SERTANEJO AO AMANHECER
Rangel Alves da Costa*
Ele levanta ainda com o dia meio escurecido, no acordar da madrugada, e canta quase o mesmo cantar do galo no poleiro. Em torno das quatro horas já pulou do varal da cama, já calçou as alpercatas de couro cru, já se benzeu, já se dirigiu até a cozinha para acender o fogão de lenha, já colocou o bule com café batido no pilão no fogo, já abriu a porta, já pegou a xícara com a gostura escura de aroma fumegante demais, já bebeu ele todinho ainda quentinho e queimando a goela, já pegou o cigarro de palha ou charuto, já riscou o fósforo na pedra, já acendeu e agora está pitando.
Agora está pitando seu cigarrinho ou charuto com os olhos de pura sabedoria e conhecimento voltados para a natureza, para o horizonte, para as linhas que se perdem adiante, para o sertão de meu Deus. E o sertanejo se confunde ao amanhecer no sertão como uma só paisagem, moldura do tempo, pincel do Criador que assim põe e dispõe...
E que manhã sertaneja bonita é essa meu Deus, que amanhecer sempre maravilhoso, que ternura e sublimaria é abrir a porta da tapera e poder se deparar com esse encanto da natureza. O galo já cantou e os outros bichos já despertaram. A galinha já cisca no terreiro, o gado magro dá mugidos no curral de duas varas, o bode se afasta em busca de qualquer comida, o cachorro vem todo sorrateiro e brincalhão para perto do dono. O dono passa a mão na sua cabeça e ele fica todo feliz.
Dá ainda pra ver o orvalho que visitou a plantinha durante a noite; dá pra sentir que bicho estranho passou por ali porque o cachorro de vez em quando vai farejar; dá pra ver adiante o umbuzeiro carregadinho e uma festa de umbus caídos em meio às folhagens. Dá pra ver passarinho revoando por todo lugar; dá pra ver ali e acolá um sabiá, um colerinho, uma fogo-apagou, um azulão, um canário, um beija-flor. Um beijo-flor? Sim, tem beija-flor porque tem flor de mandacaru, de xiquexique, de palma e de facheiro. Cacto também dá flor, meu senhor. Dá pra ver e sentir...
O cheiro de café no fogão aumenta porque a mulher patroa já levantou. Café torrado no tacho e preparado bem forte, com um gosto bom de lascar, é sinal de manhã sertaneja. Daí a pouco o que começa a tomar conta dos ares é o aroma saboroso do cuscuz feito com milho ralado na hora. Dá um trabalho danado, chega a querer comer os dedos no vai-e-vem do ralador, mas depois é de se ver que valeu a pena. Todo amarelinho, soltando fumaça de milharal, dá até pra comer sem mistura nenhuma. Mas quando tem, o sertanejo não deixa de botar por cima da fatia macia um ovo de galinha de capoeira ou uma perna de preá assado. É bom demais, meu senhor...
O cuscuz está pelos ares, mas o pensamento do sertanejo à frente de sua casa, caminhando de um canto pra outro, mexendo nisso e naquilo, vai além, muito além daquele momento, daquele momento de beleza mágica. Depois do alvorecer começam a surgir as luzes próprias do dia. E chega a manhã e vem o sol. E esse maldito sol que vem todo dia deveria se perder pela estrada qualquer dia desses. Mas ele vai chegar e quando bate a porta do sertão aí tudo muda, tudo esquenta, tudo entristece, tudo fica dolorido e difícil.
Sertão era pra ter só manhã, diz o sertanejo com o pensamento que já caminha além do madrugar. Era só pra ter manhã e a vida seria só boniteza, paz, visão maravilhosa dos bichos, das plantas, de tudo. Era só pra ter manhã porque é nesse instante que o matuto pode se encontrar consigo mesmo, se encantar com a sua vida e com o seu lugar, se alegrar com o quase nada que tem e agradecer a Deus por ter nascido e viver naquele sertão único e demais. E era só pra ter manhã porque depois disso é tudo sol, é o homem só, é a solidão do sertão...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Posso dizer que beleza magica maior do que esta manhã foi a sua descritiva nesta cronica, me recolocando nesta cena linda.Deu vontade comer o cuscuz da farinha ralada com ovo caipira. Sentir o cheiro do puro e delicioso cafe.Meu amigo ficou otima, pena que depois vem o sol e aquela solidão no tórrido chão.Meu abraço de paz.
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