SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 31 de março de 2020

DORES DA NOITE



*Rangel Alves da Costa


A noite possui suas dores. E como são dolorosas as dores da noite. Febre de ausências amorosas, angústias e desilusões, tristezas e sofrimentos, saudades que parecem querer molhar os lenços de lágrimas.
Não há como não adoecer das doenças da noite. Não enfermidades do corpo, mas moléstias da alma. Alma que parece se fragilizar e ajoelhar de vez perante os noturnos de solidão ou de falta de uma presença boa. Tudo causando uma imensa dor.
Noite. Com a escuridão o despertar maior dos sentimentos. Sob o seu véu um emaranhado de segredos, mistérios e fotografias, tudo querendo se revelar de uma só vez, ou manter-se ainda nos labirintos da alma.
Noite. Talvez noite chuvosa, mais pesada, mais entristecida. Os pingos que caem vão alimentando os íntimos mais escondidos para, de repente, tudo aflorar como flores vivar de lembranças, saudades e nostalgias.
A janela aberta para o negrume lá fora é chamado ao sofrimento. O horizonte escurecido aclara-se somente para vislumbrar as distâncias existentes somente dentro do ser. Os reflexos estarão nos olhos e no coração.
Uma velha fotografia vai surgindo à mão. O olhar encontra a parede e nela as imagens emolduradas. O velho baú é reaberto e as cartas e os bilhetes ressurgem entre o aflitivo e o melancólico. Ali um passado que faz doer pela recordação.
Em noites assim, em negrumes fechados assim, as janelas e portas da memória e da saudade se abrem de vez. E tudo vai chegando, tudo vai tomando conta, tudo vai transformando os instantes em dolorosos percursos.
Um amor distante, um amor desamado, um abandono, um adeus que não desejava ter. Palavras e imagens, sons e pensamentos, diálogos íntimos, reencontros indesejados, eis o percurso até que o descontrole passe a domar aquilo que parecia já resolvido na alma.
Mesmo sem música alguma ao redor, de repente uma velha canção vais surgindo. As folhagens farfalham vozes já ouvidas, a leve ventania para declamar poesia. Um rastro de lua vai deixando suas marcas em meio ao negrume que o olhar desejava transformar em reencontro.
A pessoa parece estar bem, quer estar bem, imagina que daquela vez não irá deixar que a saudade e o entristecimento novamente provoquem enxurradas. O contextual, contudo, entre o instante que chama e o interior que desperta, vai rompendo seus laços e os transbordamentos se tornam inevitáveis.
São em noites assim que as lágrimas procuram vazões no subsolo da alma e vão surgindo como pequenos veios de angústias e aflições. Primeiro, o noturno, depois a moldura do instante, depois as imagens e as recordações que vão surgindo. E depois e depois...
Depois os olhos queimando na febre da saudade. Depois os olhos marejando para se derramar em rios ardentes de aflição. Depois os prantos e os soluços inevitáveis. A pessoa já não está mais em si. A partir daí somente responde ao que a propensão interior desejar.
São em noites assim que os lençóis são encharcados, que os travesseiros são molhados, que os lenços são alagados, que os rios transbordam toda lágrima de dor, de saudade, de relembrança, de nostalgia. São em noites assim que a pessoa navega e naufraga dentro da própria memória.
Os outros passam pelas calçadas, pelas ruas, ao redor, e de ondem passam avistam apenas uma casa fechada, uma janela fechada, uma noturna solidão. Logo imaginam que assim pelo recolhimento da hora, pelo repouso noturno. Nem sempre imaginam que após aquela janela ou porta, dentro da casa, alguém sofre, alguém agoniza.
Na cama ou no sofá, na cadeira de balanço ou num vão qualquer, apenas a pessoa, suas lágrimas, seus soluços e suas dores. Quem está distante ou quem deu causa a tamanho sofrimento, sequer imagina a triste cena noturna do silêncio e do soluço.
E os rios transbordam, inundam, a tudo invade, até que o alvorecer ressurja sem trazer consigo todo o retrato passado. Mas a saudade não passa. A verdadeira saudade nunca passa. Um amor verdadeiro jamais é esquecido.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Instante saudade



Meu bem (Poesia)



