SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 30 de abril de 2014

MEMÓRIAS E NOSTALGIAS


Rangel Alves da Costa*


Quem dera se o agora fosse verdadeira saudade amanhã, já ouvi tal confissão de um velho amigo. E de outro presenciei um olhar molhado quando recordei pequenas coisas que a ingratidão do homem e do tempo acaba consumindo. Alguém acertadamente escreveu: só não esquecemos o dia de ontem porque sempre deixamos situações não resolvidas.
Situações envolvendo o ontem, o passado, os tempos idos, a memória. Tantas páginas escritas e na maioria das vezes rasgadas ou esquecidas nos porões do descaso com a própria história de vida.  Preservamos na memória apenas os grandes feitos, as grandes realizações e conquistas, e quase sempre deixando de lado as pequenas e singelas coisas que foram de imensa significação.
Muita gente nega o sentimentalismo, a nostalgia, o regresso a tempos passados. Não sabe, contudo, que a alma também se alimenta do pomar frutificado noutros tempos. E a cada dia que passa, principalmente diante de realidades que quase não permitem acontecimentos bons, o homem tende cada vez mais a ir atrás da felicidade naquilo que seu percurso já semeou. É como se dissesse que o ontem ainda faz com que o hoje valha a pena.
Em instantes assim, quando se abre a porta de trás, surge a sensação de que a vida possui por sustentação momentos e fatos ainda dependurados na parede da memória. Cartas, retratos antigos, bilhetes amarelados, joias familiares, álbuns de família, pedaços e recortes, encontros e desencontros, tudo que permitiu uma existência que sempre merece ser lembrada.
Errôneo imaginar que quem vive do passado é museu e que os percursos vivenciados servem apenas pelas lições aprendidas. Do mesmo modo, não se concebe como vida em sua completude apenas recortes que mereçam ser recordados. Daí sempre a necessidade de o homem não relegar ao esquecimento o percurso de sua história nem o contexto no qual ela foi vivenciada.
Daí também que vejo o memorialismo como forma eficiente de resguardar os fatos e as situações passadas, não só como marcos de uma época e espelhos para o futuro, mas, e principalmente, como meio de reconhecer e valorizar as ações e os gestos humanos em determinados períodos históricos. Somente assim será possível conhecer o antigo e compreender sua importância para cada um, para a vida de um povo e da cidade.
Há de se compreender que as memórias não são baús lacrados, esquecidos, abandonados. As memórias são páginas vivas, abertas, esperando ser folheadas a qualquer instante. Servem como recordações, como reminiscências, para avivar as nostalgias, reencontrar os encantos nos tempos idos, mas também como espelhos diante da realidade presente. E que bom se as molduras de hoje pudessem abrigar com sinceridade e respeito os retratos antigos.
Para ser moderno, novo, estar na moda, não é necessário que feche a porta do ontem. O passado, no seu tempo próprio, já foi tão moderno como o instante tecnológico. Aquelas ferramentas tecnológicas de então impressionavam tanto quanto as inovações de agora. O gramofone, a radiola, o rádio, a televisão, a máquina de escrever, tudo isso já foi visto como avanços científicos impressionantes.
Ademais, basta ver que o computador já parece envelhecido demais. Tecnologias computacionais de dez anos atrás já estão totalmente ultrapassadas no presente. Hoje há uma gama tão grande de inovações surgindo que fica até difícil saber o que é mais moderno ou mesmo a sua utilidade. E amanhã certamente já estarão totalmente obsoletas. E também esquecidas. Mas diferentemente ocorre com alguns objetos e situações de um passado mais distante.
O velho rádio continua em pleno uso, a televisão em preto e branco ainda é de serventia, o giz de cera e o quadro negro ainda fazem parte do cotidiano da maioria das escolas, do mesmo modo o lápis, a caneta e o caderno. Logicamente que já há substituto tecnológico para tudo isso e correspondendo até de forma mais eficiente, mas não se despreza de vez aquilo imposto pela necessidade ou que a sociedade afetuosamente acolheu.
Talvez não seja doloroso recordar as cadeiras espalhadas nas calçadas ao anoitecer, as caminhadas seguras debaixo da lua maior, os quintais imensos com seus cheiros e sabores, os letreiros anunciando os filmes tão esperados, o recolhimento do leite na porta a cada manhã. E amigos se cruzando pelas ruas, crianças nuas chutando a bola em direção ao varal. E a fumaça do bonde, e o apito do trem.
Os retratos espelham tais transformações. Se o homem era mais feliz pouco importa, se a vida era mais prazerosa de ser vivida também pouco importa, principalmente porque os reconhecimentos e as valorizações tardam a acontecer. Mas importa que os mais velhos se sintam entristecidos quando comparam o passado e o presente. E não há como negar a saudade daqueles idos dos livros de ouro e dos bailes antigos.


Poeta e cronista
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Ensina-me... (Poesia)


Ensina-me...


Se eu conhecesse o azul
conhecia o mar no teu olhar

se eu conhecesse o voo
conhecia a nuvem para viajar

se eu conhecesse o beijo
conhecia teu lábio a me molhar

se eu conhecesse o abraço
conhecia teus braços a me afagar

seu eu conhecesse o amor
conhecia o que deverias me dar

se eu conhecesse a felicidade
conhecia teu corpo e teu amar

se eu conhecesse a prece
já teria me ajoelhado a implorar

mas não conheço nada
quem dera você para me ensinar.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 595


