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segunda-feira, 28 de abril de 2014

RELÓGIO DE PAREDE


Rangel Alves da Costa*


É da lavra de Machado de Assis este sutil e realista reconhecimento: “O mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede. Conheço um que já devorou três gerações da minha família”.
E não apenas feroz e devorador, mas também silenciosamente ameaçador, numa mudez que só desperta para dizer que tem pressa para seguir adiante e que deseja levar consigo qualquer um que não lhe dê atenção.
Talvez apenas uma parede, talvez apenas um relógio antigo dependurado, lentamente pulsando sua temerosa existência. Foi colocado ali apenas para marcar as horas, para lembrar os compromissos, para que ninguém se esqueça de sua presença, pois tudo dele depende.
Antigo, herança de gerações, imenso e parecendo tão solitário e esquecido. Com caixa de madeira de lei, o verniz parece esconder as rugas da existência. Ao longe ninguém percebe seu passo, não ouve seu pulsar metódico, sequer ouve sua voz maior quando o ponteiro chega na hora exata.
Mas qual hora exata? No relógio de parede, qualquer hora é a hora exata, principalmente para marcar um tempo que se vai ou que já se foi. Ou despertar a atenção para o instante seguinte. Mas também para marcar o momento exato da despedida de alguém. Eis a morte sempre marcada no relógio.
Na mesma parede, ao lado e ao redor do relógio, os muitos e invisíveis retratos daqueles que já partiram num determinado instante do ponteiro. Retratos antigos, molduras de outros tempos, feições ainda sorridentes ou entristecidas, olhares mirando o presente. E somente os retratados para saber quem o ponteiro procura para chamar.
O relógio percorre incansável, com inexplicável vigor. Desde mais de cem anos que já batia no mesmo ritmo, desde antepassados distantes que já marcava o tempo de tudo. Inexplicavelmente nunca para, nunca cansa, nunca se torna exaurido de sua função. Diferentemente ocorre com aqueles que passam diante de sua face e apenas se preocupam em seguir adiante.
Talvez o relógio tenha um segredo a ser revelado. Acaso alguém se demorasse mais diante dele, o olhasse com mais atenção e levasse o ouvido até jutinho dos ponteiros, certamente que ouviria algo além daquele quase que silencioso pulsar. Ouviria o segredo e o mistério seria revelado.
Mas qual segredo e qual mistério? Segredo de relógio antigo é o mistério que carrega para continuamente sobreviver, marcar o tempo quase que eternamente. E o mistério está no seu jeito de percorrer a estrada, de caminhar lentamente para marcar o tempo.
Na revelação do segredo e do mistério estaria também o percurso do homem. Talvez não só o relógio pudesse ter existência tão prolongada. Contudo, o homem teria de aprender a viver segundo o caminho do tempo. Há certeza de que chegará adiante, de que avançará na marcha dos anos, mas sempre dando um passo de cada vez.
O relógio possui ponteiros para segundos, minutos e horas. E cada um vai passando de estação a estação, avançando nos segundos, nas horas, nos dias, nos meses, nos anos, nos séculos. E não cabe ao homem, escravo que é do tempo, querer ultrapassar estágios na sua caminhada.
Porque não presta atenção ao relógio, porque não guarda um momento diante de sua presença e procura desvendar seu segredo e mistério, o homem por ele vai sendo devorado sem perceber. Eis que cada segundo do relógio é um fio da existência humana que se desfaz. E vai corroendo tudo, lentamente, até que o ponteiro marque o fim.
O relógio continua na parede, e assim continuará com as próximas gerações. Mas o homem, que não passa de um segundo na vida, estará somente no retrato empoeirado que ele mesmo vai emoldurando na sua breve caminhada.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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