SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 23 de janeiro de 2022

ODEIO INTELECTUAIS


*Rangel Alves da Costa

 

Termos acadêmicos existem que servem apenas para colocar muros onde deveria existir campo aberto. Discriminações, evidentemente. Ora, o termo escritor, por exemplo. Na verdade, o que é ser um escritor? Somente aquele que publica livros, ou também aqueles que deixam seus originais nas gavetas, ou também ainda aqueles que escrevam cartas, bilhetes, qualquer tipo de escrito? Quem escreve é escritor, e seja de que tipo de escrita for. Mas não, logo a academia vincula o termo escritor ao livro vai elegendo seus “gênios”.

Outro termo vazio, sem fundamentação ou justificativa algum, é o dito “intelectual”. Ora, a intelectualidade vem do termo intelecto, que é o uso da mente, da razão, do pensamento. E pelo que eu sei, todo aquele que não possui distúrbio mental faz uso da razão, do pensamento, do intelecto, e de forma condizente ao seu meio e à necessidade de uso. Mas não, mais uma vez a academia chega para colocar grades, para separar os humanos. Por consequência, basta ter qualquer pífia graduação para ser chamado intelectual, basta ser “doutor” para ser chamado intelectual, basta ser escritor para ser tido como intelectual.

Mas o pior é que tais intelectuais fabricados ou impostos pela conveniência, geralmente são tão despreparados que acabam se tornando nas pessoas mais chatas do mundo. Levando o escudo da intelectualidade como se fosse qualquer coisa de serventia, e então passam a ser reis, sábios, mestres, filósofos, os suprassumo do saber e da inteligência.

Tornam-se inacessíveis, intocáveis, sempre envoltos em redomas douradas. Contudo, não passam de uns boçais, de uns deseducados, verdadeiros purgantes à vida útil. Achando-se donos da verdade e possuidores da última resposta a tudo, então sequer parecem gente. E quando abrem a boca escolhem precisamente ininteligível, o que não pode ser compreendido, como forma de se fechar ainda mais em sua redoma. Uns idiotas.

Diferentemente do que imaginam os vermes em seus fajutos pedestais, a verdadeira sabedoria humana é humilde, é compreensiva, é compartilhada e sempre vai ao encontro do outro, no sentido de ensinar e também aprender. Quem é verdadeiramente sábio ou quem tem elevado nível de conhecimento das realidades do mundo, seja no âmbito metafísico ou cotidiano, sabe muito bem que o saber deve ser visto como algo utilitário e não como escudo para uma suposta intelectualidade. O verdadeiro sábio é comedido, paciente, sem soberbas ou jactâncias. O verdadeiro sábio, diferente do dito “intelectual”, conhece muito bem seus limites do saber, sabe que não sabe tudo. E por isso mesmo tanto colhe como semeia o conhecimento.

Estes ditos intelectuais são facilmente reconhecíveis, pois admiram uma mídia para se mostrar. Quando falam, porém, confundem ao invés de ofertar conhecimento. Todo dia na televisão aparece um filósofo, um especialista nisso ou naquilo, um mestre sei lá das quantas, um catedrático do mundo revirado, um acadêmico da tese inexplicável. Nas fotos, aparece tendo estantes ao fundo, com rostos endeusados e olhares dizendo “fique lá que eu fico aqui”, com molduras sombreadas e mãos levando pingentes de ouro à face. As denominações são as mais estapafúrdias, os currículos são intermináveis. Mas quando abre a boca...

Quantos mundos existem separando os homens segundo suas hipocrisias? Quantas redomas existem para deixar lá dentro os que nasceram diferentes virados pra lua e lá fora os simplesmente mortais. E mortais estes que são os verdadeiros sábios da terra. Mesmo sem estudo escolar ou de pouca leitura ou escrita, a cada dia escrevem o grande livro da sobrevivência. E na resposta torta, acabrunhada, dizem tudo que a gabolice dita intelectual não sabe dizer nem compreender.

