formar na aridez do sertão; viu o rio virar córrego, viu córrego virar lamaçal, viu mar querendo ser rio pra correr nas ribanceiras, mas viu também a correnteza sair do leito e invadir as cidades, derrubando casas, destruindo tudo, levando vidas e sonhos.
Maria viu tudo isso, mas ficou em silêncio. Maria não disse nada...
Maria viu o céu estremecer; viu estrelas cadentes caindo aos seus pés; viu relâmpagos, raios, trovões e trovadas, e viu granizo cair; viu temporais, ventanias e vendavais, assombrosas forças derrubando árvores e espantando bichos, fazendo casas voar pelos ares, viu os ares cheios de coisas que eram da terra; e viu quando o povo fugiu quando o terremoto surgiu, o vulcão explodiu e as lavas se transformaram em veias de sangue procurando vítimas.
Maria viu tudo isso, mas ficou em silêncio. Maria não disse nada...
Maria viu o povo mudar, o povo se transformar, o povo ser menos humano e se tornar mais gente, e gente toda descrente; e por isso viu o pecado se espalhar; viu a idolatria, o ateísmo e a desonra se disseminar; viu o padre pecador, a beata traindo a igreja, o crente traindo a religião; viu o templo sem fiéis, viu o templo sem sermões, viu o templo desacreditado; e viu que muitos caminhavam por outros caminhos para preservar e fortalecer sua fé, pois diziam que nos templos construídos pelo homem estava faltando a presença de Deus.
Maria viu tudo isso, mas ficou em silêncio. Maria não disse nada...
Maria viu a fome diante dos olhos, e viu a feiúra dos olhos da fome; viu crianças chorando sem pão; viu bicho berrando com sede; viu a panela vazia, viu o pote, a lata e a moringa, e viu tudo vazio; viu pai de família erguendo a mão; viu quando deram uma esmola; viu que o tostão da doação matou a fome de muitos; pois viu na casa da família a farinha seca sendo distribuída e pessoas comendo e se engasgando com a maior felicidade do mundo; viu a fome do dia seguinte; viu novamente a mão estendida, mas não viu nada.
Maria viu tudo isso, mas ficou em silêncio. Maria não disse nada...
E por que tanto silêncio Maria? Um dia tive coragem de perguntar. E Maria me respondeu:
"Todo mundo vê isso tudo e ninguém faz nada. Para ver e não poder fazer nada é melhor ficar calada. E quando estou em silêncio é porque estou orando. É como eu posso dizer isso tudo ao meu Deus!".
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Poetisa (Poesia)
Poetisa
Filha do tempo
prima da manhã
dona dos gestos e sentimentos
senhora das tardes e noites
conheceste o sol
falaste com a lua
disseste à noite
que ela é tua
brincaste com a chuva
no meio da rua
e sobre ti volteia
natureza e universo
e tudo que rodeia
deusa
pensei que seria
poder sobre seres
pensei que teria
mas te encontrei um dia
chorando na janela
deusa da melancolia
apenas mulher
apenas poeta
sem nenhuma poesia
sem nenhuma inspiração
naquele dia de agonia.
Rangel Alves da Costa
Filha do tempo
prima da manhã
dona dos gestos e sentimentos
senhora das tardes e noites
conheceste o sol
falaste com a lua
disseste à noite
que ela é tua
brincaste com a chuva
no meio da rua
e sobre ti volteia
natureza e universo
e tudo que rodeia
deusa
pensei que seria
poder sobre seres
pensei que teria
mas te encontrei um dia
chorando na janela
deusa da melancolia
apenas mulher
apenas poeta
sem nenhuma poesia
sem nenhuma inspiração
naquele dia de agonia.
Rangel Alves da Costa
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 4 (Conto)
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 4
Rangel Alves da Costa*
Zezinho acordou ainda de madrugada, com os primeiros movimentos da cidade grande que se prepara para o amanhecer.
Limpou os olhos esverdeados com a mão, procurou avistar o que estava ao redor e o que viu foi tudo muito estranho, tudo diferente, grande demais e feio. E feio principalmente porque no lugar dos descampados e pés de pau só enxergava casas e prédios, se é que sabia o que era aqueles monstros que iam formando ruas.
Ajeitou-se novamente para ver se dormia mais um pouquinho e pensou estar ouvindo gado berrando, cachorro latindo e galos e passarinhos cantando. Já era quase hora de correr para o curral tomar leite quentinho do peito da vaca. Às vezes sua mãe colocava um pouco de farinha dentro da caneca e quando o leite caía quentinho ia tudo sendo misturado e ficava gostoso demais.
Ficou imaginando ouvir sons do sertão, vendo os animais e as plantas que ele tanto conhecia, avistando o tanquinho de água barrenta onde ia tomar banho escondido, pensando estar atirando em rolinha com sua peteca que lhe foi presenteado pelo filho de um fazendeiro, subindo no pé do umbuzeiro para chupar a fruta madurinha. E caminhou, voou, correu, pulou, brincou demais, mas tudo na imaginação.
E de tanto pensar no seu sertão e nas maravilhas que havia ali acabou adormecendo novamente. Adormeceu e começou a sonhar.
"E estava tudo em paz no sertão, com o céu azulado e o vento soprando levemente nas folhas das plantas. Mas de repente tudo foi mudando, ficando escurecido e uma ventania começou a varrer tudo. E veio um carcará, desses bichos voadores danados que furam os olhos, beliscam o corpo todo e depois comem os animais novinhos, e começou a voar pelos ninhos, acabar com a vida dos pequenos filhotes e depois se assanhar todo com o bico sujo de sangue. E quando acabou com os pequenos passarinhos existentes, começou a dar voos rasantes sobre as redondezas, todo raivoso, com o bico maior ainda e batendo furiosamente as asas. E foi quando o carcará lhe enxergou embaixo do pé de umbuzeiro e partiu feito raio em sua direção. E então ele correu e corria muito, mas quanto mais ele corria mais o bicho avançava em fúria, sedento de fazer outra vítima. E foi alcançado, levantado pelo bico do bicho e levado para cima, para os ares, e depois, não se sabe o porquê, foi arremessado lá de cima e foi caindo, caindo, caindo até que...".