Rangel Alves da Costa*


“A vida...”.
“O último sopro...”.
“A morte...”.
“Ou um outono...”.
“Ou uma folha...”.
“Que se esvai...”.
“E se vai...”.
“Pela ventania...”.
“Da existência...”.
“Tudo num momento...”.
“Tudo num segundo...”.
“E o que era...”.
“Já não é mais...”.
“Porque solidão...”.
“Porque sozinha...”.
“Não há lágrima...”.
“Não há choro...”.
“Não há dor...”.
“Não há sofrimento...”.
“Não há nada...”.
“Velório e ladainha...”.
“Visitantes e lacrimosos...”.
“Não há vela...”.
“Não há sequer uma vela...”.
“Uma chama diante da feição...”.
“Um luzir de despedida...”.
“Um lenço tremulando...”.
“Ao sopro do vento...”.
“Apenas uma janela aberta...”.
“Uma porta aberta...”.
“Vento entrando...”.
“Vento soprando...”.
“E a morte silenciosa...”.
“Na feição silenciosa...”.
“Nos olhos distantes...”.
“Avistando além...”.
“E nada mais...”.
“Somente o tempo...”.
“O tempo que passa...”.
“Vai velando a morte...”.
“E chamando o vento...”.
“Para trazer uma velha canção...”.
“Tão triste como o instante...”.
“Que começa dizendo que nasceu...”.
“E termina dizendo que morreu...”.
“E nas estrofes fala de uma existência...”.
“Que apenas espera a morte...”.
“Ou a sua solidão...”.
“Desacompanhada...”.


Poeta e cronista
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terça-feira, 29 de abril de 2014

A VIDA AMOROSA NO CANGAÇO


Rangel Alves da Costa*
                                     

O amor é sentimento natural ao ser humano e se expressa ainda que nas condições mais difíceis da vida. Na luta, o coração ouve o seu pulsar; na paz, a alma cativa sua presença. E mesmo na refrega cangaceira não seria diferente. A verdade é que o amor esteve mais presente no cotidiano cangaceiro do que se poderia imaginar. E somente a doçura e beleza da mulher sertaneja para vencer sem guerra aqueles corações celerados.
A concepção de violência e brutalidade tantas vezes escondeu a feição sentimental também existente naqueles corações sertanejos, amorosamente pulsantes como quaisquer outros. Ademais, cangaceiros não estavam envoltos apenas nos seus aspectos de rudeza, ignorância e ferocidade. Eram pessoas normais, e como tal também amantes, enamorados, apaixonados. Contudo, mesmo a existência de um código de conduta que também cuidava das relações amorosas, há  relatos de sedução dos bandoleiros perante as meninas sertanejas, traição e adultério no próprio bando. Como algumas vezes ocorreu, trair o companheiro significava trazer no corpo desonrado a sentença de morte.
Ora, um enredo shakespeariano nas brenhas do mundo adentro! O meio realmente não era dos mais apropriados. Entrecortando os sertões, ora num canto ora noutro, com poucos instantes de sossego ao redor dos esconderijos, os cangaceiros sempre estavam mais preocupados com a volante inimiga que qualquer outra coisa. Mas isto não significa que deixassem de reservar instantes para ouvir a voz do coração e das carências amorosas. Quem não tinha companheira no bando, certamente fazia dos forrós nas povoações e fazendas uma forma de atrair mocinhas e donzelas.
Assim, mesmo na vida aperreada do bando havia o reencontro daquelas pessoas com os seus íntimos, com os seus laivos sentimentais. A lua imensa lá em cima fazia surgir a saudade de alguém. Quando recolhidos em algum recanto coiteiro, os casais se juntavam para apreciar as belezas da noite, o silêncio cortado pelas folhagens esvoaçadas pela ventania, os vaga-lumes piscando na escuridão. E em momentos assim, de saudade e ternura, de vez em quando um realejo era levado ao lábio, um pífano ecoava dolente, uma velha sanfona abrasava os sentimentos.
E ainda em ocasiões assim, onde a ilusória paz da escuridão trazia sonhos e desejos, afortunados eram aqueles que podiam levar suas companheiras para as beiradas dos rios, para detrás das pedreiras e dos morros, para os escondidos nos tufos da mataria. E a entrega se dava por cima dos areais espinhentos, com os corpos roçando em pontas de pedras e cipós, ao lado dos calangos e bichos rastejantes. Mas difícil satisfazer plenamente os instintos num cotidiano apressado em tudo.
E eis os instantes onde o desejo, a paixão, o instinto amoroso e o prazer, provam a existência de um mesmo e prazeroso sexo no ser indistinto e nas situações ou contextos mais inusitados. E simplesmente porque casais, porque pessoas que se amavam e se desejavam, e não estavam naquela jornada inglória apenas para matar ou morrer. Mas também para compartilhar do possível amor.
Muitos casais faziam parte do bando de Lampião. Alguns já formados antes mesmo de enveredar pelos caminhos cangaceiros, como foi o caso de Cajazeira e Enedina, e outros constituídos após, quando o cangaceiro se interessava por alguma flor sertaneja e tudo fazia para levá-la pelas veredas de sol e de lua. Os rapazes, chegados ao bando geralmente muito moços, apenas saídos da adolescência, somente depois encontravam nas povoações aquelas que lhes seguiriam pelos perigosos caminhos. Apenas alguns já chegavam de aliança e par.
Muitas são as histórias relatando as formas como se deram as uniões entre as mocinhas sertanejas e aqueles rapazes galanteadores e temidos a um só tempo. Os cangaceiros, cabeludos, banhados em perfumes, sempre carregando ornamentos dourados por todo lugar, famosos demais aonde chegassem, causavam verdadeiro rebuliço naqueles corações ainda inocentes. E de repente o temor dava lugar ao amor. Já namorando Canário, Adília se disse enganada quando o rapaz a convidou para uma viagem. Não sabia que era para acompanhá-lo no bando de Lampião, como de fato ocorreu. Mas o acompanharia ainda que soubesse de antemão o destino que teria.
Mas não era nada fácil para as mocinhas de então. Mesmo apaixonada, desejosa de ser levada de casa pelo braço cangaceiro, nem sempre conseguia seu intento, pois a família tudo fazia para afastá-la das vistas daqueles homens tão perigosos. E muitos pais até se mudavam por medo de ter sua filha levada para a vida bandida. Mas quando era o cangaceiro que lançava o olhar sobre a mocinha e nela via uma companheira ideal, então não havia o que fazer. A jovem era levada a qualquer custo.
Sila conta que ficou compromissada ainda novinha, com cerca de treze anos, com o temido Zé Sereno. No dia marcado, ele compareceu para levar consigo sua menina. Muitas outras mocinhas ou mulheres já feitas encontraram naqueles homens das caatingas a oportunidade de expressar seus desejos tão oprimidos naqueles sertões de então. Acompanhavam os cangaceiros não só porque se sentiam atraídas por aqueles símbolos de rude beleza, mas também pela necessidade de partilhar de uma vida onde fossem reconhecidas como verdadeiras mulheres.
Mas o amor trágico não ficou ausente do cangaço. São famosos os casos envolvendo as cangaceiras Lídia, Cristina e Rosinha, mas esta última pela própria ausência do amor cativante e protetor. Lídia, companheira de Zé Baiano, considerada a mais bela entre todas as cangaceiras, traiu seu homem com o cangaceiro Bem-te-vi e por aquele foi impiedosamente morta. Cristina, companheira do cangaceiro Português, foi acusada de manter um romance com Gitirana. Perdoada ou enganada, quando fazia o caminho de volta pra casa foi morta por Luís Pedro, amigo do corneado.
Por sua vez, Rosinha, mulher de Mariano, caiu nas desgraças após a morte deste. Grávida, pediu a Lampião para ir passar uns tempos na casa da família. Mas temendo que a cangaceira revelasse segredos do bando, o Capitão exigiu sua volta. Contudo, seu destino já estava traçado, vez que sua sentença já estava dada pelo próprio Lampião. Eis que havia o código de conduta no bando não permitindo que mulheres deixassem suas fileiras, ainda que em estado de viuvez.
Como afirmado, os casais eram muitos no mundo cangaceiro e dentre os mais famosos estão Corisco e Dadá, Zé Sereno e Sila, Canário e Adília, Cajazeira e Enedina, Luiz Pedro e Neném, Zé Baiano e Lídia, e Criança e Dulce. Mas propositadamente não citei Lampião e Maria Bonita. E não o fiz porque o mais famoso dos casais cangaceiros talvez esteja além de uma mera síntese conjugal na vida bandoleira dos carrascais.
Em Lampião e Maria Bonita toda a pujança de um amor que não mediu esforços para acontecer e que aconteceu contradizendo a lógica daquele momento. Ele, o maior, o líder, certamente podendo escolher como companheira qualquer mocinha que encontrasse, preferiu lançar o olhar numa mulher casada. E ela, infortunada na vida amorosa que levava, não pensou duas vezes em se entregar aos braços do Capitão. E os dois se entrelaçaram naquele triste leito de morte de 38.


