SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 30 de maio de 2021

CAFÉ TORRADO E OUTRAS SAUDADES


*Rangel Alves da Costa

 

Tudo lembra sertão. Café torrado, sinos, cuscuz, quintais, varais, rosários e terços, oratórios e imagens santas por cima das banquinhas. Fitas do Padim Ciço, flores de plástico envelhecidas em jarro, retratos antigos nas paredes.

Tudo lembra sertão. Não este sertão de agora, de modismos e negações das raízes e da história, de desvalorização dos bons costumes e dos respeitos que conduziam as vidas em comunidade.

Aquele sertão antigo mesmo, o sertão do carro-de-bois, do autêntico vaqueiro, do roceiro e do mateiro, do caçador e das valorosas mãos das parteiras. Seu João Retratista, chegado diretamente da alagoana Pão de Açúcar para a Festa de Agosto, testemunhava em preto e branco aquelas roupas de chita, as calças boca-de-sino, as camisas finas de volta-ao-mundo.

Pano enfestado não faltava. As irmãs Marques, Izabel, Mãezinha e Conceição de Timbé, todas enfeitando o povo para as festanças, para os forrós com Zé Goiti, Zé Aleixo, Dudu Ribeiro, Agenor da Barra, e tantos outros.

Tinha forró comendo no centro, mas com um medo danado que Zé Valentim aparecesse no meio do salão transformado no rato maior do mundo. Ainda assim Zelito, pandeirista, zabumbeiro e cantador de Zé Aleixo, entoava para o prazer dos corpos suados e cheirando a pinga de balcão: “Ai eu não posso ver ninguém chorar, porque vem logo uma vontade em mim. Quem foi que disse que não chora por amor, pois os meus olhos já chegaram ao fim...”.

A noite virava e os chinelos continuavam chinelando pelos salões forrozeiros. Miltinho ainda nem pensava em abrir um bar e depois transformar no salão forrozeiro mais famoso da cidade, quando o toque das sanfonas já ecoava no Salão da Prefeitura e no Bar de Delino, dentre outros locais.

Se o sapato estava velho, desgastado ou com aparência não muito boa, não havia problema. Era época de Manezinho Tem-Tem aparecer na cidade e passar de porta em porta pergunta quem desejava que ele fizesse milagres com sua caixa de engraxate. Expedito, o doido agalegado, não perdia uma festa. Parecia um tição de fogo quando estava enraivecido com a rapaziada.

Depois, os mais jovens passaram a ter a opção dos bailes dançantes, principalmente no Mercado Municipal. R Som 7, Dissonantes, Impacto Som, Embalo D, dentre outras bandas e conjuntos musicais. Eram noites inesquecíveis, dançando agarradinhos, sob chuva de luzes, ao som de My Mistake e outros sucessos: “There was a place that, i lived and a girl so young and fair, i have seen many things in my life…”.

Como havia escuridão por todos os lados, então a rapaziada sumia pelos cantos e becos e ia namorar e fazer safadeza nos escondidos. Um sertão muito diferente, nostálgico, bucólico, simples, porém grandioso em sua essência. Maria passando com pote na cabeça em direção ao tanquinho.

Ao redor do Tanque Velho, as comadres dando conta da vida dos outros enquanto esfregavam panelas. De repente, o medo que a vaca de careta, correndo desembestada pelo meio da rua, entrasse por qualquer porta. E entrava mesmo. Ao entardecer, o cheiro oloroso, saboroso, forte, gostoso, do café torrado. Filas eram formadas na porta de Dona Lídia em busca de um tiquinho de seu famoso café.

E logo os sinos dobravam na igreja. Hoje não, mas antigamente a noite chegava sempre abençoada pelos sinos. Eram instantes de fé, de devoção sertaneja, de abnegação ao sagrado. A noite ia avançando entre os proseados nas calçadas e os abraços da brisa boa. As mocinhas nas janelas, apenas sonhando com seus príncipes encantados. Pelas ruas nuas, de pouco movimento, a criançada brincando de roda, as mãos em ciranda e a pureza nos corações.

Com a réstia de qualquer luz, as mãos da meninada transformavam as paredes em verdadeiro cinema. Outros preferiam brincar de pega-de-boi em plena escuridão. Um menino era escolhido como boi, e então corria para se esconder. Não demorava muito e o restante saía em disparada atrás do bicho fogoso.

Assim era a vida. Assim nos sertões de antigamente.

 
Escritor
blograngel-sertão.blogspot.com


Lá no meu sertão...


São Francisco do Sertão!






Beije! (Poesia)


Beije!

 
O lábio solitário
ressequido de solidão
ao desvão caminha
em busca de outro lábio
 
outro lábio entristecido
sedento pra ser tocado
ao desalento vai
em busca de outro lábio
 
numa rua chamada destino
os dois lábio se avistam
mas seguem caminhando
mesmo querendo ficar
 
mas os olhos se avistam
e os passos fazem a volta
chegando ao mesmo lugar
onde queriam ficar
 
então os olhos se abraçam
os desejos se enlaçam
os lábios se umedecem
e o destino sorridente
 
diz: beije!
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - quando chove


*Rangel Alves da Costa

  

Quando chove, ah quando chove! Eu sou nuvem prenhe, nuvem cuspindo longe, nuvem em alvoroço, um rio que corre, um mar que transborda. Quando chove eu sinto o livro revirar a página, jogar longe os escritos ressequidos e encharcar de esperanças as suas folhas. Quando chove eu leio na vidraça o que jamais consigo em tempos de sol. E tudo me diz da nostalgia, da saudade, do desejo de ter novamente. Quando chove eu me torno criança novamente, afloram-me os desejos de nudez e de sair correndo por aí por cima das poças d’água. Quando chove eu me deixo molhar por dentro e por fora. As nascentes da alma logo se tornam em leitos correntes, ávidos, impulsivos, em busca de novos destinos. Meu corpo banhado, inteiramente respingando o instante, deixa-se ser apenas ele na fria e gelidez que tanto me faz querer ser abraçado e protegido. Quando chove eu sempre choro e entristeço, eu sempre silencio e esmoreço. Não que a chuva seja ruim ou que causa aflição, mas por que as águas se derramam sobre velhos baús e então tenho que reler as velhas cartas de um passado. Da janela entreaberta eu olho cada pingo que vai caindo. Abro a porta e me deixo levar na correnteza. Não sei se durmo ou se sonho. Só sei que lá fora a chuva cai.

 

Escritor


quarta-feira, 26 de maio de 2021

BALA DE OURO PRA MATAR PREÁ (UMA HISTÓRIA DE CORONÉIS)


*Rangel Alves da Costa

 

Só que “Preá” era o apelido dado ao coronel Tibúrcio. Aí foi que foi a gota serena.

Dentão, o mais feioso e malvado dos jagunços, ao receber a bala de ouro logo pensou que era coisa de engolir.

Só não mastigou porque o coronel Leocádio adentrou na varanda logo dizendo: “Vou cuspir. E antes que o cuspe seque eu quero a orelha do desgraçado jogada no lugar da cusparada. Chispa daqui e vá logo matar Preá”.

Noite de lua cheia, pelas matas os sons de estranhos uivos, o jagunço ficava ainda mais zoiúdo tentando avistar a passagem do coronel Tibúrcio, o famoso Preá.

Era certeza ele passar por ali, pois de volta da casa de Joaninha Boca de Mel, uma rapariga mantida nas redondezas.

Mas naquela noite o coronel não passaria por ali de jeito nenhum. E não faria normalmente aquele caminho porque era exatamente a noite de ele virar lobisomem.

Sim, o coronel virava lobisomem. Dentão, o jagunço, esperou e mais esperou e nada de Preá passar.

E começou a matutar, já pensando na desgraceira que iria acontecer se não levasse a orelha do inimigo maior do patrão.

“Essa hora o cuspe já secou. E se secou o coroné vai querer disforrá em riba deu”. Sentiu a orelha queimando, passou a mão, e era como se a sentisse sendo arrancada a canivete.

“Danou-se. O coroné vai querê cortá minha oreia, mais isso num vai não”. Disse a si mesmo, já revirando de raiva por dentro.

Como o dia já clareava, resolveu voltar e enfrentar o que viesse pela frente. Antes de sair do meio do tufo de mato, apontou a arma a um lugar qualquer e apertou o gatilho, só não pra não perder de vez a viagem.

Mas a bala viajou até acertar bem na testa de um homem que acabava de desvirar lobisomem. Era o coronel Tibúrcio. O jagunço matou Preá sem saber que assim tinha feito.

Sem sequer imaginar que o inimigo do patrão acabava de virar finado, e assim minimizar seu problema com o cuspe já seco, assim que adentrou a porteira logo avistou o coronel Leocádio virado na peste, raivoso que só a moléstia, em tempo de estrebuchar de tanta raivice.

E gritando: “Trouxe a orelha do safado?”. Então o jagunço simplesmente respondeu: “Truxe”.

E apontou outra arma em sua direção e apertou o gatilho. Assim que abriu a boca pelo espanto do tiro recebido, o coronel engoliu o charuto aceso e emborcou pelo chão fumaçando, e bem em cima da marca da cusparada.

Depois disso, o jagunço fez de conta que nada tinha acontecido e saiu assoviando.

Não sabia, contudo, que havia matado dois coronéis numa empreitada só, e terminado, assim, uma das faces mais perversas do coronelismo nordestino.

 

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


Lá no meu sertão...


Sertão de Fé. Fé no Sertão.



Flores de maio (Poesia)


Flores de maio

 
As flores de maio
estão indo embora
 
as flores e suas cores
suas borboletas e colibris
suas canções da manhã
as folhas pelos canteiros
doces versos na ventania
imaginar ser assim
em qualquer jardim
 
mas as flores de maio
em jardim tão triste
em paisagem aflitiva
refletindo as dores
e os espinhos do viver
choram em suas pétalas
as lágrimas de todos nós
 
e assim se vão as flores
as flores de maio e da vida
em estações tão sombrias
como nossas agonias.
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - coração sertanejo


*Rangel Alves da Costa

 

Eu bem poderia ser um velho calendário numa parede de barro, uma fita desbotada do Juazeiro do Padim Ciço, um candeeiro enferrujado em cima da banquinha. Eu bem poderia ser um oratório de canto de quarto, um carcomido jarro de flores velhas de plástico, uma imagem santa desbotada pelo tempo. Eu bem poderia ser aquela plaquinha antiga e alquebrada dizendo que aqui mora uma família feliz, um tamborete de pé de porta ou uma trempe sem pote lá no fundo da cozinha. Eu poderia ser a moringa na janela, a panela de barro ou mesmo o velho carro-de-bois esquecido debaixo do umbuzeiro. Eu bem poderia ser tudo isso. E sou tudo isso. Sou o vaga-lume, sou o grilo, sou carcará-gavião. Sou a cruz da desvalia, sou o pedaço de pão. Sou o rosário de contas, sou o silêncio da oração. Sou Sertão.


Escritor


domingo, 9 de maio de 2021

A MENINA FLOR E OS ESPINHOS DA VIDA


*Rangel Alves da Costa

 

Uma bela flor. Uma jovem linda, uma adolescente, uma forma de vida tão cheia de graça e de formosura.

A menina flor ainda não vive os perigos após as portas abertas da adolescência. A tão bela mocinha ainda não conhece as estradas tão atraentes adiante, porém cheias de labirintos e de feras humanas.

A menina ainda é flor. Muito diferente de grande parte das adolescentes, que mesmo ainda não tendo saído completamente da infância e já se procuram se mostrar além do que são e fazer além do que podem.

A menina ainda brinca com sua casinha de boneca, ainda conversa com seus brinquedos, ainda dorme choupando o dedo. Bem poderia pensar somente em se arrumar, usar shortinho ou roupa justa, e abrir a porta pra se danar pelas ruas.

Bem que poderia, mas ela sequer pensa nisso. As coleguinhas da escola a chamam para fugir da aula, para andar por aí, para encontrar amiguinhos, mas ela sempre diz não. Recebe bilhetinhos enamorados, mas sequer responde.

De sua janela, seu olhar inocente vai afastando o mundo, mas sempre prefere enxergar alguma borboleta, algum passarinho, alguma coisa interessante que vá passando. Tem vontade de sair correndo pelos campos para conversar com as flores.

Certo dia, até ficou sem compreender quando avistou uma ex-colega de escola já de barriga grande, em estado de gravidez. Sequer imaginava o que poderia ter acontecido para que a amiga pudesse estar assim.

Ao ser avistada à janela, aqueles conhecidos da escola sempre se aproximavam para um convite. Ouvia suas gírias, suas falas quase incompreensíveis, seus chamados sem pé nem cabeça, mas não se interessava muito em saber em saber o porquê de aquilo tudo estar acontecendo.

