SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 29 de abril de 2014

A VIDA AMOROSA NO CANGAÇO


Rangel Alves da Costa*
                                     

O amor é sentimento natural ao ser humano e se expressa ainda que nas condições mais difíceis da vida. Na luta, o coração ouve o seu pulsar; na paz, a alma cativa sua presença. E mesmo na refrega cangaceira não seria diferente. A verdade é que o amor esteve mais presente no cotidiano cangaceiro do que se poderia imaginar. E somente a doçura e beleza da mulher sertaneja para vencer sem guerra aqueles corações celerados.
A concepção de violência e brutalidade tantas vezes escondeu a feição sentimental também existente naqueles corações sertanejos, amorosamente pulsantes como quaisquer outros. Ademais, cangaceiros não estavam envoltos apenas nos seus aspectos de rudeza, ignorância e ferocidade. Eram pessoas normais, e como tal também amantes, enamorados, apaixonados. Contudo, mesmo a existência de um código de conduta que também cuidava das relações amorosas, há  relatos de sedução dos bandoleiros perante as meninas sertanejas, traição e adultério no próprio bando. Como algumas vezes ocorreu, trair o companheiro significava trazer no corpo desonrado a sentença de morte.
Ora, um enredo shakespeariano nas brenhas do mundo adentro! O meio realmente não era dos mais apropriados. Entrecortando os sertões, ora num canto ora noutro, com poucos instantes de sossego ao redor dos esconderijos, os cangaceiros sempre estavam mais preocupados com a volante inimiga que qualquer outra coisa. Mas isto não significa que deixassem de reservar instantes para ouvir a voz do coração e das carências amorosas. Quem não tinha companheira no bando, certamente fazia dos forrós nas povoações e fazendas uma forma de atrair mocinhas e donzelas.
Assim, mesmo na vida aperreada do bando havia o reencontro daquelas pessoas com os seus íntimos, com os seus laivos sentimentais. A lua imensa lá em cima fazia surgir a saudade de alguém. Quando recolhidos em algum recanto coiteiro, os casais se juntavam para apreciar as belezas da noite, o silêncio cortado pelas folhagens esvoaçadas pela ventania, os vaga-lumes piscando na escuridão. E em momentos assim, de saudade e ternura, de vez em quando um realejo era levado ao lábio, um pífano ecoava dolente, uma velha sanfona abrasava os sentimentos.
E ainda em ocasiões assim, onde a ilusória paz da escuridão trazia sonhos e desejos, afortunados eram aqueles que podiam levar suas companheiras para as beiradas dos rios, para detrás das pedreiras e dos morros, para os escondidos nos tufos da mataria. E a entrega se dava por cima dos areais espinhentos, com os corpos roçando em pontas de pedras e cipós, ao lado dos calangos e bichos rastejantes. Mas difícil satisfazer plenamente os instintos num cotidiano apressado em tudo.
E eis os instantes onde o desejo, a paixão, o instinto amoroso e o prazer, provam a existência de um mesmo e prazeroso sexo no ser indistinto e nas situações ou contextos mais inusitados. E simplesmente porque casais, porque pessoas que se amavam e se desejavam, e não estavam naquela jornada inglória apenas para matar ou morrer. Mas também para compartilhar do possível amor.
Muitos casais faziam parte do bando de Lampião. Alguns já formados antes mesmo de enveredar pelos caminhos cangaceiros, como foi o caso de Cajazeira e Enedina, e outros constituídos após, quando o cangaceiro se interessava por alguma flor sertaneja e tudo fazia para levá-la pelas veredas de sol e de lua. Os rapazes, chegados ao bando geralmente muito moços, apenas saídos da adolescência, somente depois encontravam nas povoações aquelas que lhes seguiriam pelos perigosos caminhos. Apenas alguns já chegavam de aliança e par.
Muitas são as histórias relatando as formas como se deram as uniões entre as mocinhas sertanejas e aqueles rapazes galanteadores e temidos a um só tempo. Os cangaceiros, cabeludos, banhados em perfumes, sempre carregando ornamentos dourados por todo lugar, famosos demais aonde chegassem, causavam verdadeiro rebuliço naqueles corações ainda inocentes. E de repente o temor dava lugar ao amor. Já namorando Canário, Adília se disse enganada quando o rapaz a convidou para uma viagem. Não sabia que era para acompanhá-lo no bando de Lampião, como de fato ocorreu. Mas o acompanharia ainda que soubesse de antemão o destino que teria.
Mas não era nada fácil para as mocinhas de então. Mesmo apaixonada, desejosa de ser levada de casa pelo braço cangaceiro, nem sempre conseguia seu intento, pois a família tudo fazia para afastá-la das vistas daqueles homens tão perigosos. E muitos pais até se mudavam por medo de ter sua filha levada para a vida bandida. Mas quando era o cangaceiro que lançava o olhar sobre a mocinha e nela via uma companheira ideal, então não havia o que fazer. A jovem era levada a qualquer custo.
Sila conta que ficou compromissada ainda novinha, com cerca de treze anos, com o temido Zé Sereno. No dia marcado, ele compareceu para levar consigo sua menina. Muitas outras mocinhas ou mulheres já feitas encontraram naqueles homens das caatingas a oportunidade de expressar seus desejos tão oprimidos naqueles sertões de então. Acompanhavam os cangaceiros não só porque se sentiam atraídas por aqueles símbolos de rude beleza, mas também pela necessidade de partilhar de uma vida onde fossem reconhecidas como verdadeiras mulheres.
Mas o amor trágico não ficou ausente do cangaço. São famosos os casos envolvendo as cangaceiras Lídia, Cristina e Rosinha, mas esta última pela própria ausência do amor cativante e protetor. Lídia, companheira de Zé Baiano, considerada a mais bela entre todas as cangaceiras, traiu seu homem com o cangaceiro Bem-te-vi e por aquele foi impiedosamente morta. Cristina, companheira do cangaceiro Português, foi acusada de manter um romance com Gitirana. Perdoada ou enganada, quando fazia o caminho de volta pra casa foi morta por Luís Pedro, amigo do corneado.
Por sua vez, Rosinha, mulher de Mariano, caiu nas desgraças após a morte deste. Grávida, pediu a Lampião para ir passar uns tempos na casa da família. Mas temendo que a cangaceira revelasse segredos do bando, o Capitão exigiu sua volta. Contudo, seu destino já estava traçado, vez que sua sentença já estava dada pelo próprio Lampião. Eis que havia o código de conduta no bando não permitindo que mulheres deixassem suas fileiras, ainda que em estado de viuvez.
Como afirmado, os casais eram muitos no mundo cangaceiro e dentre os mais famosos estão Corisco e Dadá, Zé Sereno e Sila, Canário e Adília, Cajazeira e Enedina, Luiz Pedro e Neném, Zé Baiano e Lídia, e Criança e Dulce. Mas propositadamente não citei Lampião e Maria Bonita. E não o fiz porque o mais famoso dos casais cangaceiros talvez esteja além de uma mera síntese conjugal na vida bandoleira dos carrascais.
Em Lampião e Maria Bonita toda a pujança de um amor que não mediu esforços para acontecer e que aconteceu contradizendo a lógica daquele momento. Ele, o maior, o líder, certamente podendo escolher como companheira qualquer mocinha que encontrasse, preferiu lançar o olhar numa mulher casada. E ela, infortunada na vida amorosa que levava, não pensou duas vezes em se entregar aos braços do Capitão. E os dois se entrelaçaram naquele triste leito de morte de 38.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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