SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 9 de outubro de 2010

QUE VIDA DURA, SEU MOÇO! (Crônica)

QUE VIDA DURA, SEU MOÇO!

Rangel Alves da Costa*


Que vida dura, seu moço, é a vida sertaneja, caminhando pelas veredas com espinho apontado pra tudo; cortando a mataria com as surpresas de dor e sangue por trás de cada moita e cada curva de estrada; desbravando na ponta do facão o sertão que não é de ninguém, principalmente porque só pode se arvorar do lugar quem for bicho. E como tem bicho no sertão, seu moço, magrinho, raquítico, com as costelas de fora, mas com a força de gigante, com a força de homem/bicho.
Cangaceiro sabia bem como era viver nessa empreitada chamada vida. Menino nascido no mato, bebendo água de poço, comendo ilusões sem sal, se estropiando todo desde menininho, mas já com conhecimento do mundo e o seu sofrimento como gente grande, quando entrava para a sina cangaceira tudo aquilo já era mais que sabido de outras lições. Apenas requentava a cuia e ia tocaiar.
Mandacaru, xiquexique, palma, facheiro, urtiga, cansanção, espinho de quipá, ponta afiada de galho de catingueira, ponta de espinho de umburana, jararaca, cascavel, cobra coral, jaracuçu, jiboia, formiga de fogo, fome, sede, desconfiança, tocaia, tiro, traição, o desconhecido por todo lugar, a emboscada no meio da noite e rajada logo ao amanhecer, o grito, o sangue, a dor, a morte. A salvação não, nem aqui embaixo nem lá por cima. Pois tudo isso já se conhece, já se vive, já é destino no sertão, seu moço!
Ainda rapazote, o menino já derretido feito velho que volta da luta, ainda assim enquanto viver será um eterno destemido. A cruz do Senhor caindo em volta do pescoço e se derramando pelo peito moreno tosquiado de sol, é o primeiro sinal que o jovem cangaceiro está pronto, disposto a enfrentar tudo de bom e ruim que possa lhe acontecer, certo que não terá o que fazer senão matar ou morrer.
Mas do outro lado, seu moço, tem homem/bicho também. Muita gente da volante, polícia ou macacada era ali mesmo do sertão. Às vezes nascido no mesmo lugar ou nas redondezas, quem sabe parente, correnteza do mesmo sangue, mas um caçava o outro, seguia no encalço do outro para matar, para ferir, para acabar com aquela raça imprestável. Mas qual era a raça que era imprestável, seu moço, era a cangaceira ou a policial?
Tenho dúvida não, seu moço, as duas raças se mereciam, não dando pra trocar uma pela outra nem com a gota serena. E se mereciam porque ao invés de andar se matando deviam mesmo era ir caçar o verdadeiro inimigo. Aquele mesmo, de charuto no dedo, do clientelismo, do mandonismo, do poder às custas da miséria dos outros.
A raça cangaceira, seu moço, historicamente, sempre agiu em legítima defesa. Não apenas na concepção vulgar de matar para não morrer, mas sim na verdadeira noção de luta contra a exploração que o humilde sertanejo sempre foi objeto; contra o poder do cemitério chamado latifúndio e do carrasco chamado latifundiário; contra a tirania face a si praticada como se a dignidade do homem nascesse da dor para servir ao político, ao coronel, ao dono do poder e do mundo sertanejo.
Lampião foi apenas um dos heróis dessa gente desesperançada que apenas queria viver com dignidade. E quantos sertanejos não seguiram os seus passos pensando que a redenção do mundo e o combate a todas as injustiças só pudesse ser feito através do combate sangrento, do tiro sertão adentro e das mortes por todos os lugares?
O problema, seu moço, é que nessa vindita maldita, irmão do sertão matava irmão do sertão, enquanto os culpados por aquela situação toda ficavam sabendo das misérias dos outros nas suas casa-grande, nos seus gabinetes, nos seus centros de poder e mando. Daí perguntar, seu moço, se a bala que matou Lampião não poderia ter tido outra direção.
Contra tudo isso um dia também se revoltou o Velho Conselheiro, homem sábio demais, seu moço, para sonhar tantos sonhos deitado numa cama de espinhos e urtigas e sobre a claridade dos fuzis dos poderosos. Restou o canto, seu moço; restou o canto seu moço:
"Marcado pela própria natureza, o nordeste do meu Brasil/ Oh! solitário sertão de sofrimento e solidão/ A terra é seca, mal se pode cultivar/ Morrem as plantas e foge o ar, a vida é triste nesse lugar/ Sertanejo é forte, supera miséria sem fim/ Sertanejo homem forte, dizia o Poeta assim/ Foi no século passado, no interior da Bahia/ O Homem revoltado com a sorte do mundo em que vivia/ Ocultou-se no sertão espalhando a rebeldia/ Se revoltando contra a lei que a sociedade oferecia/ Os Jagunços lutaram até o final defendendo Canudos naquela guerra fatal".
Até o sábio Conselheiro, seu moço, e quem dirá o matuto, o sertanejo de raiz e que a única lição da vida que aprende é que já nasceu velho demais para suportar tantas injustiças? Por isso é que passarinho sabiá um dia falou pra mim, seu moço: "Já que é assim, melhor nem nascer...".




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: