SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 11 de abril de 2014

PAISAGEM COM PEDRA, ESPINHO E FLOR


Rangel Alves da Costa*


Meus olhos já conhecem a vida, já conhecem o mundo, já conhecem o tempo. De tanto avistar paisagens, mirar horizontes e descortinar cenários, já conhecem as cores e as molduras, as mudanças e as permanências.
Meus olhos já espelharam as águas da fonte na minha infância, já brilharam a mesma imensidão da lua iluminada do meu rincão, já se encantaram e choraram por cima das pedras do rio que não passa pela minha aldeia.
Meus olhos já avistaram a fome e a sede, e como ainda dói recordar as entranhas do meu sertão; já miraram a secura da terra e a lindeza da semente brotando; já esturricaram as lágrimas diante de mil sóis caindo no meu quintal. Tudo, ou quase tudo, os meus olhos já viram, e por isso mesmo já sem aquele brilho próprio dos encantamentos com o novo encontrado.
Meus olhos eram amigos dos lenços, das mãos enxugando lágrimas, dos cantos que escondiam as tristezas. Também eram amigos do sorriso, do aperto bom de felicidade, da nobreza ao emoldurar aquilo que tanta alegria trazia à alma. Mas tudo noutro tempo. Hoje meus olhos apenas veem.
Apenas veem, mas de vez em quando querem se fechar de saudade. Quando recordo os tempos idos, os passos percorridos pela estrada, as cancelas ultrapassadas, as conquistas na alma e no coração, meus olhos logo sorriem. Mas em seguida, apertam, sufocam. E começam a lacrimejar.
Lacrimejam com as saudades e as recordações, choram diante de retratos e fotografias, verdadeiramente naufragam quando penso em faces, feições, sorrisos, gestos, situações. Mas se derramam em vazante quando o meu pensamento se distancia da realidade e vai em busca de uma paisagem que jamais esquecerei.
Sim, jamais me esquecerei daquela paisagem com pedra, espinho e flor. Sim, jamais será esquecida no baú de minha memória aquela paisagem sertaneja com pedra, espinho e flor. Debaixo do sol escaldante ou da lua mais bela e plangente, aquele cenário emoldurado pela terra ressequida e tendo ao centro a pedra o espinho e a flor.
Basta seguir pelos caminhos sertanejos, por estrada de chão ou vereda aberta na mata, e logo surgirão os elementos tão característicos daquelas distâncias. E adiante o mandacaru, o xiquexique, a macambira, a palma, a aroeira, a catingueira, o angico, o cedro. Também a vaca magra, o boi esquelético, o tanque lamacento ou completamente petrificado.
E adiante também o calango, a cobra, talvez um preá, uma nambu, uma rolinha fogo-pagô. As plantas espinhentas se espalham de canto a outro, os galhos perfurantes ameaçam os desatentos, as pedras pontiagudas ameaçam os solados, as tocas e moitas escondem ameaças infindas. Tudo típico, tudo a própria vida do sertão.
Mais adiante um casebre, um velho carro de bois, um jegue debaixo de um juazeiro, um tronco de pau servindo com assento diante da choupana. Avista-se um cachorro magro, sente-se no peito o calorão da estiagem, revira-se a moringa na janela e nada encontra para matar a sede. Que vida, a desse sertão!
Mas ali também a beleza da paisagem com a pedra, o espinho e a flor. A pedra grande escondendo nas suas entranhas impensáveis raízes, pois dela vai brotando flores amareladas, violetas ou avermelhadas, e nela também o nascimento da cabeça-de-frade e sua auréola aveludada e tingida por incrível coloração. E fazendo despontar pequeninas e lindas flores. E tudo nascido da pedra, na dureza da pedra.
Também a flores do mandacaru nascendo no alto de seus braços longos, encurvados e espinhentos. Espinhos grandes, ameaçadores, mas dizem que nasceram e estão ali não para ferir pessoas ou animais. São assim pontiagudos para proteger aquelas flores dos raios do sol, pois apaixonados são por aquelas flâmulas amareladas do jardim sertanejo.
E é por isso que o sol não resseca o mandacaru. E também é por isso que vivo aflitivamente saudoso daquela paisagem com pedra, espinho e flor.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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