Até que Zezinho acordou assustado desse sonho ruim e se ergueu quase num pulo. Olhou novamente para um lado e para o outro e resolveu que era melhor tomar rapidamente outro banho para despertar de vez e depois seguir novamente em busca de sua mãe. Pelo dia seria muito mais fácil, imaginou.
Quando o dia amanheceu completamente, os estranhos que passavam podiam avistá-lo sentadinho no banco da praça olhando o mundo ao redor e pensando no que fazer, em qual direção deveria seguir e como faria para comer alguma coisa.
Verde é que estava com fome e muita fome, pois naquela hora certamente já havia tomado seu leite com farinha, comido alguma bolacha ou quem sabe um pedaço de cuscuz. Certa feita, num dia que sua mãe fez um bolo de milho muito bonito e gostoso, lhe foi oferecido uma fatia bem grande logo de manhãzinha.
Viu pessoas passarem com pães e leite e resolveu olhar de onde elas vinham com aquelas maravilhas. Tomar um pouco de leite e comer um pedaço de pão seria a coisa que mais precisava naquele momento. O problema é que não tinha dinheiro, não tinha nenhum tostão, e não era de pegar nada escondido de ninguém nem de andar pedindo.
Mas pediu. A fome era tanta que pediu um pedaço de pão a três pessoas que passaram, mas só ouviu delas coisas do tipo "vá pedir em outra freguesia", 'vá pra casa comer", "isso não é hora de menino andar pedindo não".
Que povo bruto e ruim, pensou. Só um pedacinho de pão e ninguém quer dar. E pelas palavras que ouviu foi concluindo que se estivesse em casa nem precisava estar pedindo nada a ninguém. Só pedia porque não estava em casa, suma mãe não estava por perto e realmente estava com fome. Com muita fome.
Foi caminhando até encontrar a padaria. O cheiro de pão no forno subia no ar e se tornava impossível de não acertar. Chegou na porta e olhou lá pra dentro. Mas fazer o que agora, Zezinho?
continua...
Poeta e cronista
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Rangel Alves da Costa*
Zezinho acordou ainda de madrugada, com os primeiros movimentos da cidade grande que se prepara para o amanhecer.
Limpou os olhos esverdeados com a mão, procurou avistar o que estava ao redor e o que viu foi tudo muito estranho, tudo diferente, grande demais e feio. E feio principalmente porque no lugar dos descampados e pés de pau só enxergava casas e prédios, se é que sabia o que era aqueles monstros que iam formando ruas.
Ajeitou-se novamente para ver se dormia mais um pouquinho e pensou estar ouvindo gado berrando, cachorro latindo e galos e passarinhos cantando. Já era quase hora de correr para o curral tomar leite quentinho do peito da vaca. Às vezes sua mãe colocava um pouco de farinha dentro da caneca e quando o leite caía quentinho ia tudo sendo misturado e ficava gostoso demais.
Ficou imaginando ouvir sons do sertão, vendo os animais e as plantas que ele tanto conhecia, avistando o tanquinho de água barrenta onde ia tomar banho escondido, pensando estar atirando em rolinha com sua peteca que lhe foi presenteado pelo filho de um fazendeiro, subindo no pé do umbuzeiro para chupar a fruta madurinha. E caminhou, voou, correu, pulou, brincou demais, mas tudo na imaginação.
E de tanto pensar no seu sertão e nas maravilhas que havia ali acabou adormecendo novamente. Adormeceu e começou a sonhar.
"E estava tudo em paz no sertão, com o céu azulado e o vento soprando levemente nas folhas das plantas. Mas de repente tudo foi mudando, ficando escurecido e uma ventania começou a varrer tudo. E veio um carcará, desses bichos voadores danados que furam os olhos, beliscam o corpo todo e depois comem os animais novinhos, e começou a voar pelos ninhos, acabar com a vida dos pequenos filhotes e depois se assanhar todo com o bico sujo de sangue. E quando acabou com os pequenos passarinhos existentes, começou a dar voos rasantes sobre as redondezas, todo raivoso, com o bico maior ainda e batendo furiosamente as asas. E foi quando o carcará lhe enxergou embaixo do pé de umbuzeiro e partiu feito raio em sua direção. E então ele correu e corria muito, mas quanto mais ele corria mais o bicho avançava em fúria, sedento de fazer outra vítima. E foi alcançado, levantado pelo bico do bicho e levado para cima, para os ares, e depois, não se sabe o porquê, foi arremessado lá de cima e foi caindo, caindo, caindo até que...".
Até que Zezinho acordou assustado desse sonho ruim e se ergueu quase num pulo. Olhou novamente para um lado e para o outro e resolveu que era melhor tomar rapidamente outro banho para despertar de vez e depois seguir novamente em busca de sua mãe. Pelo dia seria muito mais fácil, imaginou.
Quando o dia amanheceu completamente, os estranhos que passavam podiam avistá-lo sentadinho no banco da praça olhando o mundo ao redor e pensando no que fazer, em qual direção deveria seguir e como faria para comer alguma coisa.
Verde é que estava com fome e muita fome, pois naquela hora certamente já havia tomado seu leite com farinha, comido alguma bolacha ou quem sabe um pedaço de cuscuz. Certa feita, num dia que sua mãe fez um bolo de milho muito bonito e gostoso, lhe foi oferecido uma fatia bem grande logo de manhãzinha.
Viu pessoas passarem com pães e leite e resolveu olhar de onde elas vinham com aquelas maravilhas. Tomar um pouco de leite e comer um pedaço de pão seria a coisa que mais precisava naquele momento. O problema é que não tinha dinheiro, não tinha nenhum tostão, e não era de pegar nada escondido de ninguém nem de andar pedindo.
Mas pediu. A fome era tanta que pediu um pedaço de pão a três pessoas que passaram, mas só ouviu delas coisas do tipo "vá pedir em outra freguesia", 'vá pra casa comer", "isso não é hora de menino andar pedindo não".
Que povo bruto e ruim, pensou. Só um pedacinho de pão e ninguém quer dar. E pelas palavras que ouviu foi concluindo que se estivesse em casa nem precisava estar pedindo nada a ninguém. Só pedia porque não estava em casa, suma mãe não estava por perto e realmente estava com fome. Com muita fome.
Foi caminhando até encontrar a padaria. O cheiro de pão no forno subia no ar e se tornava impossível de não acertar. Chegou na porta e olhou lá pra dentro. Mas fazer o que agora, Zezinho?
continua...