Por isso que odeio intelectuais de mídia, de forjadas proclamações, de círculos imortais moribundos ou já mortos. Por isso mesmo que escolho meus próprios intelectuais, aqueles que verdadeiramente têm a ensinar o que eu preciso tanto a aprender: Seu José do Mato, Dona Maria Rezadeira, Minervino Pescador, Tonica Lavadeira, e tantos outros que vivem como letras vivas em livros sábios pelo suor e pelo cansaço.

 
 
Escritor
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Lá no meu Sertão...


No meu Sertão...






Para sempre (Poesia)


Para sempre

 

Os trens ainda passam
os bilhetes ainda chegam
as cocadas ainda adoçam a vida
a bola de gude ainda corre
a boneca de pano se enfeita
 
tudo passou
e nada passou
 
quero um passarinho
em minha janela
e um café batido em pilão
em meu fogão de lenha
quero tudo novamente
 
tudo passou
e nada passou
pois tudo está comigo.
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – os bois na cidade


*Rangel Alves da Costa

 

Chamei os bois e disse-lhes: “Por favor, venham aqui fazer uma pose, pois preciso tirar um retrato e depois contar uma história. Mas acredito que vocês vão ouvir sem acreditar”. Então os bois se aproximaram contentes, todos garbosos e até sorridentes. Os dois ficaram numa pose que mais parecia em passarela, até dizendo que apagasse as fotos que ficassem ruins. Confirmei que sim e fotografei. Depois contei a história, dizendo: “Hoje vocês estão passando numa rua que antigamente era somente dos carros-de-bois, das carroças, dos jegues, dos cavalos, dos animais. Hoje vocês estão puxando carroça, o que é um desmerecimento ao porte e à beleza que vocês têm. Bois como vocês, assim tão portentosos, faziam fama por todos os sertões. Os carros-de-bois que guiassem pareciam ranger até diferente. E que bela imagem recordar aqueles carros antigos cortando estradões, adentrando na cidade carregados de milho, feijão, palma, capim, tudo o que houvesse para ser transportado. As rodas adornadas de ferro batido por bom ferreiro. Os gemidos tão conhecidos e tão saudosos. Os rangidos leves, lentos, compassados, como se obedecendo a uma partitura de areia e chão. E lá em cima o carreiro com açoite e vara de ferroar. Mas nem precisava ferir o lombo nem açoitar. O carreiro sabia o tempo do boi, o esforço do boi, o sacrifício do boi. Ele conhecia a sede e a fome do bicho. E por isso mesmo, após a viagem e a descarga, o merecido descanso debaixo do pé de umbuzeiro. E solto da canga, livre das amarras, o bicho andejava pelas pastagens matando a fome, e lentamente indo para o tanque de água pouca para matar a sede. Mas hoje os velhos carros-de-bois quase não existem mais. Também os velhos carreiros descansaram suas armas de carrear. As estradas, antes envoltas nos rangidos melodiosos, silenciam saudosas e entristecidas. Para depois serem cortadas nas veias pela passagem das motos e seus roncos ensurdecedores. Tempos outros, e muitos diferentes daqueles de carros-de-bois nas estradas e de uma vida tão sertaneja que jamais se imaginaria que até o vaqueiro quer pegar o boi em cima de uma moto. Hoje vocês ainda vivem na história, mas amanhã estarão somente numa ou noutra memória”. E, depois de ouvirem cabisbaixos e entristecidos o que falei, os dois bois se despediram sem dizer palavra. Seguiram adiante sem ranger as rodas, sem o cantar solene. Apenas seguiram. Mas eu ouvia um soluço amargo.  

 
Escritor
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quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

QUANDO CHOVE


*Rangel Alves da Costa

 

 

Muitos eventos da natureza e da ação dos astros provocam profundas reações ao homem e à própria natureza. A lua possui infinito poder de agir perante a mente humana, de provocar tempestades e até de provocar grandes devastações.

Diversas enfermidades provocam sofrimentos ainda maiores perante a lua cheia, por exemplo. Lobos uivam com mais insistência, as marés avançam impetuosas, os loucos enlouquecem perdidamente.

Mas quando chove se tem igualmente uma profunda transformação no espírito humano. Não a chuva de tempestade, aterradora, devastadora, mas a chuva que apenas cai para molhar a terra e se deixar levar pelos córregos e asfaltos.