Meu bem


E chega a noite
e a lua vem
você também
a me amar
me fazer bem

que prece boa
como um amém
a fé do amor
contigo vem
meu bem.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – coisa de galinha



*Rangel Alves da Costa


Estou desconfiado que uma galinha tá com galinhagem, com safadeza, só pode ser. Todo mundo sabe que galinha é bicho que deita cedo, que logo ao começo da noite já está subindo no poleiro para dormir. E daí só sai depois da madrugada, entre quatro e cinco da manhã, ou antes disso. Tem galinha que três da madrugada já tá ciscando. Acontece que a tal galinha, aquela que só pode tá com galinhagem, vem dando demonstração de algo muito diferente. Só no poleiro com as outras, finge que dorme como as outras, mas depois lá pelas bandas das dez da noite, desce da madeira escondidinha, de modo que as outras galinhas não possam ouvir, e depois mansamente pula a cerca. Pula a cerca e some no meio do mundo, sempre alegre contente, e até rebolando demais o seu rabo. O que a danada andará fazendo? Ouvi falar que o poleiro inteiro já tá desconfiado, que tem olho aberto só vendo essa safadeza. Como eu não tenho nada a ver com isso, aqui da rede só fico esperando as penas voarem pra todo lado.


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segunda-feira, 30 de março de 2020

SOLITÁRIO ADEUS




Seria a pobreza condição humana capaz de afastar o reconhecimento do desvalido por outras pessoas, até mesmo em igual condição?
Seria o nada ter, o viver na miserabilidade, sobrevivendo apenas do mínimo necessário para se manter em pé, algo tão terrível e capaz de negar o auxílio na hora extrema?
Seria o viver sozinho, o ter poucos amigos, morar nas distâncias dos centros urbanos e nas ruas de areia e barro, a justificativa para o abandono?
Seria o abandono e a falta de reconhecimento as consequências da pobreza, ou seria a pobreza a causa de tudo ruim que possa acontecer?
Seria humanamente justo que alguém por ser pobre, morar nos cantos da cidade, venha a falecer e não ter ninguém que acorra para uma prece, para velar o morto?
Ou seria apenas consequência da crescente falta de cristandade no coração das pessoas, carência de senso humanitário ou pouco caso com quem morre ou deixa de morrer?
De qualquer modo que possa ser visto, verdade é que um velho, senhor de mais de oitenta anos, partiu dessa vida e na hora do velório não havia uma só pessoa velando o morto.
Era pobre, vivia numa casinha que mais parecia um barraco caindo aos pedaços, viúvo, sem filhos, morava sozinho. Mas havia muitos parentes seus no lugar.
Aparentemente tinha muitos amigos. Ao entardecer, quando deixava sua moradia e seguia até a praça principal da cidade, sentava sempre no mesmo banco de esquina e logo era cercado por muitos.
Sua pobreza e simplicidade não afastavam sua reconhecida sabedoria, seu dom para repassar aos mais jovens as mais diversas lições sobre a vida e ensinar os melhores caminhos perante as tortuosas estradas.

A um dizia sobre a importância de preservar uma vida justa e digna para ter sempre o reconhecimento da comunidade; a outro discorria sobre os malefícios dos vícios e da vida desregrada; e ainda a outro falava apenas sobre sua vida de tantas lutas e do nada que havia conseguido.
Sem medo nenhum, dizia sobre o tempo, ainda rapazote, quando se meteu a ser jagunço do coronel mais importante e poderoso da região. Nunca havia matado ninguém, mas já tinha visto muito sangue de inocente escorrer.
Contava também do tempo que inventou de ser cangaceiro do bando de Lampião e só não foi lutar debaixo do sol porque no dia que ia se apresentar a cangaceirada havia deixado às pressas o coito onde estava escondida.
E assim levava sua vida conversando com um e com outro, ensinando e ouvindo, repassando lições dos tempos antigos e da vida presente. Até sobre porções de ervas medicinais o velho dialogava.
Mas numa daquelas tardes não compareceu ao seu banco de todo entardecer. Nunca mais voltaria ali. Aqueles que o procuraram naquele dia não sabiam que o velho amigo havia falecido quase chegando ao meio-dia.
Morreu sentado diante do barraco, sentado num banquinho. Vizinhos avistaram e correram para acudir. Já era tarde demais. Um caixão de ripas foi providenciado pela assistência social e o corpo estendido por cima de dois tamboretes na saleta apertada da moradia.
Duas ou três pessoas passaram por ali, para o último adeus. Mas depois do entardecer não apareceu mais ninguém. Nem vizinhos, amigos da praça ou outros conhecidos. E quanto mais o tempo passava mais a solidão do falecido aumentava.
A noite chegou e nenhuma vela acesa. Nenhuma beata acorreu para a sentinela, nenhum canto de despedida foi entoado. Apenas o vento soprando pela porta aberta. E lá dentro a solidão da solitária morte.
Sem uma vela, sem uma prece, sem um adeus, apenas a morte velando o morto, apenas a morte…