Poeta e cronista
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sexta-feira, 22 de outubro de 2010
"BENÇA VÓ..." (Crônica)
"BENÇA VÓ..."
Rangel Alves da Costa*
Mesmo com o progresso, ainda há muita diferença do sertão para a cidade grande. Pequenas coisas existem e persistem que faz a grande diferença entre o mundo matuto e o que se diz sabido demais.
É preciso que o cabra conheça o de lá e o de cá pra dizer que conhece a vida. Em tudo e em tudo que há, se encontra ainda muita diferença nos hábitos, costumes, crenças, modos de viver e de ser. Tive mais sorte do que muitos, pois nasci lá e vivo cá e lá, e é por isso mesmo que posso dizer do que sei sem inventar um tiquinho assim.
Bença vó! Deus abençoe meu fio! E começava o diálogo e ela começava a perguntar: Meu fio, num tô enxergano direito, mai o que é aquilo diferente que vejo ali mai na frente? E eu respondia: É a vida vó, é a vida que tá toda diferente. Hoje tem duas vidas, que é a vida da gente e a vida dos outros. Aqui dentro ainda tem a vida da gente, mas no mundo lá fora tá tudo diferente vó, é como se fosse outra vida!
Me conte isso direito meu fio, vá, me conte... E lá ia eu contar o que ela sabia demais.
Vó, quando eu digo que hoje em dia tudo tem duas caras, duas vidas, dois jeitos de ser, dois tudo, é porque a gente sabe que tem o sertão, mas também tem aquilo que o sertão deixou de ser. Vou tentar explicar, vó...
A senhora mais do que ninguém lembra de como o sertanejo gosta de receber visita, de convidar pessoas importantes para almoçar e oferecer festa e regabofe pra esse povo todo que se acha metido a besta.
Pois bem, vó, quantas vezes a dona da casa tirava da prateleira aqueles pratos bonitos, antigos, de louça pura, colheres e garfos do mais puro metal, porta guardanapos e até guardanapos feitos de pano branquinho, todos enfeitados com rendas e inscrições parecendo desenhos?
Todas as vezes que chegava visita importante em casa. Mas a senhora já viu a dona da casa sentar com o povo para comer com gosto e se deliciar com os quitutes abastados, que iam desde a galinha ao molho pardo, o porco assado, as diversas formas de servir os cabritos, os bodes, a carne de gado, os peixes e as aves?
E não sentava, e nem senta, na mesa dos convidados porque não gosta, não se sente bem, não lhe chega apetite igual ao que está acostumada a ter. Ora, vó, todo mundo sabe que esse povo do sertão só gosta mesmo é de comer na sua cozinha, no prato simples e quase rachando, de barro ou de estanho.
Esse povo simples, que é igualzinho a gente, muitas vezes prefere comer fazendo bolos de feijão com a mão, molhando o bolo no caldo da pimenta e levado com a outra mão o naco de carne até a boca.
Água bem ali na quartinha, caneca de alumínio brilhando e a certeza da felicidade. Sem falar, vó, no doce de leite cheio de bolas que vai ser apreciado como sobremesa. Por isso mesmo é que Dona Miúda dizia que a coisa que mais humilha o rico é o doce de leite do pobre.
E tem muito mais coisas, vó. Tem, por exemplo, o jeito da gente olhar e entender a natureza; o valor que a gente dá a uma vela acesa, a uma fitinha do padre Cícero, a uma imagem de santo na parede, a um bom dia ou boa tarde, ao pé de mastruz que cresce no quintal, aos retratos antigos que estão espalhados pelas paredes. Aqui a gente respeita muito tudo isso, mas o de lá nem sabem o que significa uma manhã de chuva.
Mas o que mais me doi mesmo vó, é sentir que o sertão está se afastando da gente e indo pro lado deles. Basta olhar pra meninada e sentir o desprezo que dão às nossas coisas, às nossas raízes, e se entregam de corpo e alma ao desconhecido.
É assim mesmo, vó. Pode chorar que a gente ainda sabe também o que é lágrima...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Mesmo com o progresso, ainda há muita diferença do sertão para a cidade grande. Pequenas coisas existem e persistem que faz a grande diferença entre o mundo matuto e o que se diz sabido demais.
É preciso que o cabra conheça o de lá e o de cá pra dizer que conhece a vida. Em tudo e em tudo que há, se encontra ainda muita diferença nos hábitos, costumes, crenças, modos de viver e de ser. Tive mais sorte do que muitos, pois nasci lá e vivo cá e lá, e é por isso mesmo que posso dizer do que sei sem inventar um tiquinho assim.
Bença vó! Deus abençoe meu fio! E começava o diálogo e ela começava a perguntar: Meu fio, num tô enxergano direito, mai o que é aquilo diferente que vejo ali mai na frente? E eu respondia: É a vida vó, é a vida que tá toda diferente. Hoje tem duas vidas, que é a vida da gente e a vida dos outros. Aqui dentro ainda tem a vida da gente, mas no mundo lá fora tá tudo diferente vó, é como se fosse outra vida!
Me conte isso direito meu fio, vá, me conte... E lá ia eu contar o que ela sabia demais.
Vó, quando eu digo que hoje em dia tudo tem duas caras, duas vidas, dois jeitos de ser, dois tudo, é porque a gente sabe que tem o sertão, mas também tem aquilo que o sertão deixou de ser. Vou tentar explicar, vó...
A senhora mais do que ninguém lembra de como o sertanejo gosta de receber visita, de convidar pessoas importantes para almoçar e oferecer festa e regabofe pra esse povo todo que se acha metido a besta.
Pois bem, vó, quantas vezes a dona da casa tirava da prateleira aqueles pratos bonitos, antigos, de louça pura, colheres e garfos do mais puro metal, porta guardanapos e até guardanapos feitos de pano branquinho, todos enfeitados com rendas e inscrições parecendo desenhos?
Todas as vezes que chegava visita importante em casa. Mas a senhora já viu a dona da casa sentar com o povo para comer com gosto e se deliciar com os quitutes abastados, que iam desde a galinha ao molho pardo, o porco assado, as diversas formas de servir os cabritos, os bodes, a carne de gado, os peixes e as aves?