A chuva da noite então possui uma força indescritível, principalmente quando a pessoa está carregando sobre si um peso terrível de diversas situações. Solidão, saudade, pesar, luto na alma, distanciamento e abandono, tudo vai se tornando em verdadeiro temporal perante a chuva noturna.

Quantos gemidos e lágrimas derramadas em quartos fechados, por detrás de janelas, por cima de camas, em travesseiros molhados. Dores e sofrimentos que parecem não acabar. Tristezas e agonias que aumentam no compasso dos pingos caindo, da chuva lá fora.

Quantos gritos aprisionados, cabelos destroçados, corpos lanhados, por uma saudade dentro de uma noite chuvosa. Cada pingo caindo é como valsa triste, como sonata de solidão, como rapsódia torturando a alma.

No quarto escuro, apenas o barulho dos pingos caindo lá fora. Vontade de correr, desejo de gritar, descomunal vontade de abrir a janela e abraçar a chuva. Ou deitar ao chão e espernear, ou dançar a valsa dos loucos, ou se perder na noite atrás de qualquer sol.

Quando chove na noite há permissão de ser lobo, de uivar, de gritar, de grunhir, de subir a montanha e clamar por um nome. Há permissão de ser bicho subindo ao monte para rosnar e prantear todas as dores do mundo.

 Quando chove na noite há permissão de loucura, de ensandecimento, de perder totalmente o juízo. Há permissão de sair de si, de querer voar, de querer ser pingo caindo em busca de um canteiro. Há permissão de conversar sozinho e de beijar a boca que tão distante está.

Quando chove na noite, ah quando chove na noite! O corvo negro surge em voo trazendo uma triste lembrança. Pios arrepiantes, uivos apavorantes. Ai como dói a certeza da solidão e a impossibilidade de voltar no tempo.

Quando chove na noite o solitário se faz poeta e vai tecendo versos na vidraça em frente. Palavras e nomes, flechas e corações, lágrimas caindo, tudo se derramando. E do lado de fora, perante o amarelado da luz se espalhando no poste, a sensação de que alguém está ali. Mas nunca está ali.

Quando chove a pessoa se molha por fora e por dentro. A lágrima que cai nada significa perante a enxurrada que vai se formando. E depois vem a inundação, a correnteza, um mar imenso que furiosamente vai levando seu náufrago.

Quando chove eu logo retiro meu barco de dentro de mim. Solto os panos, seguro o leme, e vou firmando a proa em boa direção. Mas não tem jeito. Navego na solidão e naufrago no mar que nunca se afasta de mim. Uma fúria chamada solidão!

Uma solidão em furiosa devastação.

  

Escritor
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Lá no meu sertão...


Com o menino ribeirinho...




O beijo (Poesia)


O beijo

 
Fechei os olhos
e beijei
e voei
 
planei na nuvem
em asas de amor
viajei
 
sem laços
aos espaços
me doei
 
e naquele lábio
o mais doce ninho
pousei.


Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – a vida de um rio


*Rangel Alves da Costa

 

Curralinho, curralzinho, curral pequeno de gado, assim nasceu um viver que no sertão foi gestado. Na secura sertaneja, de flor de mandacaru e arvoredo alquebrado, um rio pulsou sua veia e abriu na terra seca o seu caminho aguado. São Francisco, Velho Chico, Opará, Rio Sertão, uma escrita do antepassado. Um fascínio que se alonga de coração todo molhado. Sua poesia vai sendo escrita em cada remanso espelhado. De canto a outro de suas margens, um povo ribeirinho de tanto orgulho encharcado. Pescador, canoeiro, um barqueiro e todo ofício que nas ribeiras é gestado. Lança rede, ajeita anzol, quer o peixe, a tarrafa faz redemoinho espalhado. O nego d’água em batim, a lenda da aparição, no leito o mito fantasiado. E na mansidão a água passa pelo mesmo caminho do passado. Na curva do rio a saudade do vapor e da carranca, do apito e do aceno, de um tempo docemente recordado. Cadeiras pelas calçadas nas alturas de um céu, temor que as águas avançassem e encharcassem as moradias de um povo assustado. Mas logo as águas baixavam e o rio era o mesmo rio, margeando aquela vida e o seu horizonte azulado. Um berço de lavadeiras e o seu canto afinado, mãos que esfregam e enxaguam, que estendem nos beirais o presente e o passado. E na singeleza do canto, o orgulho ribeirinho ecoado: “Lavo dor e sofrimento, lavo o lenço tão molhado, passo sabão na tristeza e no viver amargurado. Afasto toda sujeira, quero o brilho da alegria, quero um peito ensolarado...”.