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Lá no meu sertão...


Cangaço


D. (Poesia)



D.


Vento bom de entardecer
que traz sua folha em voo
fazendo à janela descer
para me amar como sou
D.

ainda não sei o porquê
dessa folha do destino
seu nome em mim escrever
e no amor hoje assino
D.

Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – sem lágrimas



*Rangel Alves da Costa


Não, não desça da estrela agora. Não desça desse raio escondido de sol agora. Não, não desça da lua ocultada agora. Fique no alto, bem no alto do alto, no alto da estrela, do sol, da lua e de todos os brilhos que existirem nas alturas. Você é força, você é luz, você é brilho, é intensidade. E a tudo vencerá por sua persistência, determinação, desejo de superação. Ora, não é uma tristeza, não é um desamor, não é uma angústia, não é um brinco que caiu e se perdeu, ou um contato que foi sem querer apagado, que vai abalar o brilho de sua vida. Mire-se no Eclesiastes: tudo muda, tudo passa, tudo é constante transformação. Os velhos ainda sorriem esperançosos de tudo. Os enfermos não bebem gotas de sofrimento, e sim de busca de cura. Os saudosos e entristecidos querem reencontrar para abraçar e amar. Então faça da idade, da força que possui, dessa ânsia de vida tão intensamente aflorada, uma escada para subir e subir cada vez mais. E continuar sendo estrela, sendo sol, sendo lua. E brilhando, brilhando, brilhando... Nunca deixe se abater nem que os dias sombrios sejam mais fortes que sua luz. Por isso mesmo repito: Não desça da estrela agora. Não desça desse raio escondido de sol agora. Não, não desça da lua ocultada agora. Fique no alto, bem no alto do alto, no alto da estrela, do sol, da lua e de todos os brilhos que existirem nas alturas!


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sábado, 28 de março de 2020

DEPOIS DAS NOVE



*Rangel Alves da Costa


Em Poço Redondo, no sertão sergipano, está havendo toque de recolher depois das nove horas da noite.
O motivo não é outro senão o coronavírus que veio e está dando trabalho para partir, como se de repente tomasse conta de nossas vidas e nosso futuro.
Por isso mesmo o toque de recolher foi imposto através de decreto municipal. Justo que assim seja. Não haveria como conter a displicência e o descaso de grande parte da população.
Certo que seja assim, já que parte da população, mesmo sabendo que pode colocar em risco a saúde e a vida da outra parte da população, estava continuando com aglomerações noturnas em ruas, calçadas e praças, então a medida serviu como meio de evitar o surgimento dos mesmos graves problemas que assolam o país e o mundo.
Mesmo sendo forçado o recolhimento, nada que se possa ter como quebra das liberdades individuais. Há, acima de tudo, o resguardo maior do direito à saúde e à vida. Há, enfim, uma tentativa de preservação da saúde e da paz do poço-redondense.
Além disso, o surgimento de diversos aspectos altamente positivos, de cunho pessoal, familiar e até mesmo espiritual, sem falar na segurança maior que acaba assomando. As pessoas nunca estiveram tão reunidas em seus lares.
Os lares nunca estiveram tão tomados de diálogos, conversas, e até dos necessários silêncios. As pessoas encontraram mais tempo para si mesmas, para refletir, meditar, encontrar respostas para questões que continuavam pendentes.
Há mais tempo para arrumar a casa, o quarto, a própria pessoa. Há mais tempo para folhear álbuns, para relembrar situações, para reencontrar retratos de memória e saudade. Há tempo para a leitura de um bom livro, para escrever qualquer coisa, para arrumar a estante e colocar em saco de lixo o que já não possui serventia.
Há mais tempo para namorar, para fazer confissões, para ficar abraçadinhos no calor do sofá. Há mais tempo para o carinho, para o afago, para o dengo, para o cafuné. Há mais tempo para a prece, para a oração, para o ajoelhamentos perante os velhos oratórios, para conversar com Deus, com os santos e anjos.
Há tempo também para o romantismo, para olhar o luar da fresta da janela e sentir um apertinho por dentro, bem dentro do coração. Há mais tempo para sentir a chuva batendo no telhado, para fazer da nostalgia um encontro que alegre a alma.
E também para deitar mais cedo, para ter mais tempo de sonhar, sonhar, sonhar. E, mesmo na crise, encontrar motivos para sentir e dizer que a vida é boa. E como é bom viver!
Assim, depois das nove, ao invés de a vida se recolher, ela abre suas portas interiores para o muito que se tem de viver.