E não sentava, e nem senta, na mesa dos convidados porque não gosta, não se sente bem, não lhe chega apetite igual ao que está acostumada a ter. Ora, vó, todo mundo sabe que esse povo do sertão só gosta mesmo é de comer na sua cozinha, no prato simples e quase rachando, de barro ou de estanho.
Esse povo simples, que é igualzinho a gente, muitas vezes prefere comer fazendo bolos de feijão com a mão, molhando o bolo no caldo da pimenta e levado com a outra mão o naco de carne até a boca.
Água bem ali na quartinha, caneca de alumínio brilhando e a certeza da felicidade. Sem falar, vó, no doce de leite cheio de bolas que vai ser apreciado como sobremesa. Por isso mesmo é que Dona Miúda dizia que a coisa que mais humilha o rico é o doce de leite do pobre.
E tem muito mais coisas, vó. Tem, por exemplo, o jeito da gente olhar e entender a natureza; o valor que a gente dá a uma vela acesa, a uma fitinha do padre Cícero, a uma imagem de santo na parede, a um bom dia ou boa tarde, ao pé de mastruz que cresce no quintal, aos retratos antigos que estão espalhados pelas paredes. Aqui a gente respeita muito tudo isso, mas o de lá nem sabem o que significa uma manhã de chuva.
Mas o que mais me doi mesmo vó, é sentir que o sertão está se afastando da gente e indo pro lado deles. Basta olhar pra meninada e sentir o desprezo que dão às nossas coisas, às nossas raízes, e se entregam de corpo e alma ao desconhecido.
É assim mesmo, vó. Pode chorar que a gente ainda sabe também o que é lágrima...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Espelho e fotografia (Poesia)
Espelho e fotografia
Um dia
quando o teu espelho
lembrar que na vida
não se enxerga somente
o rosto bonito
a boca pintada
o cabelo de trança
a moça linda demais
sem que você perceba
transformarei o espelho
em fotografia
e esquecerei num cantinho
para que mais tarde
quando a realidade do tempo
se mostrar sem maquiagens
e o seu novo espelho
houver se quebrado
trarei para a parede o que tenho
e direi que olhe
para a fotografia no espelho
e que se reflita na fotografia
e veja quanto o tempo muda
sem refletir no amor
que continua imenso
diante da face de ontem
diante da face de sempre
até quando não houver
mais espelho
somente a fotografia.
Rangel Alves da Costa
Um dia
quando o teu espelho
lembrar que na vida
não se enxerga somente
o rosto bonito
a boca pintada
o cabelo de trança
a moça linda demais
sem que você perceba
transformarei o espelho
em fotografia
e esquecerei num cantinho
para que mais tarde
quando a realidade do tempo
se mostrar sem maquiagens
e o seu novo espelho
houver se quebrado
trarei para a parede o que tenho
e direi que olhe
para a fotografia no espelho
e que se reflita na fotografia
e veja quanto o tempo muda
sem refletir no amor
que continua imenso
diante da face de ontem
diante da face de sempre
até quando não houver
mais espelho
somente a fotografia.
Rangel Alves da Costa
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 3 (Conto)
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 3
Rangel Alves da Costa*
Zezinho acordou no meio da noite e sentiu tudo muito estranho ao redor. Ficou assustado porque não viu sua mãe por ali e percebeu que estava trancado dentro de um ônibus. Caminhou tateando pelas poltronas e conseguiu alcançar a parte da frente do veículo, junto à porta, que por sorte pôde ser aberta por dentro.
Desceu cuidadosamente, olhou para os lados e só viu um monte de ônibus parados dentro de um imenso pátio. Caminhou pelos espaços, enxergou algumas luzes por trás de janelas envidraçadas, porém preferiu não bater em nenhum daquelas portas. Seu instinto foi imediatamente procurar sair dali, encontrar um jeito de ir para o lado de fora e sair por aí procurando sua mãe.
Sabia que havia deixado sua mãe segurando a mala na rodoviária e teria que encontrá-la, mas primeiro tinha que saber onde era a rodoviária, pois mesmo ali estando cheio de ônibus tinha certeza que não podia ser naquele local. Faltavam as pessoas, o barulho, o sobe e desce, o corre-corre, mas principalmente faltava sua mãe.
Avistou um portão bem largo, se encaminhou para lá, olhou por onde poderia sair, até que enfiou seu corpo fino por entre as grades e conseguiu alcançar o outro lado. Caminhou um pouco de um lado para outro na rua escura e de casas com portas fechadas, olhou para ver se enxergava a rodoviária, mas nada.
Tenho que encontrar minha mãe o mais rápido possível, dizia consigo mesmo. Tinha que encontrar logo porque já estava ficando amedrontado com aquilo tudo, já estava com fome e sede, e ela sempre lhe dava o biscoito e a água que precisava. Sentou um instantinho no meio-fio, baixou a cabeça e ficou pensando no que poderia fazer, para onde poderia seguir naquele momento.
Levantou em seguida e foi seguindo pela rua em busca de um lugar iluminado, onde tivesse gente e ao menos pudesse perguntar às pessoas se tinham visto sua mãe. E quanta inocência, meu Deus!
Noite fechada, as únicas coisas que podia avistar eram casas fechadas e a movimentação de poucos carros que passavam. Enxergou bem longe um monte de luzes acesas e resolveu caminhar até lá.
Chegou numa pracinha abandonada, com mato tomando o lugar de quase tudo, ferrugem tomando conta daquilo que era brinquedo, apenas alguns bancos espalhados pelos cantos. Ficou alegre quando viu o balanço, mas este estava destroçado; correu para olhar o sobe-e-desce, mas este não subia nem descia mais. Sentou num dos bancos e ficou olhando aquele mundo estranho.
A cada instante que passava a fome e a sede aumentavam. Olhou para um lado e para o outro vendo onde poderia encontrar água, até que avistou uma torneira embaixo de uma casinha ali mesmo no meio da praça. Foi até lá, abriu devagarzinho a torneira na maior ânsia e expectativa do mundo, e os olhos brilharam de alegria e a boca se encheu de água assim que ela começou a jorrar.
Mas que água doce e gostosa, saborosa e tudo na vida, tomada com a mão mesmo, enchendo a boca e molhando o rosto todo, enchendo a boca e molhando a roupa toda, enchendo a boca e sendo arremessada pelo ar. Que festa era beber água e matar a sede. E por que não aproveitar para tomar um banho?