Escritor
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terça-feira, 18 de janeiro de 2022

TÁ TUDO ERRADO


*Rangel Alves da Costa

 

O Brasil é, infelizmente, o País do errado, do torto, do absurdo, do atravessado, do incompreensível. Mas é também a pátria do injusto, do desleal, do corrompido, da ilicitude, da safadeza.

Nada – ou quase nada – está certo no Brasil. Uma nação que parece primar pelo censurável e imoral, pela covardia criminosa e pela vanglória de ter poderes lamacentos e políticos desonestos.

Culpa de quem? Culpa de quem ainda se fanatiza por política, faz do partidarismo uma paixão doentia, endeusa o ladrão e aplaude o tirano e o genocida. Culpa de quem se deixa enganar, ainda que o punhal esteja lhe sangrando inteiro.

Mas não somente o eleitor está errado, pois mais errado ainda o eleito que desvirtua de seus compromissos. Mas seria querer demais acreditar num político, não é mesmo? Lança candidatura com ares e promessas de seriedade, de honestidade e moralismo, mas depois com porcos se mistura. E dá no que dá.

Tá tudo errado. Um governante que só pensa em matar, em dar golpe, em propagar o medo e a perseguição, e ainda possuir um bando de loucos apaixonados lhe aplaudindo, só mesmo no país do tudo errado.  

Justiça, a desonra é o teu nome. A justiça do injusto é ilegal e desleal. Para que a elaboração de lei, a tipificação das condutas nos códigos, se nada tem valia perante o julgador político e acovardado?

Não deveria existir julgamento político. O judiciário deve agir em obediência à lei e não querer de um ou outro julgador. Todo julgamento deveria ser pautado na letra da lei, do que se ajusta ou não como crime, infração ou ilicitude, e não pelo livre convencimento do julgador.

Qual livre convencimento pode ter um julgador escolhido pelo mandatário ou governante? Ora, se ele foi alçado ao poder pelo poder, então ao poder continuará devendo obediência. Quer dizer a lei, a lei passa estar no poder governante e não nos códigos, nas normas, nos decretos.

Um exemplo de uma aberração costumeira no judiciário. O processo chega ao conhecimento de determinada turma com muita antecedência do julgamento. Mas na hora de decidir um julgador pede vista, sob alegação de que precisa conhecer melhor os autos. O que isso significa?

Significa esperteza, safadeza, meio de obtenção de valores indevidos. Ora, se um julgamento está empatado e um dos togados pede vista, quanto seu voto passará a valer? E sem falar que os demais julgadores podem mudar o seu voto após o retorno dos autos.

Por essas e outras, a assertiva de que o Brasil não é um País sério possui sua razão. Um País que para assistir um Big Brother jamais pode ser tido como sério. Um País onde o crime compensa e as rachadinhas continuam enriquecendo muita gente, logicamente não pode ser visto com seriedade.

Basta observar a qualidade da música que vem surgindo. Porcaria e mais porcaria. Basta observar o que acontece no sistema prisional e o que acontece no sistema de Brasília. Os verdadeiros ladrões, criminosos de gravata, afundando o País pela roubalheira, enquanto negros e pobres são esquecidos nas jaulas dos absurdos.

Tá tudo errado. A morte se tornou estatística e a dor em verdadeiro escárnio. O governo dá esmola não pensando em ajudar a população mais carente, mas apenas pensando em voto. Um litro de gasolina a milhões e ninguém tem culpa. Um botijão de gás a milhões e ninguém tem culpa.

Tá tudo errado.

 

Escritor


Lá no meu Sertão...


