A CASA E A VIDA DO MONSTRO – 8
Rangel Alves da Costa*
Dona Mundinha podia cansar de gritar que ainda assim o seu filho não poderia ouvi-la, ao menos por aqueles instantes. Assim que deixou a mãe na sala, certamente cheia de acabrunhamentos e de dúvidas, Mehiel acendeu o forno da olaria artesanal que mantinha e foi sentar um pouquinho mais afastado, debaixo de um pé de goiabeira que havia por ali.
E pensava e pensava, agora em si mesmo, na sua situação, tentando adivinhar os motivos que faziam com que as pessoas o chamassem de monstro, tratassem como monstro, vivessem espalhando essa história de monstro por aí.
Ora, meu Deus, conversava em silêncio, sou pessoa normal como todas as outras pessoas. Ser pobre não faz diferença nenhuma para ser mais gente ou menos gente, pois me sinto feliz com o que tenho e como sobrevivo. Gostaria de ter muito sim, uma casa maior, uma vida bem melhor, condições melhores de sobrevivência. Riqueza não queria não, pois riqueza é apenas um ter dinheiro, bens e poder, mas sem ter a paz e o sossego que o homem tanto precisa. Quem tem dinheiro não tem tempo de estar na sombra de um pé de goiabeira como essa, não pode comer uma fruta no pé, e praticamente não pode levantar junto com a natureza nem viver o que de melhor ela possa oferecer. Sou pobre, mas posso...
E em meio ao calor começou a soprar uma brisa suave, invadindo aquela paisagem nua e fazendo farfalhar levemente as folhas das plantas e das árvores. E Mehiel continuava com o seu diálogo interior:
Posso viver feliz porque nunca arranjei inimizade com ninguém, nunca arrumei confusão com ninguém, nunca me meti na vida de ninguém. Para mim os outros são apenas os outros, e se eu não puder ser amigo e ajudar, que nenhum mal jamais farei. A vida já é tão pequena para ser diminuída com bobagens; a vida já é tão sofrida para ser magoada com besteiras e bobagens; a vida é tão folha e lápis para que se queira escrevê-la com arma e sangue. E sou feliz por um montão de coisas que não tenho ainda, mas sei que vou ter logo logo, como uma boa mulher ao meu lado, filhos que venham para abençoar a casa e uma caminhada pelos braços de Deus...
E a brisa aumentava e já era vento mais forte, porém suave e gostoso. E num rumo do vento, a natureza assobiava, cantava, zunia, falava. E como é doce e encantadora a voz da natureza. Mehiel sabia disso, por isso sentia ali o cenário perfeito para continuar seu diálogo:
Encontrarei um amor e um amor bem bonito. Já tenho pouco mais dos trinta anos, mas ainda me sinto jovem e forte, cheio de vigor físico e de disposição pra tudo na vida. Meu espelho nunca reclamou do rosto que tenho, da minha morenice clara e do meu cabelo escorrido. É diferente, mas tenho um olho verde outro azul. E teve até um dia que disseram que era bonito, mas isso já faz tempo. Mas não importa não, pois a gente se sente bonito é pelo que faz, pelo que é e pelo que a gente quer ser, e não pelo que os outros querem ou desejam. Perna torta não tenho, não tenho nenhuma desconformidade física, não tenho nenhuma doença graças a Deus, não tenho nenhum vício, nunca matei nem roubei, nunca estuprei nem fiz mal a pessoa alguma, e por que meu Deus, por que essa história de monstro?
Uma goiaba um pouco apodrecida caiu bem ao seu lado, quase atingindo sua cabeça. Ele pegou a fruta um pouco avermelhada demais, abriu ao meio e se pôs a olhar os bichinhos pequeninos que faziam morada na polpa. Colocou no chão e começou a pensar:
Tudo na vida tem o seu monstro. A goiaba podre tem o seu monstro, as outras frutas também possuem os seus monstrinhos. No entanto, o caminhante faminto ou menino do mato pega a goiaba e morde e acha deliciosa a fruta, pois não viu o monstrinho que mora lá dentro nem sabe se ele vai fazer mal. Simplesmente o monstro nunca existiu e a vontade que se tem é de comer mais goiaba. E por que monstros existem que não fazem mal e eu, que nunca fui monstro algum, faço tanto medo e causo tanto pavor? Pensava e pensava Mehiel.
E jogando as duas metades bem longe, disse enquanto se levantava: Tem gente que só tem aparência, mas por dentro e no pensamento é igual a fruta podre. Só que o monstro deste fere, destrói, mata. Não podem se curar das suas doenças e querem me ver como o monstro de sua fruta podre. Bem assim é com a lagarta, que todo mundo só gosta quando vira borboleta. Mas não tem nada não. Deixe que todo mundo se iluda que já é borboleta...
Quando já estava chegando perto do forno, ouviu Dona Mundinha gritar: "Meié tô morreno...".
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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