Poeta e cronista
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Cartas e retratos (Poesia)


Cartas e retratos

Porque amo sempre
amo presença e ausência
amo a visão e a distância
e tenho palavra e voz
para cada momento assim
tenho cartas e retratos
que servem de espelho
e servem de asa e voo
que tanto falam de amor
que sorriem ao meu lado
e deixam beijar e abraçar
como se toda distância
fosse vencida neste viajar
nas palavras existentes
nos retratos tão presentes

mas quando releio as cartas
lacrimejo sobre teu olhar.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 594


Rangel Alves da Costa*


“Canto a vida...”.
“Para não chorar a morte...”.
“Canto a lua...”.
“E ecoo a canção do sol...”.
“Canto a chegada...”.
“Para não sofrer a partida...”.
“Canto o abraço...”.
“Querendo cantar o beijo...”.
“Canto o ontem...”.
“Para lembrar a canção de hoje...”.
“Canto o sonho...”.
“Para não temer o pesadelo...”.
“Canto e espelho...”.
“Para não entristecer com a feição...”.
“Canto o tempo...”.
“Para não despertar a idade...”.
“Canto a lembrança...”.
“Para não chorar a saudade...”.
“Canto a vitória...”.
“Eis que não sei cantar a derrota...”.
“Canto a paz...”.
“Enquanto desencanto a guerra...”.
“Canto a alimento...”.
“Para jamais cantar a fome...”.
“Canto o instante...”.
“A mesma canção do relógio...”.
“Canto a brisa...”.
“Para não cantar o temporal...”.
“Canto as areias do cais...”,
“E canto também as velas do cais...”.
“Canto a pedra...”.
“Porque conheço a sua cantiga...”.
“Canto a estrada...”.
“Porque preciso de canção na viagem...”.
“Canto o jardim...”.
“Porque quero a canção da flor...”.
“Canto o buquê...”.
“Pois sei da canção no sorriso...”.
“Canto o outono...”.
“Uma triste canção sem canto...”.
“Canto a poesia...”.
“Porque já canção desejada...”.
“Canto o brinquedo...”.
“Uma canção de outros tempos...”.
“Canto o olhar...”.
“Porque aprendo a canção do mar...”.
“Canto o amor...”.
“Porque cantiga do coração...”.
“Canto você...”.
“Porque a canção que há em mim...”.


