QUANDO EXISTIA VIDA
Rangel Alves da Costa*
Quando os seus avôs chegaram às redondezas ainda cresciam matos, plantas nativas e árvores frutíferas por toda a região. Poucas casas existiam e a natureza tomava conta dos campos e descampados. Foram, por assim dizer, dos primeiros desbravadores daquele local que hoje cedia lugar a uma rua intransitável, inabitável e verdadeiramente desumana.
Quando os seus pais resolveram continuar no lugar, ainda se podia contar com as graças da natureza, com o ar puro que chegava dos quatro cantos, com o verde e árvores ainda abundantes, com a paz e o sossego propícios a qualquer moradia.
As casas possuíam imensos quintais, não faltavam goiabeiras, mangueiras e jabuticabeiras, nem as hortas com plantas medicinais e galinhas ciscando por todos os lados. As moradias ficavam separadas por cercados de paus ou arames e ainda não se pensava em muros cada vez mais altos. Os vizinhos se encontravam nos fundos ou na frente das casas e, nas cadeiras de balanço nas tardes sombreadas, conversavam o bom conversar dos amigos.
Filha única, quando os seus pais faleceram já estava moça feita e nem pensava em casar. Estudou para ser professora e exercia seu mister grandioso numa escola logo dois trechos a seguir de onde morava. Contudo, continuou sendo uma estudiosa das coisas religiosas, caminhando incansavelmente pelas veredas bíblicas e conhecendo os fundamentos das outras doutrinas religiosas, das crenças, seitas e dogmas. Era a inteligência em pessoa, como diziam os amigos.
Sentada no seu piano de cauda ao entardecer, quem passava defronte à casa de nº 02 da Rua das Flores podia ouvir belas e comoventes melodias. Muitos diziam que a própria pianista molhava o piano de lágrimas todas as vezes que executava "Fascinação". Também escrevia versos de solidão, como gostava de afirmar, com rimas perfeitas e apuro na criação poética. Por trás dos versos de solidão o que se podia ler eram pétalas de amor e de paixão a ser correspondida.
Quem correspondeu aos chamados do coração foi um rapaz do tipo conservador, bem apessoado, sempre impecavelmente vestido com roupa do mais fino tecido, chapéu da moda na cabeça, guarda-chuva sempre na mão e floreios no linguajar para encantar a professorinha, poeta e pianista. E mulher, principalmente mulher, e que bela e dedicada mulher, mantendo sempre essa magnífica postura por toda a vida.
Casou com o jovem bonito e formaram durante mais de dez anos um casal exemplar, digno de se ver tanta beleza e união. Contudo, um mal súbito o levou muito cedo, numa tarde chuvosa enquanto ela dedilhava ao piano. Ficou viúva e entristecida, sem filhos para receber o precioso alento, mas não menos cheia de vida e persistindo no seu ofício, na sua música e na sua poesia.
Um dia, enquanto caminhava pelo pequeno jardim, sentou num dos bancos de madeira e ficou imaginando como aquilo tudo ao redor havia mudado e estava cada vez mais mudando aceleradamente. Para pior, contudo. A própria casa, que era em vão aberto, agora necessitava de muros para ter proteção.
Apenas umas pequenas árvores restaram nos arredores e os quintais foram diminuídos para ceder lugar a novas construções. A maioria dos vizinhos era desconhecida, e as casas só não engoliam umas às outras por causa dos muros. Não havia mais rua com terra nem meninos brincando no campinho ao lado. Tudo era tráfego e movimento. Tudo era muito feio, tudo era progresso demais.
Passados alguns anos, morando sozinha e já envelhecida, sentia que se quisesse caminhar ao menos por instantes pelas vizinhanças seria correr risco de vida. Logo quando o sol saía começavam os barulhos ensurdecedores, a vida perdia o sentido, tudo era muito embrutecedor e insensível. Teve que mandar aumentar os muros na mesma altura da casa.
Não havia mais silêncio, sumiu a paz, desapareceu a natureza. Via o sol e a lua apenas pelo que restava de quintal. Mas era como uma prisioneira saindo para tomar o seu banho de sol diário. O resto era prisão, tristeza e solidão.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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