SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 13 de abril de 2014

A CARTA DE M. K.


Rangel Alves da Costa*


Alguém ultrapassou o portão de madeira, entrou no que restava do jardim, e após a ventania espalhar as folhas secas de cima de um banco, avistou algo inesperado. Era uma carta já amarelada e assinada apenas com as letras M. K, e com as seguintes palavras:
Não adianta me procurar. Por enquanto não. A janela está fechada, a porta também. Dentro da casa não há nada que diga sobre os meus passos. Está carta, como se vê, foi deixada em cima do velho banco do jardim sem flores.
Meu temor maior seria esta carta não ser encontrada, colocada que foi por cima das folhas secas do outono que nunca termina. Imaginei que as folhas constantemente caindo acabassem esvoaçando e fazendo pouso em cima destas minhas palavras, agora tão distantes. E este o meu medo maior, o de não poder ser lido no que tanto preciso dizer.
Alguém que algum dia force a porta e entre em casa para conhecer ou levar o que restou, logo perceberá a nudez do meu lar. Apenas uma mesa tosca de madeira, dois bancos também de madeira, um fogão de barro, uma moringa e um pote. E cacarecos de comer e beber. Apenas isso. Mas eu não precisava ter algo além.
Em cima da mesa há um caqueiro com os restos do que brotava uma flor lilás. Deixei que ressecasse e morresse porque assim desejei. Aquela flor tão viva no meu olhar afrontava o meu estado de espírito, a minha alma padecente. Na parede há só uma moldura sem nada ao fundo. Rasguei o retrato que eternamente sorria. Mas nada pude fazer com os escritos tomando as poucas paredes.
Certamente se mostrará muito estranho ao olhar que se deparar com aqueles rabiscos. Houve um tempo que não me restava nem mais uma folha de caderno, um pedaço de papel sequer, então resolvi escrever meus poemas e epitáfios de outra maneira. Não havia outra coisa a fazer. E assim lancei mão do carvão que se juntava das brasas mortas e fui rabiscando as paredes, com letra miúda, vez que tinha muito a escrever.
Os poemas estão esparsos, porém todos tratam sobre uma face que sorri, depois se firma impassível, para depois entristecer. E no entristecimento as dores tantas, as lágrimas surgindo, a agonia e a aflição. Para depois lentamente sucumbir no vazio da vida, restando somente os epitáfios ali também escritos. E num deles se evidencia: A morte abriu a porta, chamou-me e parti. Que não chore o adeus quem comigo não sorriu!
Do lado de fora da casa, como daqui logo se pode ver, nada é muito diferente do que lá dentro pode ser encontrado. Tudo tão pouco ou quase nada, mas de imensa significação, ao menos para os que têm sentimentos. Tudo parece eterno outono, tudo parece velho, entristecido e cheio de sombras. E também de segredos e mistérios.
Mesmo com a janela fechada há, no lado de fora do umbral, um ninho de passarinho que já encontrei quando aqui cheguei. Só avistei o seu dono por duas vezes, a primeira no dia seguinte que abri a janela, e a segunda no instante em que resolvi fechá-la para sempre, e partir. Naquela primeira vez, lembro bem, pensei ter ouvido o seu canto. Mas nesta última ele parecia mais entristecido que eu.
Juro que jamais descobri o mistério que acoberta aquele ninho. Encontrei-o já envelhecido, com gravetos parecendo de muitos anos, mas mesmo assim, depois de tantos anos, ainda parecia o mesmo da última vez que o avistei. Também não sei o motivo de aquele passarinho só ter aparecido duas vezes no percurso de tantos anos. Mas um dia sonhei que somente mais uma vez o encontraria, e seria no dia de minha despedida.
Quem estiver lendo está carta talvez consiga avistar o passarinho e seu canto. Mas seria melhor que não. É muito perigoso que vá até o umbral da janela e o encontre repousando no seu ninho. E o seu canto será mortal, eis que o sonho me disse que todo aquele que ouvir seu trinado tomará suas asas e partirá para jamais voltar.
Verdade que nunca ouvi o seu canto. Mas minha solidão e minha tristeza desejavam tanto aquela canção que um dia resolvi ir procurá-lo onde pudesse encontrar. E fechei a porta e a janela e saí por aí. Levei meu cantil de veneno e bebi.
Não sei se ganhei asas e subi ou se permaneço espectro por aqui. Talvez encontre um dos meus epitáfios escrito na madeira até bem pouco coberto por folhas secas. Talvez eu ainda esteja aqui sentado observando a vida que não existe mais.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Nal Pontes disse...

Um tanto nostálgico. Desejo um domingo maravilhoso.