Procurou até encontrar no lixo um copo vazio de plástico, lavou direitinho, depois olhou ao redor para ver se vinham pessoas, e então tirou cuidadosamente a roupa já molhada, estendeu num cantinho e foi tomar banho como veio ao mundo, nuzinho da silva.
Era uma festa de água banhando o menino, era o menino em festa por alguns instantes. Até que o frio começou a chegar e Zezinho vestiu novamente a roupa molhada e foi sentar novamente no banco da praça. A sede não existia mais, estava tomado banho, o problema era a fome que aumentava ainda mais.
Você está com fome Zezinho? Jurou ter ouvido a voz de sua mãe perguntando isso. Alegrou-se olhando para ver se a enxergava, mas nem um vulto sequer. E não teve jeito. Foi a primeira vez que Zezinho abriu sacos de lixo para encontrar comida. E comeu restos de qualquer coisa sem poder reclamar.
E foi a primeira vez também que dormiu ao relento, abandonado, no meio do mundo.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Zezinho acordou no meio da noite e sentiu tudo muito estranho ao redor. Ficou assustado porque não viu sua mãe por ali e percebeu que estava trancado dentro de um ônibus. Caminhou tateando pelas poltronas e conseguiu alcançar a parte da frente do veículo, junto à porta, que por sorte pôde ser aberta por dentro.
Desceu cuidadosamente, olhou para os lados e só viu um monte de ônibus parados dentro de um imenso pátio. Caminhou pelos espaços, enxergou algumas luzes por trás de janelas envidraçadas, porém preferiu não bater em nenhum daquelas portas. Seu instinto foi imediatamente procurar sair dali, encontrar um jeito de ir para o lado de fora e sair por aí procurando sua mãe.
Sabia que havia deixado sua mãe segurando a mala na rodoviária e teria que encontrá-la, mas primeiro tinha que saber onde era a rodoviária, pois mesmo ali estando cheio de ônibus tinha certeza que não podia ser naquele local. Faltavam as pessoas, o barulho, o sobe e desce, o corre-corre, mas principalmente faltava sua mãe.
Avistou um portão bem largo, se encaminhou para lá, olhou por onde poderia sair, até que enfiou seu corpo fino por entre as grades e conseguiu alcançar o outro lado. Caminhou um pouco de um lado para outro na rua escura e de casas com portas fechadas, olhou para ver se enxergava a rodoviária, mas nada.
Tenho que encontrar minha mãe o mais rápido possível, dizia consigo mesmo. Tinha que encontrar logo porque já estava ficando amedrontado com aquilo tudo, já estava com fome e sede, e ela sempre lhe dava o biscoito e a água que precisava. Sentou um instantinho no meio-fio, baixou a cabeça e ficou pensando no que poderia fazer, para onde poderia seguir naquele momento.
Levantou em seguida e foi seguindo pela rua em busca de um lugar iluminado, onde tivesse gente e ao menos pudesse perguntar às pessoas se tinham visto sua mãe. E quanta inocência, meu Deus!
Noite fechada, as únicas coisas que podia avistar eram casas fechadas e a movimentação de poucos carros que passavam. Enxergou bem longe um monte de luzes acesas e resolveu caminhar até lá.
Chegou numa pracinha abandonada, com mato tomando o lugar de quase tudo, ferrugem tomando conta daquilo que era brinquedo, apenas alguns bancos espalhados pelos cantos. Ficou alegre quando viu o balanço, mas este estava destroçado; correu para olhar o sobe-e-desce, mas este não subia nem descia mais. Sentou num dos bancos e ficou olhando aquele mundo estranho.
A cada instante que passava a fome e a sede aumentavam. Olhou para um lado e para o outro vendo onde poderia encontrar água, até que avistou uma torneira embaixo de uma casinha ali mesmo no meio da praça. Foi até lá, abriu devagarzinho a torneira na maior ânsia e expectativa do mundo, e os olhos brilharam de alegria e a boca se encheu de água assim que ela começou a jorrar.
Mas que água doce e gostosa, saborosa e tudo na vida, tomada com a mão mesmo, enchendo a boca e molhando o rosto todo, enchendo a boca e molhando a roupa toda, enchendo a boca e sendo arremessada pelo ar. Que festa era beber água e matar a sede. E por que não aproveitar para tomar um banho?
Procurou até encontrar no lixo um copo vazio de plástico, lavou direitinho, depois olhou ao redor para ver se vinham pessoas, e então tirou cuidadosamente a roupa já molhada, estendeu num cantinho e foi tomar banho como veio ao mundo, nuzinho da silva.
Era uma festa de água banhando o menino, era o menino em festa por alguns instantes. Até que o frio começou a chegar e Zezinho vestiu novamente a roupa molhada e foi sentar novamente no banco da praça. A sede não existia mais, estava tomado banho, o problema era a fome que aumentava ainda mais.
Você está com fome Zezinho? Jurou ter ouvido a voz de sua mãe perguntando isso. Alegrou-se olhando para ver se a enxergava, mas nem um vulto sequer. E não teve jeito. Foi a primeira vez que Zezinho abriu sacos de lixo para encontrar comida. E comeu restos de qualquer coisa sem poder reclamar.
E foi a primeira vez também que dormiu ao relento, abandonado, no meio do mundo.
continua...
Poeta e cronista
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quinta-feira, 21 de outubro de 2010
AQUERDITE CUMPADE, MAI JÁ VI QUASE TUDO! (Crônica)
AQUERDITE CUMPADE, MAI JÁ VI QUASE TUDO!
Rangel Alves da Costa*
Mas não pode seu Lameu, o senhor ainda é bom moço pra dizer que já passou, já viveu e já viu essas coisas todas, afirmou o turista encantado com as histórias contadas pelo velho sertanejo.
Não era ancião de curvar o corpo nem viver dolorido em cima de uma cama, mas era bem velho sim, pois tinha uns setenta anos. E a pessoa que chega a essa idade no sertão já é pra estar com o corpo moidinho, com as forças desvanecidas, a saúde num deus-dará e as esperanças correndo logo pra debaixo da terra.
No sertão, o menino já se torna adulto num pé de vento; o adulto envelhece sem se tornar velho; e o velho, quando dá sorte de envelhecer, se torna num misto de pedra e mandacaru esturricado que nem morre nem deixa de existir debaixo do sol do sertão. Seu Lameu era assim, pedra e mandacaru, cacto histórico com a teimosia de não querer partir.