Mas não era mais criança. Seu corpo já era de mocinha, sua forma física como a de uma bela e demasiadamente atraente adolescente. Com sua idade e beleza, certamente que outras mocinhas se encheriam de batons, perfumes, enfeites e passariam longos tempos perante o espelho.

Depois do espelho, a rua. O abrir a porta e sair por aí. Mas aquela mocinha era diferente. Não gostava nem de ouvir muito sobre sua beleza. Não dizia nada, mas ficava raivosa toda vez que ouvia que logo estaria com namorado.

Numa feita, perguntou à boneca de pano se ra bom beijar e qual o gosto que teria um beijo. Perguntou se era bom namorar e se não havia perigo algum de ter deixar de ser o que ela era e como gostava de ser. Silenciosa, a boneca parecia entristecida.

Um dia, resolveu se vestir como as outras meninas, pentear os cabelos de uma forma mais solta, encher os lábios de batom e as orelhas de brincos. Depois se mirou no espelho e não se reconheceu. Estava feia, aquela não era ela, nada daquilo queria. Disse a si mesmo.

Ofereceram-lhe um cigarro, um copo de bebida, um pó pra cheirar. Não, não quero, obrigado. Era o que sempre dizia. Mas resolveu não dizer mais. Compreendeu que só estavam oferecendo aquilo porque estava perto de pessoas que não deveria estar. E se afastou de uma vez.

Mas não era fácil viver assim, sempre se afastando das pessoas que não lhe pareciam úteis. Mas tinha de ser assim, sempre repetia. Também sofria por não deixar ser moldada segundo os outros desejavam. E dizia a si mesma que se fosse pelos outros, então deixaria de ser como tanto gostava de viver.

Então pendurou um calendário na parede, mas não que tivesse interessada em datas, meses, anos ou dias passando, mas tão somente para que o calendário simbolizasse a si mesma. Simplesmente deixaria o tempo passar, passar, passar.

E o tempo seria sua lição. Se houvesse que mudar, então mudaria. Se fosse pra namorar, um dia namoraria. Tudo no seu tempo. 

 
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


Lá no meu sertão...


Pelos Sertões...



Da janela (Poesia)


Da janela

 
A janela está fechada
na manhã despertada
 
o sol entra pela fresta
no dia que já é festa
 
então abro a janela
e a vida vem tão bela
 
um pássaro cantando
uma borboleta voejando
 
uma flor que não vejo
um velho som de realejo
 
a moça bela sorridente
em tudo o fogo tão ardente
 
menino correndo além
a meninada vai também
 
o clarão do dia em mim
doce aroma de um jardim
 
na cozinha a panela
leite despejado em gamela
 
viver na luz o seu lume
é da existência o perfume
 
se em tudo uma aquarela
não fecho mais a janela.
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - no banco da praça


*Rangel Alves da Costa

 

Mesmo enevoado e triste, o entardecer na solidão do banco da praça é muito melhor. As folhas da amendoeira são balançadas pelo vento e se lançam em voo para repousar a meus pés. Os pombos já comeram seu grão e já retornaram às suas distâncias. As avoantes já cortaram os céus afogueados pelo lume do último sol, e por isso mesmo o meu olhar já não divisa a passarada do entardecer. Folhas mortas, folhas entristecidas, canteiros ao relento e desalento. E eu sozinho. O vento sopra, vem murmurando segredos, mas nem tenho o cuidado de ouvi-lo. Estou triste. Diviso uma pessoa do outro lado da praça e imagino que esteja com maior satisfação do que eu. Depois percebo que a moça se assentou num banco ao canto, rente à fonte luminosa que não acende mais. Ela permanece lá, sozinha, talvez esperando alguém ou deixando simplesmente o tempo passar. O tempo avança e não vai demorar em a boca da noite chegar. Continuo melancólico e triste, e certamente nada me fará diferente, ao menos por enquanto. E também certamente eu serei o único em tamanha tristeza na praça. Chega a hora de ir embora. Levando já pisando no tapete frio de folhas mortas e vou seguindo. Ao passar pela moça, então percebo o seu rosto encharcado de lágrimas. Não sofro sozinho. Talvez o mundo esteja sofrendo.


Escritor