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Lá no meu sertão...


No Poço de Cima, em Poço Redondo


Cheiro de flor (Poesia)



Cheiro de flor


Pequeno frasco
com olhar e sorriso
de morena cor
de lábio lilás
e cheiro de flor

derrama sobre mim
teu aroma
teu jasmim
flor que me doma

um cheiro suave
fragrância em ânsia
leve voo de ave
corpo sem distância

e na pele eriçado
pela flor em mim
o lábio em roçado
frasco derramado
de amor sem fim.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – amor de fotografia



*Rangel Alves da Costa


A gente nunca sabe a realidade que está por trás ou além da fotografia. Melhor assim. A gente sequer imagina o que se esconde atrás de tanto amor fotografado, postado e escrito quase assim: “Vejam como somos felizes, como nos amamos, como nascemos um para o outro!”. Ora, a pessoa posta o que quiser, mas sabemos que a fotografia bonita, com beijos e abraços, com declarações amorosas, nem sempre – ou nuca - refletem a realidade. Na foto o amor é imenso, é indestrutível, é a coisa mais linda do mundo. Mas será que é assim mesmo? Vivemos de conflitos, de estágios, de mudanças, e tais transformações afetam a vida, a profissão, o amor, tudo. Não estamos sempre bem. Não amamos sempre com o mesmo amor demonstrado na fotografia. Não somos sempre aqueles amantes de floreadas molduras. Somos de carne, de ossos, de suores, de sacrifícios, de alegrias, de dores e aflições. Somos angústia. Ou somos apenas felizes? Não. Não somos apenas felizes. Daí que a foto pode ser bonita, nela até demonstrar um Romeu e uma Julieta. Mas apenas retratos, instantes, momentos. Também choramos, também sofremos, também reconhecemos que não somos tão felizes como desejamos. Somos o dia a dia, somos uma guerra entre o sim e o não, somos muito além da fotografia. Existe amor sim, mas não revelado em sua verdade. O amor da mera suportabilidade e da aparência também pode ser fotografado.


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sexta-feira, 27 de março de 2020

