*Rangel Alves da Costa
Tudo
lembra sertão. Café torrado, sinos, cuscuz, quintais, varais, rosários e
terços, oratórios e imagens santas por cima das banquinhas. Fitas do Padim
Ciço, flores de plástico envelhecidas em jarro, retratos antigos nas paredes.
Tudo
lembra sertão. Não este sertão de agora, de modismos e negações das raízes e da
história, de desvalorização dos bons costumes e dos respeitos que conduziam as
vidas em comunidade.
Aquele
sertão antigo mesmo, o sertão do carro-de-bois, do autêntico vaqueiro, do
roceiro e do mateiro, do caçador e das valorosas mãos das parteiras. Seu João
Retratista, chegado diretamente da alagoana Pão de Açúcar para a Festa de
Agosto, testemunhava em preto e branco aquelas roupas de chita, as calças
boca-de-sino, as camisas finas de volta-ao-mundo.
Pano
enfestado não faltava. As irmãs Marques, Izabel, Mãezinha e Conceição de Timbé,
todas enfeitando o povo para as festanças, para os forrós com Zé Goiti, Zé
Aleixo, Dudu Ribeiro, Agenor da Barra, e tantos outros.
Tinha
forró comendo no centro, mas com um medo danado que Zé Valentim aparecesse no
meio do salão transformado no rato maior do mundo. Ainda assim Zelito,
pandeirista, zabumbeiro e cantador de Zé Aleixo, entoava para o prazer dos
corpos suados e cheirando a pinga de balcão: “Ai eu não posso ver ninguém
chorar, porque vem logo uma vontade em mim. Quem foi que disse que não chora
por amor, pois os meus olhos já chegaram ao fim...”.
A noite
virava e os chinelos continuavam chinelando pelos salões forrozeiros. Miltinho
ainda nem pensava em abrir um bar e depois transformar no salão forrozeiro mais
famoso da cidade, quando o toque das sanfonas já ecoava no Salão da Prefeitura
e no Bar de Delino, dentre outros locais.
Se o sapato
estava velho, desgastado ou com aparência não muito boa, não havia problema.
Era época de Manezinho Tem-Tem aparecer na cidade e passar de porta em porta
pergunta quem desejava que ele fizesse milagres com sua caixa de engraxate.
Expedito, o doido agalegado, não perdia uma festa. Parecia um tição de fogo
quando estava enraivecido com a rapaziada.
Depois, os
mais jovens passaram a ter a opção dos bailes dançantes, principalmente no
Mercado Municipal. R Som 7, Dissonantes, Impacto Som, Embalo D, dentre outras
bandas e conjuntos musicais. Eram
noites inesquecíveis, dançando agarradinhos, sob chuva de luzes, ao som de My
Mistake e outros sucessos: “There was a place that, i lived and a girl so young
and fair, i have seen many things in my life…”.
Como havia
escuridão por todos os lados, então a rapaziada sumia pelos cantos e becos e ia
namorar e fazer safadeza nos escondidos. Um sertão muito diferente, nostálgico,
bucólico, simples, porém grandioso em sua essência. Maria passando com pote na
cabeça em direção ao tanquinho.
Ao redor
do Tanque Velho, as comadres dando conta da vida dos outros enquanto esfregavam
panelas. De repente, o medo que a vaca de careta, correndo desembestada pelo
meio da rua, entrasse por qualquer porta. E entrava mesmo. Ao entardecer, o
cheiro oloroso, saboroso, forte, gostoso, do café torrado. Filas eram formadas
na porta de Dona Lídia em busca de um tiquinho de seu famoso café.
E logo os
sinos dobravam na igreja. Hoje não, mas antigamente a noite chegava sempre
abençoada pelos sinos. Eram instantes de fé, de devoção sertaneja, de abnegação
ao sagrado. A noite ia avançando entre os proseados nas calçadas e os abraços
da brisa boa. As mocinhas nas janelas, apenas sonhando com seus príncipes
encantados. Pelas ruas nuas, de pouco movimento, a criançada brincando de roda,
as mãos em ciranda e a pureza nos corações.
Com a
réstia de qualquer luz, as mãos da meninada transformavam as paredes em
verdadeiro cinema. Outros preferiam brincar de pega-de-boi em plena escuridão.
Um menino era escolhido como boi, e então corria para se esconder. Não demorava
muito e o restante saía em disparada atrás do bicho fogoso.
Assim era
a vida. Assim nos sertões de antigamente.
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