Poeta e cronista
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segunda-feira, 28 de abril de 2014

RELÓGIO DE PAREDE


Rangel Alves da Costa*


É da lavra de Machado de Assis este sutil e realista reconhecimento: “O mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede. Conheço um que já devorou três gerações da minha família”.
E não apenas feroz e devorador, mas também silenciosamente ameaçador, numa mudez que só desperta para dizer que tem pressa para seguir adiante e que deseja levar consigo qualquer um que não lhe dê atenção.
Talvez apenas uma parede, talvez apenas um relógio antigo dependurado, lentamente pulsando sua temerosa existência. Foi colocado ali apenas para marcar as horas, para lembrar os compromissos, para que ninguém se esqueça de sua presença, pois tudo dele depende.
Antigo, herança de gerações, imenso e parecendo tão solitário e esquecido. Com caixa de madeira de lei, o verniz parece esconder as rugas da existência. Ao longe ninguém percebe seu passo, não ouve seu pulsar metódico, sequer ouve sua voz maior quando o ponteiro chega na hora exata.
Mas qual hora exata? No relógio de parede, qualquer hora é a hora exata, principalmente para marcar um tempo que se vai ou que já se foi. Ou despertar a atenção para o instante seguinte. Mas também para marcar o momento exato da despedida de alguém. Eis a morte sempre marcada no relógio.
Na mesma parede, ao lado e ao redor do relógio, os muitos e invisíveis retratos daqueles que já partiram num determinado instante do ponteiro. Retratos antigos, molduras de outros tempos, feições ainda sorridentes ou entristecidas, olhares mirando o presente. E somente os retratados para saber quem o ponteiro procura para chamar.
O relógio percorre incansável, com inexplicável vigor. Desde mais de cem anos que já batia no mesmo ritmo, desde antepassados distantes que já marcava o tempo de tudo. Inexplicavelmente nunca para, nunca cansa, nunca se torna exaurido de sua função. Diferentemente ocorre com aqueles que passam diante de sua face e apenas se preocupam em seguir adiante.
Talvez o relógio tenha um segredo a ser revelado. Acaso alguém se demorasse mais diante dele, o olhasse com mais atenção e levasse o ouvido até jutinho dos ponteiros, certamente que ouviria algo além daquele quase que silencioso pulsar. Ouviria o segredo e o mistério seria revelado.
Mas qual segredo e qual mistério? Segredo de relógio antigo é o mistério que carrega para continuamente sobreviver, marcar o tempo quase que eternamente. E o mistério está no seu jeito de percorrer a estrada, de caminhar lentamente para marcar o tempo.
Na revelação do segredo e do mistério estaria também o percurso do homem. Talvez não só o relógio pudesse ter existência tão prolongada. Contudo, o homem teria de aprender a viver segundo o caminho do tempo. Há certeza de que chegará adiante, de que avançará na marcha dos anos, mas sempre dando um passo de cada vez.
O relógio possui ponteiros para segundos, minutos e horas. E cada um vai passando de estação a estação, avançando nos segundos, nas horas, nos dias, nos meses, nos anos, nos séculos. E não cabe ao homem, escravo que é do tempo, querer ultrapassar estágios na sua caminhada.
Porque não presta atenção ao relógio, porque não guarda um momento diante de sua presença e procura desvendar seu segredo e mistério, o homem por ele vai sendo devorado sem perceber. Eis que cada segundo do relógio é um fio da existência humana que se desfaz. E vai corroendo tudo, lentamente, até que o ponteiro marque o fim.
O relógio continua na parede, e assim continuará com as próximas gerações. Mas o homem, que não passa de um segundo na vida, estará somente no retrato empoeirado que ele mesmo vai emoldurando na sua breve caminhada.


Poeta e cronista
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Eterna estação (Poesia)


Eterna estação


Igualmente aos pomares
que verdejam na estação
haveria estação frutificando
o amor um dia cultivado?

Olho da janela e vejo
as mangas e as jabuticabas
as goiabas e as graviolas
tão sedosas e adocicadas
que logo imagino um beijo
uma carícia na pele suave
uma leve mordida no lábio
e então me vem a certeza
que há estação no amor
de sopro eterno a seu lado
e tanto fruto e tanto sabor.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 593


Rangel Alves da Costa*


“No mundo da arrogância...”.
“Desumanizado e autoritário...”.
“Impõe-se a submissão...”.
“Impõe-se a escravidão...”.
“Impõe-se o jugo e a força...”.
“Daí haver tanta humilhação...”.
“Perante o povo pobre...”.
“O povo sempre sofrido...”.
“Sempre visto e tratado...”.
“Como animais inferiores...”.
“E por isso merecedores...”.
“De toda desvalia da vida...”.
“Daí a humilhação...”.
“No atendimento hospitalar...”.
“No descaso com a vida...”.
“No tanto faz com a vida e a morte...”.
“Pessoas deitadas no chão...”.
“Hospitais superlotados...”.
“Caminho aberto para a morte...”.
“Daí a humilhação...”.
“Nos atendimentos burocráticos...”.
“Nos arrogantes atendimentos...”.
“Nas filas desrespeitosas...”.
“Nos documentos que nunca bastam...”.
“Nos agendamentos e remarcações...”.
“Nos tantos indeferimentos...”.
“Daí a humilhação...”.
“Na espera de ônibus...”.
“Nos transportes imprestáveis...”.
“Na brutalidade em tudo...”.
“Daí a humilhação...”.
“Na propaganda enganosa dos governos...”.
“Na educação de qualidade...”.
“Na ideia de todos na escola...”.
“Na merenda de qualidade para todos...”.
“Nos equipamentos escolares...”.
“Nos instrumentos para escolaridade...”.
“Nos transportes oferecidos...”.
“E quanta humilhação...”.
“Na marcação de um exame clínico...”.
“Na aquisição de um remédio...”.
“Na espera de uma hemodiálise...”.
“E mais humilhação ainda...”.
“Quando os governantes...”.
“Enchem os pulmões para dizer...”.
“Que tudo é maravilhoso...”.
“Que o povo é respeitado...”.
“Enquanto isso, no país de verdade...”.
“O negro é abordado com selvageria...”.
“Pois se supõe sempre que seja bandido...”.