RELEMBRANDO A PUTA VÉIA



*Rangel Alves da Costa


Já faz algum tempo que escrevi esse texto. Originalmente apenas “Puta véia”, mas tanto gostei que novamente transcrevo, eis que nele me senti na proximidade de um verdadeiro escritor. Diz:
E os salões embebidos de suor e bebida. Num misto de perfume barato e sexo encardido, os ares intumesciam inebriantes. Cambaleantes, translúcidos, algemados na dor e anestesiados pelos desejos carnais.
Sexos, sexos, sexos. Corpos, corpos, corpos. Tudo vão. Tragos, cigarros, fumaças. Portas de quartos imundos rangendo, num entra e sai de vintém. É o valor, é o preço cobrado segundo o relógio do prazer desvairado.
Dos céus no telhado, dos firmamentos desajustados, descem estrelas vadias. Brilhos, ilusões, fantasias. Alguém canta, alguém dança. Um copo é jogado, um copo é estraçalhado ao chão. Um pé-de-briga. A faca brilha. Nenhuma morte nas mortes tantas.
Rente ao copo já esvaziado, como em estado de sonolência pela bebida, estendeu os braços descarnados e pelancudos sobre a mesa e depois deitou a cabeça sobre eles. “Está chorando?”. Foi a pergunta feita e não respondida.
Mas não estava chorando. Ou talvez estivesse intimamente chorando. E quando o choro é por dentro, não há nada mais doloroso que um pranto assim. Com a cabeça deitada sobre os braços, sequer se dava conta de estar num bordel entre bêbados, prostitutas e aventureiros.
Mas ela era o próprio bordel, confundia-se com o próprio bordel, com o cabaré, com a casa de meretrício. Desde novinha que ali colocou os pés para não mais sair. Não que gostasse de viver assim, mas pelo viver assim que já estava entranhado pelo seu corpo e vida.
Agora ali com o copo vazio, a cabeça derreada sobre a mesa, quase esquecida por todos. Naquela idade, já passada dos sessenta, dificilmente apareceria algum cliente. No cabaré, ter mais de sessenta anos já é velhice demais.
Ao seu redor, as luzes piscando, a vermelhidão do ambiente, os cheiros de bebida e de perfume barato, as palavras soltas como desbragadas, o vai e vem das mulheres à procura de machos, os olhares dos machos em busca de corpos em menor decadência. Coisa difícil de encontrar.
E ela continuava ali por teimosia. Com nenhum tostão retornava depois de um dia inteiro como mulher de bordel, como rapariga de cabaré. Apenas uma e outra colega de sina, de vez em quando lhe dava algum dinheiro quase como esmola. Permanecia ali muito mais pela bebida.
Dificilmente lhe negavam um trago. Cachaça batizada, rum da pior qualidade, uma cerveja de vez em quando. Assim também com o cigarro. Quando tinha, fumava um após o outro. E sentava à mesa como uma dama de vermelho à espera de um príncipe.
Já não podia manter qualquer vaidade. Os tempos agora eram difíceis demais para qualquer vaidade. Uma roupa qualquer, um chinelo qualquer. Mas de algumas coisas não desapartava: o batom vermelho descuidadamente além dos lábios, pó entre o claro e o avermelhado sobre o rosto enrugado, perfume de feira lançado no corpo. Com a bebida e o cigarro, o perfume se tornava de terrível odor.
Música alta, um frenético entra e sai, copos trincando nas mesas, um cheiro detestável de suor e perfume adocicado, um aroma repugnante de sexo encardido, fumaça subindo aos ares. “Vamos namorar, meu gostoso?”, perguntava uma. “Hoje faço tudo e baratinho”, dizia outra.
E ela com a cabeça encurvada sobre os braços, ali na mesa, no meio do tudo. Mas não ouvia sequer a música: “Perfume de gardênia tem em tua boca, eu vivo embriagado na luz do teu olhar. Teu riso é uma rima de amor e poesia, macios teus cabelos, qual ondas sobre o mar...”. Não ouviria qualquer música, qualquer tango ou bolero, apenas os gritos da alma.
Seu pensamento estava distante. E por isso chorava tanto por dentro, soluçava tanto por dentro. Sua mãe gritava para não ir brincar muito longe. Sua boneca de pano parecia sorrir quando chegava carregando um pente. Nua tomava banho pelo quintal em dias de chuvarada. E como era bela.
Menina bela se fez e depois mocinha. Nem teve tempo de namorar. Um dia, o filho do patrão de seu pai puxou-lhe pela roupa e lançou-a em cama de capim. Sangrou por fora e por dentro. Mas o pior aconteceria depois.
Contou aos pais sobre o abuso sofrido e foi mandada embora de casa. Saiu com o que tinha num saco e para nunca mais voltar. E pelas estradas a sina mais triste que poderia lhe acenar. Tão bela e servindo de objeto sexual a um e outro.
Agora era somente uma velha. Depois de ser puta de estrada e de todos os cabarés do mundo, agora era somente uma puta velha. Ou puta véia, como sempre diziam. E assim estava debruçada sobre a mesa de cabaré. Estranho que assim permanecesse por tanto tempo.
Bateram-lhe ao ombro. Chamaram e chamaram. Tarde demais. Agora a morte perfumada de coisas velhas, fétidas, repugnantes.


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Lá no meu sertão...