Velho Chico no sertão sergipano de Curralinho, em Poço Redondo



Colheita (Poesia)


Colheita


Este sombreado de agora
foi da semente que plantei um dia
 
esta fruta madura e gostosa
é da árvore que plantei um dia
 
os pássaros chegam cantando
nas folhagens que plantei um dia
 
de uma semente que vingou
a imensidão que acalanta o meu dia
 
também plantei sonhos e esperanças
e tudo floresceu em paz em felicidade
 
e é o que colho ao amanhecer
no pomar de cada dia.
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – Cajueiro


*Rangel Alves da Costa

 

O frondoso cajueiro não existe mais, mas o arruado Cajueiro persistiu homenageando seu nome. Suas ribeiras altas, descendo em direção ao Velho Chico, acabam molhadas pelas águas serenas e azuladas, qual verdadeira piscina num leito que escorre de muito distante. Por toda a margem ribeirinha de Poço Redondo, certamente que Cajueiro possui o melhor banho, ainda que seu espaço não seja grande como o de Curralinho, por exemplo. Os bares são muitos, as comidas também, mas sempre o peixe sobressaindo. Do outro lado, avista-se Entremontes, povoado pertencente a Piranhas, nas Alagoas. Mas Cajueiro permanece viva pela força atrativa do rio, principalmente por suas águas convidativas. A povoação em si, em suas poucas ruas, já não mais abriga a largueza familiar de antigamente. Muitos moradores se bandearam para a cidade, para os assentamentos ou outros destinos. Grande parte das casas foi comprada por turistas, e estas transformadas em suntuosos aconchegos de fim de semana. Apenas umas poucas famílias e pessoas ali enraizadas permaneceram bebendo da seiva das memórias tantas. Lugar de grandeza histórica, de renomadas famílias sertanejas e ribeirinhas, de grandes coiteiros nos tempos cangaceiros (principalmente os da família Félix), de políticos e desbravadores do mundo. Mais adiante, nas entranhas de suas serras, fica a famosa Gruta do Angico, local onde o cangaço foi enterrado em 38. E no casarão abandonado do coiteiro Adauto Félix, sobressaindo-se em relegada beleza numa parte mais elevada do povoado, até hoje acontece coisas de arrepiar. Segundo dizem, de vez em quando as sombras de Lampião são avistadas por ali. 

 

Escritor
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segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

ENTRE FLORES E ESPINHOS: SERTANEJO MUNDO


*Rangel Alves da Costa

 

 Só quem sofre sabe o tamanho do sofrimento. Seu Zé do casebre sabe disso. Mas Dona Maria louva todas as manhãs nascidas no mundo sertanejo. Uma felicidade sem fim.

Sertão é mundo diferente. Não é todo mundo que suportaria ser sertanejo não. Precisaria ser de pedra, de grão, de todo de pau, de espinho de xiquexique, de destemor.

Sertanejo como terra seca, dura, petrificada. Sertanejo feito gente e bicho, feito sorriso e tristeza numa só feição. Nem tudo mundo suportaria isso não. De sol e de chuva, de morte e de vida.

Quanto sofre o sertanejo! Muito já ouvi falar. E sofre mesmo, e muito mesmo. Só Deus sabe o que esse povo - que é o meu povo - padece na sobrevivência do seu meio.

O homem da cidade não entende nem o tiquinho do que realmente passa o homem das distâncias matutas. Quando a seca vem braba, faminta, esturricando tudo, então tudo desanda num desalento danado.

E não é sofrimento pela terra seca, mas por toda a sequidão que passa a existir. O corpo em magreza, o menino faminto, o bicho berrando, o entrar dia e sair dia sem que nada chega como alento.

Mas então as esperanças surgem como verdadeiro milagre ou como forma de suportar as dores da vida. Quando o sertanejo se apega à fé, à prece, à promessa, à oração, enfim, à certeza que o amanhã será melhor, então tudo muda.

E tudo muda por que a fé se torna como um remédio contra os males que tanto afligem. E na fé a esperança. Daí que muito se diz que tudo

Pelos campos desalentados sertões adentro, nenhuma demora das chuvas consegue afastar as esperanças.

O olhar do sertanejo é um rosário tomado de esperanças. As mãos do sertanejo é um oratório de esperançoso céu.