E contava as peripécias de ser testemunha ocular de acontecimentos que ninguém dava por verdadeiros e os que diziam não passar de estórias de trancoso. Mas o velho jurava, e no final ficava valendo o juramento do homem, mesmo que ninguém jamais dissesse que botava a mão no fogo sobre o dito e relatado.
"Pois é, menino, vi tudo nessa vida, e num sou homi de menti não, nem os meus oios se engana facirmente não. Se digo qui foi pruque foi, e ai daquele qui venha me driminti, qui é pa eu dizê mai coisa pa lhe cortá coração...".
"Vi vaca e boi chorá cuma chora minino cum fome. Foi na seca de 70, quano o sertão quasi incidiou e a terra esturricou todinha qui parecia peda rachada queimano os pé da gente. Inté mandacaru, xiquexique e facheiro morreu, os tanque foi tudo aterrado pela poeira seca, as cacimba sumiu tudim dos riacho, cumida num tinha mai nem pá homi nem pá bicho. Inquanto gente morria de fome. sede e tristeza, os bicho chorava qui nem criança. Teve vaca qui se jogou ribancera abaixo só pá morrer mai ligero. Isso ninguém diz qui é mentira não, pruque eu vi. A vaca era minha, e era a única qui eu tinha...".
Mas não chore seu Joaquim, pois isso já passou, dizia o turista. Mas a coisa foi assim tão braba mesmo?
"Num foi tum braba cuma foi assombrosa, medonha, uma danação mermo. Mai vi muito mai coisa seu moço. Aqui mermo nesse lugar, aqui mermo nesse sertão, já vi bicho falá, já vi gente disinterrá butija, lobisome e bicho sem cabeça aparecer, pade ser amante de mai de cem, gente boazinha inlouquecê de uma hora pa outa, famia comeno parma feito bicho, coroné de mil tarefa mandá matá o vizinho pru causo de dois parmo de chão, o sol chorano dizeno qui tá cum sede e a lua num querer aparecer cum medo da escuridão..."
Mas não pode ser seu Lameu, o senhor viu mesmo isso tudo acontecer? Então me conte, me conte, insistia o turista, colocando na mão do homem mais uma nota dobrada. E depois de passar o canto de olho sobre o dinheiro e guardá-lo na calça de muito uso, o velho continuava:
"O causo das butija era ansim; o povo de famia mai rica aqui do sertão, tarvez cum medo de Lampião e seus cabra e inté da poliça, qui num podia ver dinheiro que levava, tinha um modo de esconder seus dinheiro e suas riqueza embaixo do chão, num buraco que eles cavava ali mermo na casa ou nos arredor e qui somente eles sabia o lugar certo onde tava. Quando percisava só era ir lá, cavar um bucadim e tirá o ouro qui quisesse ou a quantia qui precisasse. Só qui muitas veiz, o sujeito rico morria e a riqueza ficava lá interrada. E aí quano o difunto se arrependia pro ter deixado tantas coisa sem serventia e quiria ajudá argum parente ou argum pobre, aparecia a eles de noite, feito visagem, feito arma do outro mundo, e dizia cuma a pessoa devia fazê para desenterrar a tar butija. Só que as exigença era muita e qui eu saiba sumente uma pessoa do lugar cunsiguiu disinterrá uma butija. Só qui o difunto já tava pobe e pensava que tinha murrido rico. No final das conta, o que o homi disinterrou foi somente doi réis, qui num deu nem pagá o trabaio que teve...".
"E tem aquele dos boi e das vaca qui falava. Foi ansim: um dia eu ia caminhando...".
Já chega seu Lameu, já chega. Estou muito satisfeito com suas histórias, disse o turista, parecendo não estar disposto a saber o que conversavam os animais. Já imaginava o que eles diziam entre si: "Você hoje está um estouro de touro, vamos dar um voltinha?"; "Você continua uma vaca, hein?".
Poeta e cronista
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Rangel Alves da Costa*
Mas não pode seu Lameu, o senhor ainda é bom moço pra dizer que já passou, já viveu e já viu essas coisas todas, afirmou o turista encantado com as histórias contadas pelo velho sertanejo.
Não era ancião de curvar o corpo nem viver dolorido em cima de uma cama, mas era bem velho sim, pois tinha uns setenta anos. E a pessoa que chega a essa idade no sertão já é pra estar com o corpo moidinho, com as forças desvanecidas, a saúde num deus-dará e as esperanças correndo logo pra debaixo da terra.
No sertão, o menino já se torna adulto num pé de vento; o adulto envelhece sem se tornar velho; e o velho, quando dá sorte de envelhecer, se torna num misto de pedra e mandacaru esturricado que nem morre nem deixa de existir debaixo do sol do sertão. Seu Lameu era assim, pedra e mandacaru, cacto histórico com a teimosia de não querer partir.
E contava as peripécias de ser testemunha ocular de acontecimentos que ninguém dava por verdadeiros e os que diziam não passar de estórias de trancoso. Mas o velho jurava, e no final ficava valendo o juramento do homem, mesmo que ninguém jamais dissesse que botava a mão no fogo sobre o dito e relatado.
"Pois é, menino, vi tudo nessa vida, e num sou homi de menti não, nem os meus oios se engana facirmente não. Se digo qui foi pruque foi, e ai daquele qui venha me driminti, qui é pa eu dizê mai coisa pa lhe cortá coração...".
"Vi vaca e boi chorá cuma chora minino cum fome. Foi na seca de 70, quano o sertão quasi incidiou e a terra esturricou todinha qui parecia peda rachada queimano os pé da gente. Inté mandacaru, xiquexique e facheiro morreu, os tanque foi tudo aterrado pela poeira seca, as cacimba sumiu tudim dos riacho, cumida num tinha mai nem pá homi nem pá bicho. Inquanto gente morria de fome. sede e tristeza, os bicho chorava qui nem criança. Teve vaca qui se jogou ribancera abaixo só pá morrer mai ligero. Isso ninguém diz qui é mentira não, pruque eu vi. A vaca era minha, e era a única qui eu tinha...".
Mas não chore seu Joaquim, pois isso já passou, dizia o turista. Mas a coisa foi assim tão braba mesmo?