Vaqueiros de Poço Redondo


Segredos de amor



Segredos de amor


Hoje ela veio
como um segredo
como um mistério
mas ela veio

veio em surdina
toda escondida
assim temerosa
mas ela veio

assim tão bela
assim tão flor
fingiu ser solteira
e me amou.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – quem cuida de mim sou eu (não um psicopata)



*Rangel Alves da Costa


Eu que sempre cuidei e que vou continuar cuidando de mim. O vírus existe, é perigoso, está infectando, está matando, e não posso mentir a mim mesmo. Não vou entrar na onda desse psicopata que se diz presidente e sair por aí de corpo aberto. Uma psicopatia tão degradante que o faz cegar sobre os exemplos do mundo. Será que esse verme revestido de presidente não sabe o que está acontecendo na Itália, na Espanha e outros países? Será que esse energúmeno não analisa as estatísticas das incidências do vírus no Brasil? Será que o povo está brincando de se infectar, de adoecer, de morrer? Nego-me a ter um presidente de tal estirpe, completamente insano, um feroz enlouquecido que se compraz em mandar pessoas para a morte. Não. Não sou louco e nem me deixo guiar por loucura de ninguém. Eu cuide de mim. Quem cuida de mim sou eu.


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quinta-feira, 26 de março de 2020

DESTINO E SINA NOS SERTÕES CANGACEIROS



*Rangel Alves da Costa


O sertão cangaceiro era o mesmo tabuleiro onde se espalhavam as peças do jogo acirradamente disputado pelos quatro cantos, desde o alvorecer ao mais fechado negrume da noite. A manhã surgida aos olhos do vivente entrincheirado nas caatingas e tocas era a mesma brotando festiva diante do olhar do velho matuto ao abrir a porta de sua tapera de barro.
Sertão bonito demais, indescritível sertão! Terra e chão, malhada e vastidão, saleta de chão e alpendre sombreado, mataria e garrancho. Eis o sertão do cangaceiro e do lavrador, do coiteiro e do citadino, da volante e do vaqueiro, do bandoleiro das caatingas e do homem de paz no roçado, da beata e do vigário, do coronel e do jagunço. Sertão de muitos lados, muitas faces e muito mais. Eis que vastidão de véu e cortina, de espelho turbado, em cujo lado de lá mora a dor e o sofrimento, a morte tragando a vida, o sobreviver fraquejando diante do mundo apocalíptico.
E por que será que o sertão é assim tão contrastante, de um lado a beleza e de outro a feiura horripilante, numa face o sorriso e na outra o lanho do sofrimento? Se a grandiosidade paisagística do lugar, com seu luar inigualável, seus caminhos instigantes e as cores que vão se formando por cima da mata durante o entardecer servem para acalentar o vivente, de outro lado faz do sal do sofrimento a balança que há em tudo. Não há nada tão belo que não venha com uma pontinha de amargura.
O sertanejo vive num paraíso sem jardim, vive ao lado do roseiral sem poder cheirar a flor, vive ladeando o que há de mais belo na natureza e caminhando por estradas de pontas de pedras e espinhos pinicantes. O orgulho imenso de ser filho da terra e com ela se confundir em tudo, não afasta o desencanto que também bate à porta. O prazer de repente se transforma em dor e agonia. Porque o homem é instigado ao prazer e ao sofrimento para se conhecer o seu merecimento no mundo.
Contudo, dentro do próprio sertão, perante os seus filhos, há outras diferenças que parecem querer dividir os nativos em muitos. São vidas e jeitos de viver diferentes, pessoas com atitudes e vocações que desafiam os entendimentos. Por cima da mesma terra, gente que nasce para a paz e tantos que buscam a guerra. Muitos cheios de contentamento com a vidinha humilde e simples que têm, e outros deixando a porta sossegada de casa e seguindo rumo ao desconhecido, ao perigoso, ao desafiador.
Ao escolher a vida cangaceira, fazer valer seu ímpeto sertanejo para se tornar errante nas caatingas, o jovem certamente não tinha o pensamento suficiente claro para imaginar as consequências imediatas desse ato nem as durezas futuras no seu cotidiano debaixo do sol, sob a lua, correndo de costas, enganando a morte, saltando pedras e caindo em espinhos, deixando para trás rastros de sangue. Vida de sangue, de medo, de ataque e de fuga.
A paixão pelo cangaço, como acontece com todas as paixões, trazia a insanável cegueira até que o espinho de quipá furando olho o acordasse para a realidade. E será que estava vivendo, que aquilo era mundo, que era jeito de gente viver e morrer? Somente quando abria os olhos e já não podia voltar atrás é que é se entregava de corpo e alma ao mundo que escolhera. Primeiro o encanto, depois a realidade. E então o espanto. Em tudo a vida ao lado da morte.
Amigo do tempo, amigo do mato, amigo do bicho, amigo do matuto do lugar, muitas vezes amigo do inimigo, mas também hostil a quase tudo. Confiar sempre desconfiando, falar meia palavra porque já é demais, não se aproximar muito para não deixar marcas, ser apenas o vulto e a sombra que no instante seguinte já não é mais. Cangaceiro era tudo, quase sem ser nada. E até era melhor ser assim mesmo para ver se tinha uma vida sem tanta perseguição.
Que coisa boa ao encontrar uma casa, um imenso palácio para o merecido descanso. A porta maior do mundo, ladeando o sertão e suas veredas. Palacete de cama macia, adornada por terra cheia de espinhos, pedras como travesseiros, uma lua inteira como cobertor. E sonhar com a linda princesa que vai chegando devagarzinho, subindo pelos lados da serra, cautelosamente caminhando ao encontro do seu amado. E traz na mão alguma coisa bonita, brilhosa, reluzente. Mas não, é a volante de mosquetão. O mesmo pesadelo de todas as noites.
Que vida dura, seu moço, e o menino nem pensou um bocadinho nisso antes de tomar a decisão de ser cabra de Lampião. Mas agora é tarde demais. Está formado na vida, sabe tudo, é doutor. Conhece o remédio do mato, a cobra que é venenosa, cada pegada que encontra, todo barulho que ouve, todo farfalhar de folhagem. Sabe que há inimigo na redondeza, que o silêncio da mata logo se tornará em grito, em disparo, num pegapacapá desgraçado.
Bichos não. Nem quase bichos. Apenas seres humanos com seus destinos. E tão seres humanos que se compraziam com qualquer instante de paz que encontrassem. Sagrado era o alimento conseguido, sagrada era a visita do coiteiro que trazia o carregamento que tanto precisavam pra sobreviver. Assim eram os dias, assim eram as noites cangaceiras. Assim era a vida no sertão de Lampião.      