Poeta e cronista
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domingo, 27 de abril de 2014

MINHA SAUDADE DE MIM


Rangel Alves da Costa*


De vez em quando me bata uma saudade danada. Lembrança ora boa ora angustiante de coisas, fatos, pessoas, lugares, dos passos pela estrada. Mas nos últimos tempos tem acontecido diferente, pois ando tendo muita saudade de mim mesmo.
Brincadeira não, pois verdade escrita a fogo. E tudo acontecendo de modo tão estranhamente bom, ainda que às vezes nostalgicamente triste e pesaroso. Mas prefiro assim que ter de suportar as realidades perversas e desumanas do tempo presente.
Fugindo dessa visão pavorosa do dia a dia, eis que procuro me situar numa fronteira precisa. Posiciono-me nos limites entre o passado e o presente e sempre prefiro olhar pra trás. E seguir os seus passos. Abdico dessa realidade e viajo no tempo.
Olhando para trás encontro o passado e neste a minha história, minha caminhada, toda minha vida até o instante da recordação. E neste baú reaberto, ou janelas que se abrem para realidades muito diferentes, enfim posso abraçar a vida com o que de melhor ela já pôde oferecer. Mas inevitável que na mente surjam situações demasiadamente dolorosas.
E é assim que passo a ter saudade de mim. Saudade do tempo ido e vivido, da infância e adolescência, da maturidade e todas as idades existentes num ser, dos amores e desilusões amorosas, das peraltices e traquinagens, do copo cheio e dos bons amigos ao redor da mesa.
São instantâneos da vida que jamais podem ser esquecidos. Sei que no passado, naqueles momentos fazendo ou isto ou aquilo, tudo apenas na normalidade dos dias, como se nada pudesse ter tamanha importância mais tarde. Mas somente quando o futuro nada mais traz que seja ao menos parecido, então é tudo aquilo se torna necessária presença.
E hoje sinto tanta saudade de mim porque sinto a verdade contida na estrofe daquela velha canção: Eu era feliz e não sabia! Realmente, eu não sabia a grandiosidade que era viver naquela antiga Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo. Jamais imaginava que mais adiante eu teria tanta saudade daquelas ruas empoeiradas, daquelas casas empobrecidas, daquela minha gente tão humilde.
Eu era feliz e não sabia! Eu não sabia quanta falta me faria mais tarde aquelas noites de lua imensa, aquelas caminhadas nas beiradas do riachinho, as brincadeiras com meus amigos sertanejos. Jogar bola de gude, correr veloz no cavalo de pau, cortar estrada com carrinho de mão, juntar boiada de ponta de vaca, correr descalço atrás de uma bola murcha. E o banho nu pelo meio da rua nos dias de chuvarada.
Apenas vivenciado o momento, eu não sabia quanta felicidade naquela singeleza de vida. Jamais me esquecerei dos amigos reunidos catando sacolas plásticas pelos quintais para fazer redes para os fundos do gol. Ou fazendo jogador de botão com forminha de leite ninho. Pinicava o plástico duro, despejava na forma e depois colocava embaixo de brasas. Depois era só esperar esfriar, soltar o molde endurecido e ralar pelas calçadas até ficar lisinho. E em seguida dar nomes aos jogadores. Eis o que não pode ser esquecido.
E como eu era feliz proseando com velhos sertanejos, sempre curioso para ouvir causos de lua e de sol, de bichos na mataria e até de fogo-corredor. E mais tarde, ao pé do balcão, mandar descer uma casca de pau e brindar com aqueles que fizeram a história do meu lugar. Vaqueiros, roceiros, aboiadores. Quanta saudade deles!
Mas também com outras saudades, muitas outras saudades. Saudade de minha cidade com praças arborizadas, flores pelos canteiros e até fonte luminosa. Das festas de agosto antigas, seus inesquecíveis forrós e seus bailes no mercado. Que eventos mais grandiosos e esperados eram os bailes de agosto no mercado.
Tudo isso me faz ter saudade, muita saudade de mim mesmo. Não deste que apenas luta para sobreviver, mas daquele que vivia para viver. Até os meus versos são outros. Escrevo alegria quando a poesia é tristeza.


Poeta e cronista
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A viagem (Poesia)


A viagem


Na vida a grande estrada
caminho fugindo da solidão
na boca a palavra calada
a mão procurando outra mão

é preciso seguir em frente
entregar as flores a alguém
receber um sorriso contente
e sorrir a felicidade também

olhar no olhar com coragem
segredar a palavra guardada
ter no amor a doce passagem
para dois na nova caminhada

e amando seguir adiante
compartilhando do sol e da lua
alimentando a cada instante
a vida tão minha e tão sua.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 592


Rangel Alves da Costa*


“Rasga tuas vestes...”.
“Solta teus cabelos...”.
“Tira teus sapatos...”.
“Esquece os modismos...”.
“A bula e a receita...”.
“O código e a senha...”.
“A agenda repleta...”.
“Esquece tudo...”.
“E lembra apenas de você...”.
“E em você...”.
“A vida, a liberdade...”.
“O caminho, a estrada...”.
“O suor, a nudez...”.
“O verso e o poema...”.
“O retrato e a fotografia...”.
“O quadro e a parede...”.
“O grão e o pó...”.
“A montanha e o penhasco...”.
“A força e a coragem...”.
“Não se intimide, e vai...”.
“Fecha a porta...”.
“Fecha a janela...”.
“Abre a cancela...”.
“E vai...”.
“Que maravilhoso mundo...”.
“É o mundo adiante...”.
“Da liberdade...”.
“Da canção de fogo...”.
“Da silenciosa cantiga...”.
“Do grito no ar...”.
“Do vento açoitando...”.
“Do passeio da brisa...”.
“Ergue tua bandeira, e vai...”.
“Encontrar a alvorada...”.
“Encontrar o dia aberto...”.
“Encontrar a noite...”.
“E o noturno estrelado...”.
“Vai avistar o teu sol...”.
“Sentir o teu sol...”.
“Vai beijar tua lua...”.
“Sentir tua lua...”.
“Vai ser passarinho...”.
“E também voar...”.
“Pois a vida deve ser outra...”.
“Além da simples vida...”.
“E do simplesmente viver...”.
“Pois a vida é muito mais...”.
“É quem você é...”.
“E o que deseja ser...”.
“E onde pretende chegar...”.


