SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 23 de outubro de 2010

SILÊNCIO DE MARIA (Crônica)

SILÊNCIO DE MARIA

Rangel Alves da Costa*


Maria viu quando os bichos se avexaram no meio da noite, sinalizando que estranhos haviam chegado; viu pela fresta os estranhos se escondendo por trás das moitas, fazendo tocaias; viu quando Belarmino ia passando despreocupado na sua montaria; viu quando os homens dispararam contra ele; viu ele caindo e morto; viu os estranhos sumirem na madrugada; e viu tudo acontecer novamente com outras pessoas.
Maria viu tudo, mas ficou em silêncio. Maria não disse nada...
Maria viu que a barra não tinha jeito de se formar no horizonte sertanejo; viu o tempo mudar e ficar cada vez mais quente; viu quando o sol começou a aparecer cada vez mais cedo e ir embora cada vez mais tarde; viu o povo se abanando dia e noite por causa do calor; viu bichos e plantas entristecerem; viu a natureza esturricar, os descampados acinzentarem; viu quando o riacho secou, a água sumiu dos tanques e barreiros; viu quando a água acabou; viu quando a seca escancarou; viu quando não tinha mais planta, viu quando o gado começou a morrer; viu a dor e a tristeza, a lágrima e a agonia.
Maria viu tudo isso, mas ficou em silêncio. Maria não disse nada...
Maria viu a natureza em fúria; viu a mãe terra chorar sem ninguém se importar com a dor; viu as estações se confundirem e inverno se fazer verão, outono querer ser primavera e um jardim se formar na aridez do sertão; viu o rio virar córrego, viu córrego virar lamaçal, viu mar querendo ser rio pra correr nas ribanceiras, mas viu também a correnteza sair do leito e invadir as cidades, derrubando casas, destruindo tudo, levando vidas e sonhos.
Maria viu tudo isso, mas ficou em silêncio. Maria não disse nada...
Maria viu o céu estremecer; viu estrelas cadentes caindo aos seus pés; viu relâmpagos, raios, trovões e trovadas, e viu granizo cair; viu temporais, ventanias e vendavais, assombrosas forças derrubando árvores e espantando bichos, fazendo casas voar pelos ares, viu os ares cheios de coisas que eram da terra; e viu quando o povo fugiu quando o terremoto surgiu, o vulcão explodiu e as lavas se transformaram em veias de sangue procurando vítimas.
Maria viu tudo isso, mas ficou em silêncio. Maria não disse nada...
Maria viu o povo mudar, o povo se transformar, o povo ser menos humano e se tornar mais gente, e gente toda descrente; e por isso viu o pecado se espalhar; viu a idolatria, o ateísmo e a desonra se disseminar; viu o padre pecador, a beata traindo a igreja, o crente traindo a religião; viu o templo sem fiéis, viu o templo sem sermões, viu o templo desacreditado; e viu que muitos caminhavam por outros caminhos para preservar e fortalecer sua fé, pois diziam que nos templos construídos pelo homem estava faltando a presença de Deus.
Maria viu tudo isso, mas ficou em silêncio. Maria não disse nada...
Maria viu a fome diante dos olhos, e viu a feiúra dos olhos da fome; viu crianças chorando sem pão; viu bicho berrando com sede; viu a panela vazia, viu o pote, a lata e a moringa, e viu tudo vazio; viu pai de família erguendo a mão; viu quando deram uma esmola; viu que o tostão da doação matou a fome de muitos; pois viu na casa da família a farinha seca sendo distribuída e pessoas comendo e se engasgando com a maior felicidade do mundo; viu a fome do dia seguinte; viu novamente a mão estendida, mas não viu nada.
Maria viu tudo isso, mas ficou em silêncio. Maria não disse nada...
E por que tanto silêncio Maria? Um dia tive coragem de perguntar. E Maria me respondeu:
"Todo mundo vê isso tudo e ninguém faz nada. Para ver e não poder fazer nada é melhor ficar calada. E quando estou em silêncio é porque estou orando. É como eu posso dizer isso tudo ao meu Deus!".



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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