A chuva não veio ainda, mas chegará no tempo certo. Assim diz o sertanejo. Tudo no tempo de Deus. Assim confirma outro sertanejo.

Mas antes que as chuvas cheguem, os campos áridos já espelham o quanto brota de esperanças. Tudo seco ao redor, mas a catingueira floresce bela.

A flor da catingueira, como um brinco dourado descendo rente a face magra da plante, demonstra o quanto de esperança viva nasce e renasce a cada instante.

Pelas estradas, enquanto os marrons e acinzentados entristecem ainda mais a murcheza do mato, então surge o alaranjado-avermelhado da flor e do fruto da jurubeba.

Um encanto aos olhos, mas também a certeza de que a seiva da esperança continua viva em cada pedaço de chão, cada tufo de mato, em cada planta que entristece por falta d’água.

Assim também nas flores e nos frutos das cactáceas sertanejas. A palma definhando, secando, morrendo na fornalha do sol, mas de repente avista-se uma vida florando sobre seus espinhos.

O mandacaru, o facheiro, o xiquexique, tudo comprova o quanto de vida vive quando já se acredita que tudo já esteja sem vida.

As flores surgem, as pétalas se abrem, os frutos tomam forma e cor, os bagos se adocicam, as polpas se avolumam, as cores espantam entre os acinzentados ao redor.

A vida sertaneja floresce assim. A vida sertaneja floresce nas esperanças tantas e que nunca murcham completamente nas plantas e no homem.

A planta floresce e frutifica pela invisível gota d’água do tempo. Aquele mesmo tempo de Deus. O homem floresce e frutifica pela fé incontida no seu coração.

A fé santa brotada de Deus. E pela prece, pela promessa, pela oração. Até que o olhar, logo ao abrir a porta ao alvorecer, diga que vai chover.

E os braços, como aqueles braços sempre abertos do mandacaru em direção aos céus, se elevem para os sagrados agradecimentos e para receber chuva boa.

Uma esperança nunca perdida. Nada teve fim, nada morreu perante o sertanejo. A fé sertaneja sempre resguarda a esperança de que amanhã será bem melhor.

E talvez seja por isso mesmo, pela fé incontida que brota em esperança, que a vida sofrida é suportada. E que o sofrimento seja diminuído pelo remédio sagrado da fé.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Sertão de fé






Tudo (Poesia)


Tudo

 

Da fresta do telhado
avisto a lua e o céu estrelado
 
o barco desce da cumeeira
e o mar escorre em minha esteira
 
não tenho cama nem colchão
mas uma nuvem rente ao chão
 
deito e adormeço assim
entre flores de um jardim
 
que me fazem sonhar e viver
tanta riqueza em pouco ter.
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – canção molhada de amor


*Rangel Alves da Costa

 

Eu era ribeirinho, mesmo não tendo nascido nas beiradas do rio. Mas na minha veia escorria todo azul molhado das águas do Velho Chico. Eu era beiradeiro, mesmo não tendo vindo ao mundo junto ao leito remansoso das curvas do São Francisco. Mas minha geografia espiritual, entre serras e montes de minhas crenças, sentia o rio escorrendo por entre os rochedos da fé e as paredes úmidas da devoção. Eu era canoeiro, mesmo jamais tendo possuído um barco de vela ou canoa de fundo raso. Mas meu olhar se lançava nas águas e seguia remando até lançar a rede ou a tarrafa perante os cardumes de sóis ao entardecer. Eu era pescador, mesmo jamais tendo fisgado uma piaba ou peixinho qualquer. Mas meu anzol adentrava com tal firmeza em meio às águas que muitas vezes o rio inteiro era trazido na palma da mão. Eu era nego d’água, eu era carranca, eu era o desconhecido entre as panelas e pedras do Velho Chico. Eu era o encantamento e o misterioso, era a proteção e o afastar dos temores. Eu era a margem e o porto, o cais e o buquê de saudades nas mãos de quem tanto esperava. Eu era o lenço e o abraço, a lágrima caindo e o amor devotado. Eu era o rio. Eu era o Velho Chico. Eu era o rio. Mas como o amor não acabou, ainda sou o rio...


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