Poeta e cronista
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sábado, 26 de abril de 2014

SANTO SOUZA, A POESIA ABENÇOADA


Rangel Alves da Costa*


Nesta sexta-feira, 18 de abril, a literatura sergipana e a poesia brasileira perderam um dos maiores expoentes da arte do verso esculpido com a maestria dos grandes artistas da palavra. José Santos Souza, ou simplesmente Santo Souza, faleceu aos 95 anos, em sua própria residência, talvez enquanto sonhava ornando uma estrofe que não seria escrita.
Natural de Riachuelo, Santo Souza viveu em sua cidade natal até os 17 anos. Estudou somente até o 3º ano primário, e daí em diante se fez reconhecido na condição de autodidata. Já em Aracaju, trabalhou como manipulador em farmácia durante mais de 25 anos. Manipulando fórmulas e medicamentos, talvez o fizesse com o mesmo esmero com que trabalhava a palavra.
Sua preocupação maior em escrever a ter seus versos publicados, fez com que muitos achassem que havia abdicado de sua arte maior, eis que permanecia durante muito tempo sem publicar qualquer obra. Ainda assim foi grande sua produção literária: Cidade Subterrânea (1953), Caderno de Elegias (1954), Relíquias (1955), Ode Órfica (1956), Pássaro de Pedra e Sono (1964), Concerto e Arquitetura (1974), Pentáculo do Medo (1980), A Ode e o Medo (1988), Obra Escolhida (1989), Âncoras de Arco (1994), A Construção do Espanto (1998), e Rosa de Fogo e Lágrima (2004), Réquiem para Orfeu (2005), Deus Ensanguentado (2008) e Crepúsculo de Esplendores (2010).
Foi um dos escritores sergipanos mais premiados em concursos literários, sendo também constantemente laureado pelo conjunto de sua obra, como ocorreu com o Grande Prêmio de Crítica 1995, concedido pela associação de Críticos de Arte de São Paulo. Sempre recluso, vivendo das e para as letras, carregava na feição e no acolhimento a singeleza dos grandes homens. Era o maior poeta vivo de Sergipe e um dos maiores do Brasil, mas se sentia melhor sendo reconhecido apenas como Santo Souza.  Foi membro da Academia Sergipana de Letras, ocupando a cadeira nº 03; membro efetivo da Associação Sergipana de Imprensa; além de Membro Correspondente da Academia Paulista de Letras. Também era integrante da Loja Maçônica Cotinguiba.
A poesia de Santo Souza possuía no orfismo sua vertente primordial. Poeta órfico porque abordando temas sacros, investigando os mistérios da alma, trabalhando conceitos ritualísticos e colocando o ser humano como dependente de forças superiores. O ensaísta e crítico de arte Sérgio Milliet, ao referir-se ao livro Ode Órfica, de 1956, o considerou como uma meditação sobre os mistérios da vida, bem como a desilusão dos homens. Eis a presença do orfeísmo em sua obra, nas estrofes iniciais de Ode Órfica I, do livro homônimo de 1956:

Era tão clara a tua voz, e tão
limpo o teu canto inaugural, ó noite,
que o tempo adormecia em tuas mãos!
De início, rejeitamos teus conselhos
dissimulados. Nautas fugitivos,
eis que a nave de Orfeu, que pilotávamos,
não nos pertence mais, pois a ofertamos
àqueles que hão de vir colher conosco
a treva e o medo, embora eles, no lago,
com a vida e as águas entre os braços, nos
surpreendam no triângulo da morte,
os olhos florescendo como peixes
que o teu milagre, ó noite, fecundou!

Transportamos pirâmides nos ombros,
para, sobre elas, construir o mundo
que nós, por sermos livres, sugerimos.
De música fizemos nossos mares,
para conter o céu que nos persegue.
Mas somos frágeis para suportar
a cabeça do Eterno, que se inclina
sonhando sobre nós, enquanto vamos,
ladrões famintos, carregando sombras.
Morrer? Não era a morte o que sonhávamos.
Somos pobres demais para morrer
com tanto ouro nas mãos, tanto arco-íris
nos olhos desta aurora que engendramos.

Transportamos pirâmides nos ombros, escreveu o artista. E para, sobre elas, construir o mundo, acrescentou. Em seguida diz que o homem é frágil demais para suportar os grandes sonhos, vez que as esperanças são roubadas por qualquer um. Mas não significava dizer que o homem deve se curvar e esperar a morte. Não, pois a vida possui riquezas demais para lhe oferecer. E Santo Souza compreendia isso em profundidade.
Sua poesia transcende a simples escrita. Seus versos não são casuais ou ocasionais, vez que tomados de ritos, místicas, simbologias religiosas, como luzes surgindo quase mortas em mosteiros medievais tentando avistar os mistérios do mundo. Neste sentido, é também esotérica, permeada de ocultismos e segredos que devem ser revelados pelo próprio leitor. Na vida, enxerga o enigma, transforma em verso e nos brinda com uma profusão de encontros. Tais aspectos podem ser observados nos seguintes versos de Elegia número 16, do livro Caderno de Elegias, de 1954:

Criaram flores de existência efêmera,
criaram noites e auroras nos caminhos,
aquários musicais para a canção
e estátuas para a vida e para a morte.

