SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 3 de abril de 2014

UM DIA (DO GALO CANTAR AO OLHO PESAR)


Rangel Alves da Costa*


Na verdade, o sertanejo levanta mesmo antes que o galo desperte e comece a ensaiar seus trinados. Quando o bicho vai anunciar a manhã, esta já é conhecida há muito por quem pula da cama ainda com o tempo escurecido e vai preparando uma coisa e outra para o longo dia.
Assim, ao levantar não esquece o benzimento e a primeira oração do dia. E esta geralmente se dá já lá fora no meio do tempo, quando a porta é aberta e os olhos procuram os céus para pedir proteção. A mulher sempre prefere o oratório num canto da casa.
Depois de caminhar um pouco pelos arredores, na malhada da casa, retorna e vai até a cozinha preparar um cafezinho. Café torrado, batido no pilão, e logo o cheiro toma conta do madrugar sertanejo. Enche a xícara, coloca duas colheradas de açúcar e vai bebericar da porta da frente adiante.
O tempo já está mais claro, já se avistam os quadrantes da vida, a natureza ao redor, as paisagens que murmurejam para dar bom dia. Aquela xícara de café serve apenas para melhor despertar, pois dali a pouco tomará outra com alguma mistura.
A essa altura, ainda em plena madrugada, a sertaneja já colocou o cuscuz de milho ralado no fogão de lenha, colocou um pedaço de preá salgado na brasa e derramou o café no bule. Dali a pouco o esposo chegará pra primeira sustança do dia.
No momento ele está agachado segurando o peito da vaquinha para derramar o leite no balde. São apenas três as vaquinhas que dão o leite para o uso familiar e para fazer dois ou três queijinhos por semana. Leva uma caneca com farinha para experimentar um leitinho quente ali mesmo.
Volta apressado, senta à mesa e come pouco. Duas talhadas de cuscuz, uma perna de preá, uma xícara de café, e pronto. Conversa com a mulher alguma coisa e se prepara para começar os outros afazeres do dia.
Coloca nas costas o alforje e o cantil, leva na mão a enxada e a foice e um facão preso ao velho cinturão de couro cru. Está de alpercata e chapéu de couro também cru, de roupa grossa e desgastada, vestimenta de todo dia para lidar com a terra, com toco, com garrancho, com pedra e tudo o mais que vier pela frente.
Ajeita uma cerca que foi derrubada por algum animal, se dirige até o cadinho da palma e ali sai cortando duas carreiras, vai juntando tudo num só lugar pra mais tarde, ao entardecer, levar pro gado se alimentar. Logo adiante, na outra parte do roçadinho, está um trabalho mais duro.
O mato está alto, crescido demais, com muitas ervas daninhas se alastrando por todo lugar. Será preciso limpar a terra e prepará-la pra quando a chuva chegar e a semente ser jogada na terra. Por isso que vai roçando, cortando, derrubando tudo, deixando tudo ali mesmo pra secar e outro dia fazer coivara e queimar tudo.
O sol já está alto, o calor se torna insuportável. Morde um pedaço de rapadura e bebe da água do cantil. Retoma o caminho de casa porque já é hora de botar no bucho o que tiver na panela. Se tiver, mas sempre tem qualquer coisa. Mesmo pouco, mas sempre tem.
Depois do de comer do meio dia não tem tempo nem de descansar, de tirar uma soneca reparadora. Não demora muito e cela o cavalo magro para seguir até uma propriedade mais adiante. O dono da fazenda precisa dos seus serviços pra juntar um gado que se espalhou.
Faz o seu serviço bem feito, coloca no bolso o ganho pela labuta no meio do mato, no estropiamento pelas pontas de paus, e pega de novo o caminho de casa, voltando cansado, porém contente e realizado.
Quando desce do animal na frente da tapera já está quase escurecendo. Ao entrar em casa e cumprimentar a esposa o faz para pedir que lhe sirva uma dose da casca de pau apurada. Vira meio copo de aguardente na aroeira e somente depois se desfaz da vestimenta sertaneja.
Dali a pouco, depois do banho de cuia, o café com qualquer coisa e em seguida a noite para viver e sonhar. Senta num velho tronco lá fora, olha tudo ao redor, agradece a Deus por mais um dia e começa a afinar a viola.
E faz cantoria até tarde da noite, até o olho cansar, o sono chegar e o herói completar com honradez o seu dia.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

Um comentário:

Anônimo disse...

O meu bom-dia Dr. Rangel.
Conheço um cidadão que reside e trabalha numa das nossas capitais brasileiras, que galo nenhum consegue acordar e entrar em ação antes dele. Quase sempre pula da cama às DUAS E TRINTA DA MANHÃ e fica inventando o que fazer. Escreve uma crônica; posta um artigo no blog; cria poemas; elabora produção jurídica etc. etc.....Tudo isso antes do galo deixar o poleiro.
Parece que é filho das Terras Sertanejas do saudoso mestre ALCINO ALVES COSTA?!
Abraços,
Antonio Oliveira - Povoado Bela Vista desta Serrinha da Bahia.