AQUERDITE CUMPADE, MAI JÁ VI QUASE TUDO!
Rangel Alves da Costa*
Mas não pode seu Lameu, o senhor ainda é bom moço pra dizer que já passou, já viveu e já viu essas coisas todas, afirmou o turista encantado com as histórias contadas pelo velho sertanejo.
Não era ancião de curvar o corpo nem viver dolorido em cima de uma cama, mas era bem velho sim, pois tinha uns setenta anos. E a pessoa que chega a essa idade no sertão já é pra estar com o corpo moidinho, com as forças desvanecidas, a saúde num deus-dará e as esperanças correndo logo pra debaixo da terra.
No sertão, o menino já se torna adulto num pé de vento; o adulto envelhece sem se tornar velho; e o velho, quando dá sorte de envelhecer, se torna num misto de pedra e mandacaru esturricado que nem morre nem deixa de existir debaixo do sol do sertão. Seu Lameu era assim, pedra e mandacaru, cacto histórico com a teimosia de não querer partir.
E contava as peripécias de ser testemunha ocular de acontecimentos que ninguém dava por verdadeiros e os que diziam não passar de estórias de trancoso. Mas o velho jurava, e no final ficava valendo o juramento do homem, mesmo que ninguém jamais dissesse que botava a mão no fogo sobre o dito e relatado.
"Pois é, menino, vi tudo nessa vida, e num sou homi de menti não, nem os meus oios se engana facirmente não. Se digo qui foi pruque foi, e ai daquele qui venha me driminti, qui é pa eu dizê mai coisa pa lhe cortá coração...".
"Vi vaca e boi chorá cuma chora minino cum fome. Foi na seca de 70, quano o sertão quasi incidiou e a terra esturricou todinha qui parecia peda rachada queimano os pé da gente. Inté mandacaru, xiquexique e facheiro morreu, os tanque foi tudo aterrado pela poeira seca, as cacimba sumiu tudim dos riacho, cumida num tinha mai nem pá homi nem pá bicho. Inquanto gente morria de fome. sede e tristeza, os bicho chorava qui nem criança. Teve vaca qui se jogou ribancera abaixo só pá morrer mai ligero. Isso ninguém diz qui é mentira não, pruque eu vi. A vaca era minha, e era a única qui eu tinha...".
Mas não chore seu Joaquim, pois isso já passou, dizia o turista. Mas a coisa foi assim tão braba mesmo?
"Num foi tum braba cuma foi assombrosa, medonha, uma danação mermo. Mai vi muito mai coisa seu moço. Aqui mermo nesse lugar, aqui mermo nesse sertão, já vi bicho falá, já vi gente disinterrá butija, lobisome e bicho sem cabeça aparecer, pade ser amante de mai de cem, gente boazinha inlouquecê de uma hora pa outa, famia comeno parma feito bicho, coroné de mil tarefa mandá matá o vizinho pru causo de dois parmo de chão, o sol chorano dizeno qui tá cum sede e a lua num querer aparecer cum medo da escuridão..."
Mas não pode ser seu Lameu, o senhor viu mesmo isso tudo acontecer? Então me conte, me conte, insistia o turista, colocando na mão do homem mais uma nota dobrada. E depois de passar o canto de olho sobre o dinheiro e guardá-lo na calça de muito uso, o velho continuava:
"O causo das butija era ansim; o povo de famia mai rica aqui do sertão, tarvez cum medo de Lampião e seus cabra e inté da poliça, qui num podia ver dinheiro que levava, tinha um modo de esconder seus dinheiro e suas riqueza embaixo do chão, num buraco que eles cavava ali mermo na casa ou nos arredor e qui somente eles sabia o lugar certo onde tava. Quando percisava só era ir lá, cavar um bucadim e tirá o ouro qui quisesse ou a quantia qui precisasse. Só qui muitas veiz, o sujeito rico morria e a riqueza ficava lá interrada. E aí quano o difunto se arrependia pro ter deixado tantas coisa sem serventia e quiria ajudá argum parente ou argum pobre, aparecia a eles de noite, feito visagem, feito arma do outro mundo, e dizia cuma a pessoa devia fazê para desenterrar a tar butija. Só que as exigença era muita e qui eu saiba sumente uma pessoa do lugar cunsiguiu disinterrá uma butija. Só qui o difunto já tava pobe e pensava que tinha murrido rico. No final das conta, o que o homi disinterrou foi somente doi réis, qui num deu nem pagá o trabaio que teve...".
"E tem aquele dos boi e das vaca qui falava. Foi ansim: um dia eu ia caminhando...".
Já chega seu Lameu, já chega. Estou muito satisfeito com suas histórias, disse o turista, parecendo não estar disposto a saber o que conversavam os animais. Já imaginava o que eles diziam entre si: "Você hoje está um estouro de touro, vamos dar um voltinha?"; "Você continua uma vaca, hein?".
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Gostei deste Seu Lameu, mas imagino a perdição do turista,kkk.Bem bolada Rangel,pelo menos ele aprendeu sobre muitas coisas do sertão.Um abraço de paz.
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