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Lá no meu sertão...


Silêncios e escritos...



Chuva que cai (Poesia)



Chuva que cai


Lá fora
a chuva cai
pingos de saudade
coração se esvai
molhando meu olhar
rio que se vai

a tristeza vem
não quero sofrer
mas a chuva não sai
e um rio corre
molhado de chuva
da chuva que cai.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – um tempo de flores de relva



*Rangel Alves da Costa


Um triste e doloroso tempo. Mas também um tempo de flores de relva. Um tempo de angústias e aflições. Mas também um tempo de pousos na relva. Um tempo de medos apavorantes. Mas também um tempo do silêncio das flores. Sim, sair das entranhas dessa pandemia, fugir das notícias de tanta agonia, pegar a estrada e buscar a relva. Sim, abdicar da casa e do asfalto, deixar para trás a porta e o fogão, nem olhar pra trás no que ficou no quintal. E seguir, seguir pela estrada e cortar caminho, entrar em veredas e encontrar os campos, e em campos de relva encontrar a paz. Que seja somente a paz passageira, vez que o medo se achega no vento, mas que seja a certeza do encontro com outro momento que desejava ter. Ter momentos de si para si, ter instantes de olhar para dentro e dizer que tanto precisava disso. E pela relva rolar sem ter pressa, pela relva deitar muito mais, colher desse instante uma beleza escondida, que é o momento de reencontrar a vida. E na relva olhar adiante, e na relva avistar a flor. E colher a flor e enfim dizer: oh vida, quanto bem é você!