"Num foi tum braba cuma foi assombrosa, medonha, uma danação mermo. Mai vi muito mai coisa seu moço. Aqui mermo nesse lugar, aqui mermo nesse sertão, já vi bicho falá, já vi gente disinterrá butija, lobisome e bicho sem cabeça aparecer, pade ser amante de mai de cem, gente boazinha inlouquecê de uma hora pa outa, famia comeno parma feito bicho, coroné de mil tarefa mandá matá o vizinho pru causo de dois parmo de chão, o sol chorano dizeno qui tá cum sede e a lua num querer aparecer cum medo da escuridão..."
Mas não pode ser seu Lameu, o senhor viu mesmo isso tudo acontecer? Então me conte, me conte, insistia o turista, colocando na mão do homem mais uma nota dobrada. E depois de passar o canto de olho sobre o dinheiro e guardá-lo na calça de muito uso, o velho continuava:
"O causo das butija era ansim; o povo de famia mai rica aqui do sertão, tarvez cum medo de Lampião e seus cabra e inté da poliça, qui num podia ver dinheiro que levava, tinha um modo de esconder seus dinheiro e suas riqueza embaixo do chão, num buraco que eles cavava ali mermo na casa ou nos arredor e qui somente eles sabia o lugar certo onde tava. Quando percisava só era ir lá, cavar um bucadim e tirá o ouro qui quisesse ou a quantia qui precisasse. Só qui muitas veiz, o sujeito rico morria e a riqueza ficava lá interrada. E aí quano o difunto se arrependia pro ter deixado tantas coisa sem serventia e quiria ajudá argum parente ou argum pobre, aparecia a eles de noite, feito visagem, feito arma do outro mundo, e dizia cuma a pessoa devia fazê para desenterrar a tar butija. Só que as exigença era muita e qui eu saiba sumente uma pessoa do lugar cunsiguiu disinterrá uma butija. Só qui o difunto já tava pobe e pensava que tinha murrido rico. No final das conta, o que o homi disinterrou foi somente doi réis, qui num deu nem pagá o trabaio que teve...".
"E tem aquele dos boi e das vaca qui falava. Foi ansim: um dia eu ia caminhando...".
Já chega seu Lameu, já chega. Estou muito satisfeito com suas histórias, disse o turista, parecendo não estar disposto a saber o que conversavam os animais. Já imaginava o que eles diziam entre si: "Você hoje está um estouro de touro, vamos dar um voltinha?"; "Você continua uma vaca, hein?".
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Sem palavras (Poesia)
Sem palavras
Não sei por quê
e não tem motivo algum
mas sempre que vou dizer
que te quero porque te amo
a boca é silenciada porque
passa um passarinho entre nós
cai repentinamente a chuva
folhas de outono nos cegam
ecos de vozes nos chamam
estrelas cadentes nos rondam
o pensamento voa
a palavra é esquecida
o amor a ser dito some
ficamos apenas nos olhando
sem saber porque
até que você se assusta
e me dá um abraço
e os corações sorriem
da nossa inocência
e conversam baixinho
e se beijam e se amam
e dizem tudo que
não nos cabe dizer
com palavras.
Rangel Alves da Costa
Não sei por quê
e não tem motivo algum
mas sempre que vou dizer
que te quero porque te amo
a boca é silenciada porque
passa um passarinho entre nós
cai repentinamente a chuva
folhas de outono nos cegam
ecos de vozes nos chamam
estrelas cadentes nos rondam
o pensamento voa
a palavra é esquecida
o amor a ser dito some
ficamos apenas nos olhando
sem saber porque
até que você se assusta
e me dá um abraço
e os corações sorriem
da nossa inocência
e conversam baixinho
e se beijam e se amam
e dizem tudo que
não nos cabe dizer
com palavras.
Rangel Alves da Costa
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 2 (Conto)
ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 2
Rangel Alves da Costa*
O ônibus chegou à capital por volta do meio-dia e assim que estacionou no terminal rodoviário o local parecia mais um formigueiro de gente. Dali, Rosinha e Zezinho teriam que esperar chegar o entardecer para embarcar noutro transporte. Este diretamente para a capital sulista, onde depois do cansaço dos infinitos quilômetros percorridos, esperariam encontrar o conforto do abraço da parenta que estaria aguardando a chegada dos dois.
Contudo, nem de longe tal destino seria alcançado, pois quando o ônibus chegou nesse primeiro terminal de desembarque, num segundo apenas a mãe soltou o braço do filho e a multidão se encarregou de separá-los para sempre.
Foi realmente questão de segundos. Tudo muito rápido e inesperado. Bastou se abaixar um pouco para pegar a mala, soltar a mão do menino, e até sempre. E por mais que gritasse pelo nome do filho, empurrasse e afastasse as pessoas, corresse de um lado pra outro, perguntasse a um e a outro se o tinham visto, começasse a chorar e a se desesperar, nada de Zezinho.
Diante do alvoroço da mulher, acorreram guardas, vigilantes e policiais para saber o que estava ocorrendo, e então começou outra correria para procurar o menino. Anunciaram no serviço de som, berraram e gritaram, vasculharam em cada lugar e canto, por baixo das cadeiras e nos banheiros, nos corredores do terminal, dentro das lojas e guichês, porém nada de encontrar o menino.
A cada nova notícia desanimadora que chegavam para informar, mais a pobre mãe ficava aflita e chorava, chegando por vezes a gritar "Quero meu filho, quero meu filho... Zezinho, ô Zezinho, apareça meu filho, pelo amor de Deus".
Mais de uma hora nessa angústia e nem o menor sinal de Zezinho. Pessoas chegavam para confortar a mãe e dizer que ficasse calma que o filho seria encontrado e grande parte delas sempre insistiam para que tomasse um calmante, um remédio disso e daquilo, um comprimido para acalmar. E a mulher ficava cada vez mais entupida de remédios, até que o coração reagiu, não suportou e parou repentinamente.
Rosinha, de uma vermelhidão intensa quando começou o ataque, logo depois de cair ficou com um arroxeado esquisito e olhos esbugalhados. Morta, estirada no chão desconhecido, a sertaneja teve seu destino interrompido ali mesmo, naquele momento. Não reencontrou o filho, não o reencontraria jamais, ao menos naquele corpo amoroso de mãe.
