SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 2 de outubro de 2010

A COCADA OU A VIDA (Crônica)

A COCADA OU A VIDA

Rangel Alves da Costa*


Lá no sertão que conheço, lá nas terras onde nasci, vi com os olhos a verdade, conheci mentira e seriedade, e vou contar sem mais nem metade como faz sertanejo pra sobreviver, na luta no cotidiano de sol, na sina que se tem como herdade.
Dona Zefinha acordava cedinho, se benzia e se derramava em prece e oração, cortava chão, entrava em vereda e cortava estradinha, se espinhava todinha, suava e se lanhava para avistar o rochedo onde ia buscar a matéria-prima para fazer seu ganha-pão, para comprar o de comer e enlarguecer a barriga da meninada. Êta meninada que come tudo é essa sertaneja, principalmente barro da tapera quando a tapera tem.
Não tinha medo de cobra, mas serpente tinha demais. Se benzia de novo, rezava dois terços e se entregava nas mãos de São Bento, que é o santo protetor contra mordida de cobra, e começava a subir a pedra para catar nas suas frestas o cacto que precisava para fazer cocada sertaneja, bonita e gostosa, que é só comer dois pedacinhos e tomar uma caneca que de água de pote ou moringa que não vai ter fome por seis horas seguidas.
Essa cocada deliciosa é feita de cabeça-de-frade, uma espécie de cacto muito popular no sertão e que muita madame da cidade grande usa para enfeitar seus jardins e suas salas brilhosas. Mas lá não, pois ou serve para ficar enfeitando o rochedo em cujas fendas costuma brotar, furar os pés de quem andar desavisado pelas brenhas caipiras ou para fazer a cocada trabalhosa por demais, porém gostosa que ninguém esquece.
Dá um trabalhado danado preparar a cocada de cabeça-de-frade. Nunca vi fazer não, e tudo que digo aqui é pelo que me contaram. Mas comer comi, e muito, e nesse momento me dá água na boca só de pensar naquela bandeja de madeira em cima da mesinha de Dona Zefinha – a partir do meio-dia na janela e mais tarde na calçada da casa – toda bonita com a guloseima espalhada nela.
Pelo que ouvi dizer, Dona Zefinha mete o facão pela fenda da rocha, corta a raiz do cacto e depois segura com uma luva de couro e coloca num cesto, de modo que os muitos e pontiagudos espinhos não passem nem perto da pele. Uma furada só e é capaz do cristão perder o dedo, o pé ou até a mão. Depois disso, após transportar com rodilha na cabeça o cesto com as cabeças-de-frade, derrama a coleta no quintal e cuidadosamente vai tirando a parte de cima onde estão os espinhos.
Assim, o que antes era feito bicho bruto, se transforma em algo como uma bola esverdeada, cuja carne é branquinha e saborosa. Depois de toda limpinha, a carne do cacto é cortada em pequenos cubos e colocada numa panela de barro, onde já estão o açúcar e o coco ralado. Depois é só colocar água na medida, cravo e outras especiarias e deixar ferver, mexendo levemente, até chegar no ponto. Quando o doce estiver pastoso e grudando na colher de pau é porque já está pronto para ser derramado na salva de madeira.
Do meio-dia em diante já se avista o pano branquinho rendado cobrindo a cocada na janela de Dona Zefinha. Por perto tem sempre uma moringa com água fria e uma caneca de alumínio. É só levar doistões e dizer quantos pedaços quer que a senhora vai cortando cuidadosamente, coloca num pedaço de papel de venda e manda que o moço se assente no baquinho pra se deliciar melhor. Isso é estratégia da sertaneja, pois sabe que ninguém é capaz de se satisfazer com um pedaço só.
E juntando vintém com a venda de sua cocada, Dona Zefinha vai criando seus meninos. Mais tarde, quando o sol já estiver mais frio, leva pra calçada sua almofada grande com recheio de capim macio, suas caixas, seus moldes, suas linhas, alfinetes e seus bilros e começa a fazer renda. É uma maravilha se ver a maestria de Dona Zefinha mexendo com habilidade suas mãos e dedos para, passo a passo, ponto por ponto, ir bordando aquilo que mais tarde se transformará numa lida peça artesanal, numa toalha de mesa pra gente grã-fina.
Depois de dar café com pão aos meninos, Dona Zefinha ainda proseia com a vizinha enquanto quebra o coco para a cocada do dia seguinte. Machucou o dedo, mas é isso mesmo. Amanhã tem que está tudo bem, pois irá fazer tudo novamente, ir para o mato, fazer cocada e procurar viver. Êta vida, Dona Zefinha!...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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