Criaram o teto do céu que sustentamos
em colunas de estrelas e de mares
e os rios que afagamos, derramando
a poesia da vida em nossas mãos.

E criaram também rios insones
que as nossas mãos jamais hão de acolher:
criaram faces com sulcos para as lágrimas,
pois havia corações para sofrer.

Mas sob o teto do céu que sustentamos
nós somos flores de existência efêmera
e – estátuas para a vida e para a morte –
nos deram olhos humanos para o pranto!

Santo Souza fazia parte do círculo remanescente dos grandes poetas sergipanos. Seu percurso foi longo e com estrada laureada já desde outros tempos, ainda na vivência e convivência de um fazer poético verdadeiramente comprometido com a poesia enquanto arte delineada tanto na forma como no conteúdo. Sua preocupação com a visualização, o brilho e a intensidade dos versos foi uma de suas principais características.
O artista não se contentava com a pedra bruta. Talhava a pedra para oferecer a arte, e tudo num remanso que só mesmo o tempo para compreender o que tanto tecia, forjava e cinzelava aquelas mão negras, sempre cuidadosas com cada verso. Sabia que não tinha a eternidade para preservar sua escrita, e somente o cimento férreo da criatividade poética para eternizar o seu canto. E por isso mesmo forjou a palavra para a imortalidade, pois sabendo que o homem era apenas o seu condutor. Neste sentido, lê-se no seguinte excerto do Canto II, do livro Ode Órfica:

Era vasto o domínio. Nosso olhar
limitava o destino das fronteiras
por onde a morte inútil circulava.
Calculamos o tempo e o esperdiçamos.
Fomos tardos no avanço, e cedo vimos
fugir de nossas mãos o leme, e a rota
se perdeu. Nosso canto, diluído
nas águas, já não rege o itinerário
desta sagrada luta que engendramos:
perdido o jogo, a morte nos suplanta.

Mas o jogo jamais estará perdido, Santo Souza. Mesmo que o canto já não direcione o itinerário da sagrada luta, ainda assim o poeta continuará com sua voz sob os templos onde as musas eternizam a grande arte dos escolhidos.


Poeta e cronista
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Uma valsa de flores (Poesia)


Uma valsa de flores


Assim os dias
assim tudo acontecendo
mas nada como antes
quando após a janela
havia um jardim perfumado
e a certeza de amor

ainda as flores
cores e valsa na brisa
mas nada como antes
quando a vida era poesia
uma canção a cada dia
por causa de seu amor

queria o antes agora
com o jardim perfumado
uma poesia a cada dia
e a suave valsa das flores
para abraçar seu abraço
e renascer todo amor.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 591


Rangel Alves da Costa*


“Uma receita de amor...”.
“Pois o amor cansou...”.
“De ser apenas amor...”.
“Ser servido do mesmo modo...”.
“Degustado do mesmo modo...”.
“Salgado ou doce demais...”.
“Insosso ou queimado...”.
“Cru e quase no sangue...”.
“E desde muito...”.
“Que ninguém lhe acrescenta nada...”.
“Nem um pouco de vinho...”.
“Nem uma erva aromática...”.
“Nem uma porção mágica...”.
“Absolutamente nada...”.
“Então, que tal...”.
“Amor dourado...”.
“Na nudez do sol...”.
“Ou amor caramelado...”.
“Na luz do luar...”.
“Amor com algodão doce...”.
“Como viagem na nuvem...”.
“Um amor pirulito...”.
“Docinho e gostoso...”.
“De lamber até os beiços...”.
“Um amor romântico...”.
“Com gotas de poema...”.
“E pitadas de poesia...”.
“Amor ao molho de pele...”.
“Escorrendo suor...”.
“Cheirando a desejo...”.
“Amor ao natural...”.
“Sentindo falta de amor...”.
“Para refazer o amor...”.
“Com o sal da paixão...”.
“O açúcar do desejo...”.
“E folhas de sexo...”.
“Amor ao sonho...”.
“Nunca chegado ao ponto...”.
“Sempre acrescido de ingredientes...”.
“E sempre faltando algo...”.
“Amor com água de chuva...”.
“Um tanto molhado...”.
“Para afastar o calor...”.
“Amor selvagem...”.
“Com folhas de capim...”.
“Cheiro de terra...”.
“Sedento e faminto...”.
“Amor a dois...”.
“Como feijão com arroz...”.
“E por sobremesa...”.
“Um beijo em calda...”.


Poeta e cronista
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sexta-feira, 25 de abril de 2014