Não demorou muito e recolheram o corpo indigente. Por incrível que pareça, não se preocupam com a vida, a saúde e a segurança das pessoas, mas basta que algum pobre caia desfalecido em local de grande aglomeração e logo chegam os serviços públicos para recolhê-lo, para levá-lo só Deus sabe pra onde.
Nem pensar em deixar um pobre corpo estendido num local onde poderia enfear a imagem da cidade. A cidade grande é importante demais diante de um reles corpo estendido no chão. Depois se torna apenas estatística, cova rasa e esquecimento.
Verdade é que Rosinha morreu e deixou seu filho de apenas seis anos perdido naquele local desconhecido, naquela cidade grande, naquele mundo sem ninguém que o conhecesse e olhasse por ele. Ainda existia o problema de ele estar sumido.
Mas onde estaria Zezinho?
Assim que a mãe soltou sua mão, Zezinho foi sendo empurrado pela imensidão de pessoas que estavam no terminal e acabou bem na porta de outro ônibus que ia ser recolhido para a garagem após todos os passageiros descerem. O motorista e o cobrador, que conversavam do lado de fora, nem viram quando o menino foi subindo e caminhando pelo corredor totalmente vazio.
Inocente, assustado, pensou apenas em sentar um pouco num daqueles bancos até tudo ficar mais calmo, para em seguida ir para junto de sua mãe. Escolheu uma poltrona bem confortável ao fundo e sentou, olhando para o movimento lá fora.
Dormiu como dorme uma criança, repentinamente. Motorista e cobrador entraram no ônibus, nem perceberam o que havia ocorrido, nem imaginavam que ali dormia um pequeno passageiro, e o veículo começou a manobrar, seguindo diretamente para a garagem.
Zezinho dormia e sonhava com o seu carro-pipa feito com lata de óleo e as duas pontas de vaca que formavam o seu rebanho, todos deixados lá no sertão. Esquecidos lá no sertão...
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
O ônibus chegou à capital por volta do meio-dia e assim que estacionou no terminal rodoviário o local parecia mais um formigueiro de gente. Dali, Rosinha e Zezinho teriam que esperar chegar o entardecer para embarcar noutro transporte. Este diretamente para a capital sulista, onde depois do cansaço dos infinitos quilômetros percorridos, esperariam encontrar o conforto do abraço da parenta que estaria aguardando a chegada dos dois.
Contudo, nem de longe tal destino seria alcançado, pois quando o ônibus chegou nesse primeiro terminal de desembarque, num segundo apenas a mãe soltou o braço do filho e a multidão se encarregou de separá-los para sempre.
Foi realmente questão de segundos. Tudo muito rápido e inesperado. Bastou se abaixar um pouco para pegar a mala, soltar a mão do menino, e até sempre. E por mais que gritasse pelo nome do filho, empurrasse e afastasse as pessoas, corresse de um lado pra outro, perguntasse a um e a outro se o tinham visto, começasse a chorar e a se desesperar, nada de Zezinho.
Diante do alvoroço da mulher, acorreram guardas, vigilantes e policiais para saber o que estava ocorrendo, e então começou outra correria para procurar o menino. Anunciaram no serviço de som, berraram e gritaram, vasculharam em cada lugar e canto, por baixo das cadeiras e nos banheiros, nos corredores do terminal, dentro das lojas e guichês, porém nada de encontrar o menino.
A cada nova notícia desanimadora que chegavam para informar, mais a pobre mãe ficava aflita e chorava, chegando por vezes a gritar "Quero meu filho, quero meu filho... Zezinho, ô Zezinho, apareça meu filho, pelo amor de Deus".
Mais de uma hora nessa angústia e nem o menor sinal de Zezinho. Pessoas chegavam para confortar a mãe e dizer que ficasse calma que o filho seria encontrado e grande parte delas sempre insistiam para que tomasse um calmante, um remédio disso e daquilo, um comprimido para acalmar. E a mulher ficava cada vez mais entupida de remédios, até que o coração reagiu, não suportou e parou repentinamente.
Rosinha, de uma vermelhidão intensa quando começou o ataque, logo depois de cair ficou com um arroxeado esquisito e olhos esbugalhados. Morta, estirada no chão desconhecido, a sertaneja teve seu destino interrompido ali mesmo, naquele momento. Não reencontrou o filho, não o reencontraria jamais, ao menos naquele corpo amoroso de mãe.
Não demorou muito e recolheram o corpo indigente. Por incrível que pareça, não se preocupam com a vida, a saúde e a segurança das pessoas, mas basta que algum pobre caia desfalecido em local de grande aglomeração e logo chegam os serviços públicos para recolhê-lo, para levá-lo só Deus sabe pra onde.
Nem pensar em deixar um pobre corpo estendido num local onde poderia enfear a imagem da cidade. A cidade grande é importante demais diante de um reles corpo estendido no chão. Depois se torna apenas estatística, cova rasa e esquecimento.
Verdade é que Rosinha morreu e deixou seu filho de apenas seis anos perdido naquele local desconhecido, naquela cidade grande, naquele mundo sem ninguém que o conhecesse e olhasse por ele. Ainda existia o problema de ele estar sumido.
Mas onde estaria Zezinho?
Assim que a mãe soltou sua mão, Zezinho foi sendo empurrado pela imensidão de pessoas que estavam no terminal e acabou bem na porta de outro ônibus que ia ser recolhido para a garagem após todos os passageiros descerem. O motorista e o cobrador, que conversavam do lado de fora, nem viram quando o menino foi subindo e caminhando pelo corredor totalmente vazio.
Inocente, assustado, pensou apenas em sentar um pouco num daqueles bancos até tudo ficar mais calmo, para em seguida ir para junto de sua mãe. Escolheu uma poltrona bem confortável ao fundo e sentou, olhando para o movimento lá fora.
Dormiu como dorme uma criança, repentinamente. Motorista e cobrador entraram no ônibus, nem perceberam o que havia ocorrido, nem imaginavam que ali dormia um pequeno passageiro, e o veículo começou a manobrar, seguindo diretamente para a garagem.
Zezinho dormia e sonhava com o seu carro-pipa feito com lata de óleo e as duas pontas de vaca que formavam o seu rebanho, todos deixados lá no sertão. Esquecidos lá no sertão...
continua...
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