ESPERANDO O TREM


Rangel Alves da Costa*


Desde muito que o trem partiu. Ainda falam das janelas abertas em acenos, das mãos com seus lenços molhados, das flores entristecidas caindo ao chão. Trem da memória, trem dos tempos idos, das coisas boas e esperanças que seguiram nos trilhos. A estação, no coração, no âmago e na mente de cada um, restou solitária e triste. Mas agora esperam o retorno do trem.
São muitos os que continuam esperando o trem. Faces e feições diferentes, idades diversas, jeitos de ser e viver também diferentes, porém todos com um só motivo para o tão desejado retorno do trem. E o motivo não é outro senão a esperança de que o apito do trem surgindo ao longe, na curva da montanha, traga consigo a esperança de um tempo novo.
Seria até contraditória a esperança de que um trem partido há tanto tempo, já com velhos e enferrujados vagões, fazendo-se anunciar com um apito já tomado pela rouquidão, ainda consiga parar na estação e fazer surgir diante de olhares marejados aquilo que tanto desejam como algo novo.
Mas eis que o novo fruto da realidade presente, do instante da vivência, infelizmente ainda não conseguiu ser de mais importância que as velhices passadas. O presente, ao se mostrar tão angustiante e doloroso, envolto em medonhices e temerosidades, nada mais fez que tornar o envelhecido como algo que avidamente se deseja para a suportabilidade dos dias. Desse modo, o que já passou é desejado de tal forma que até a ilusória possibilidade de seu ressurgimento é tida como algo novo, como uma tábua de salvação.
Por tais motivos, porque tanto desejam que o trem desponte adiante e traga consigo esse novo envelhecido, é que todos esperam a chegada do trem. Janelas e portas abertas, estradas tomadas por caminhantes, por todo lugar e de todas as direções vão surgindo pessoas e todas seguindo rumo à estação. Levam flores, buquês, perfumes, dádivas de boas novas, oferendas para o que chegará nos vagões do trem.
Quanta esperança num povo que não foi acolhido pela modernidade. Imaginava-se que o percurso do mundo possibilitaria o surgimento de grandes conquistas além do meramente tecnológico. Os grandes avanços garantiram apenas o encurtamento das distâncias, a globalização das relações, progressos nas pesquisas científicas, o surgimento de um infindo aparato de equipamentos eletrônicos; enfim, a informatização da vida. Contudo, a condição humana parece ter sido relegada ao esquecimento.
Neste mundo novo, informatizado em todas as esferas, de acessibilidade com rapidez impressionante, mais compacto em todos os quadrantes, o espaço do homem passou a ser de menor importância. Infelizmente, o cidadão, o indivíduo enquanto ser biológico, sensível, guardando em si sentimentos e aspirações, não recebeu o reconhecimento devido. Pelo contrário, as inovações surgidas são para atrair o homem, escravizá-lo, torná-lo submisso à tecnologia, e jamais para preservar sua esfera humanista e solidária.
A bem dizer, o progresso colocou o homem ao abandono. O novo surgido interferiu nas relações familiares, tornando-as quase inexistentes; a modernidade tornou o ser muito mais egoísta, com maior senso de autossuficiência, vez que quase tudo pode ser conseguido sem o compartilhamento de quem quer que seja; os modismos acabaram destruindo valores, ética nas relações, moralidade na convivência. Diante de tal quadro, o homem moderno não passa de um ser solitário numa ilha tecnológica.
Contudo, a solidão e o abandono do homem moderno não são garantias que não esteja sendo constantemente vigiado pelos olhos vorazes da violência, da arrogância de outros homens, verdadeiras feras esperando o instante para o ataque. O próprio mundo se tornou mais desumano, ameaçador, conflituoso, provando que nenhum avanço terá a serventia desejada se com o progresso não for semeado o grão da solidariedade, do respeito, da fraternidade. E infértil será toda a terra onde não seja semeado o grão do homem ainda possível.
Por isso mesmo é que as pessoas que se encaminham para a estação ou lá já estão esperando o trem, sentem tanta falta dos modos de vida de outros tempos. Não desejam, contudo, voltar ao passado ou abdicar dos frutos presentes em nome do saudosismo. Mas as incertezas, os medos e os temores com a realidade presente são tamanhos que lançam todas as suas esperanças no que o trem possa lhes trazer.
Não esperam uma nova vida nem a salvação, não esperam a transformação do presente nem a transformação do homem nefastamente transformado, mas apenas que dos vagões do trem possa surgir ao menos uma ilusão nova. De tão insuportável sentem a realidade, clamam apenas que dos vagões surja ao menos um raio de luz. Eis que talvez ali esteja a claridade que necessitam para encontrar ao menos um pouco de paz.


Poeta e cronista
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Assim somos (Poesia)


Assim somos


Somos assim com a fruta
sua polpa e seu sabor
somos o pólen da flor
seu néctar e sua cor
somos como a colmeia
seu favo e seu mel
somos flores de algodão
seu branco véu a dançar
somos a água da fonte
sua limpidez e doçura
somos brisa da tarde
seu perfumado passo
somos um livro de fadas
seu susto e final feliz
somos assim quase tudo
e temos em nós o escudo
onde o grito da maldade
silencia em nossa felicidade.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 590


Rangel Alves da Costa*


“Um noctívago errante...”.
“Um solitário apaixonado...”.
“Em busca de amor...”.
“Em busca de um trago...”.
“Em busca de luar...”.
“Quer dançar a valsa...”.
“Quer dançar bolero...”.
“Quer qualquer dançar...”.
“Mas a solidão...”.
“Logo lhe diz não...”.
“E tudo fica mais triste...”.
“Encontra um jardim...”.
“Um banco vazio...”.
“Ventania no rosto...”.
“Um perfume tristonho...”.
“Quer soltar a voz...”.
“Quer cantar canção...”.
“Mas a rouquidão...”.
“Logo lhe diz não...”.
“Mete a mão no bolso...”.
“Catando moeda...”.
“Mas tudo vazio...”.
“Moeda não tem não...”.
“Sente um aperto...”.
“Aflição danada...”.
“Pelo coração...”.
“Se põe a chorar...”.
“Um choro de lágrimas...”.
“Um rio nas mãos...”.
“Mira o luar...”.
“Olha ao redor...”.
“Mas tudo vazio...”.
“Tudo solitário...”.
“Começa a gritar...”.
“Mas sem ter a voz...”.
“Ninguém há de escutar...”.
“E chora de novo...”.
“Agora mais forte...”.
“Pensa em morrer...”.
“Procura uma faca...”.
“Clama um punhal...”.
“Um pouco de veneno...”.
“Mas tudo negado...”.
“Olha adiante...”.
“Avista uma janela...”.
“Uma luz no quarto...”.
“Recolhe uma flor...”.
“E corre para lá...”.
“Empurra a madeira...”.
“Joga a flor da noite...”.
“E uma arma em açoite...”.
“Faz surgir o grito...”.
“E a morte enfim...”.


Poeta e cronista
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