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terça-feira, 24 de março de 2020

AS VELHAS AMENDOEIRAS



*Rangel Alves da Costa


Quando o tempo era de mais paz, quando as praças podiam ser tomadas de visitantes, então eu costumava seguir até os canteiros silenciosos para observar a pujança das velhas amendoeiras ao redor. Eu ficava ao redor de uma praça tomada de grandes árvores, sobressaindo-se as amendoeiras com suas folhas vistosas e belas.
Observando aquelas frondosas árvores, com cada uma contando com mais de cem anos ali enraizadas, logo me veio à mente o quanto suas copas, suas folhagens e sombreados, foram testemunhando ao longo de tantos anos. Tudo passando, tudo se transformando ou simplesmente desaparecendo, e elas ali ainda tão imponentes.
A praça é uma das mais antigas. Antiga e relegada ao esquecimento, como se as praças necessitassem apenas de árvores centenárias e canteiros cortando os seus percursos. Por que os arvoredos não precisam de constantes reparos, então também descuidam das gramas e de outras árvores menores. Não há mais bancos, os córregos secaram e os caminhos internos se tornaram perigosos demais.
Noutros idos, quando ainda era cuidadosamente preservada e constantemente embelezada, ainda era possível encontrar resquícios de fontes, pequenos córregos, canteiros floridos e até um pequeno jardim zoológico. As famílias por ali passeavam, os namorados se encontravam, era até um deleite espiritual estar lentamente caminhando pelas suas diversas opções, principalmente ao redor da pequena ponte e seu silêncio entrecortado por um ou outro canto passarinheiro.
Nas festas de final de ano, principalmente na época natalina, a praça se transformava numa verdadeira festa. Parques de diversões eram instalados, o carrossel chegava como verdadeiro encantamento, barracas vendiam de tudo, doceiros e pipoqueiros ofereciam aos visitantes desde maçãs do amor a coloridos e cativantes algodões doces. Cachorro quente, pipoca colorida, churros e tudo o mais. Uma diversão segura, acolhedora e barata a todas as famílias e seus pequenos brincalhões.
Hoje a praça não dispõe de um banco sequer debaixo das sombras. Os pombos ainda são muitos, mas não se pode mais sentar ao entardecer para observar seus rasantes, seus encontros catando restos pelo chão e seus voos de partida. Não há como sentar para a leitura de um livro, para um instante de silêncio e meditação, para uma palavra amorosa com alguém querido. Apenas os vazios tomados por estranhezas, por pessoas que passam sem tempo de apreciar o que ainda resta.
Mas não resta muito. Lar de árvores centenárias, desde longe são avistadas com suas copas e folhagens derramadas sobre as tristezas do presente. Murmurando velhas canções ao sabor do vento, ali repousam antigas, talvez já cansadas, esperando as estações para mudarem seus semblantes, cores e formas. Os canteiros abaixo estão sempre tomados de suas folhas caídas na ventania, mas é no outono que os tapetes se alastram com seus ocres, vernizes, marrons e acinzentados.
Uma paisagem tão bela como melancólica. As folhas grandes vão caindo e se deitam umas sobre outras, como velhos escritos que vão se acumulando pelas salas de um poeta triste. Talvez não sejam apenas folhas mortas, outonais, mas verdadeiras páginas que se desprenderem dos galhos e trazem consigo memórias escritas de outros tempos, de uma nostalgia guardada em lenços molhados. As folhas das amendoeiras caindo como livros abertos e que desejam leituras. Ler o passado através da recordação.
De vez em quando faço do entardecer um reencontro com aquelas velhas amendoeiras. A cada passo e a cada olhar é como se estivesse diante de um livro antigo, cujas folhas amareladas vão contando histórias de outros tempos. Ali, debaixo daqueles sombreados, ao farfalhar da ventania, os testemunhos tantos de um tempo muito mais humano e singelo. Hoje também testemunha as transformações, os novos dias, mas sem aquele olhar gracioso que antigamente se estendia sobre o bucolismo apaixonante.


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Lá no meu sertão...


Memorial Alcino Alves Costa - O Sertão tem Memória!




Amor em construção (Poesia)



Amor em construção


O amor
vai sendo construído
com força e cinzel
com pedra e suor
com passo e cansaço
com espinho e estrada

não
nada é fácil no amor
é difícil de ser conseguido
é difícil de ser construído
é difícil de ser amado
de ser correspondido

mas de repente
depois de já desistido
eis que o amor surpreende
e o amor faz amar
faz enamorar
e apaixonar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – tempos meditativos



*Rangel Alves da Costa


Nestes dias meditativos, eu fico aqui matutando o que disse o poeta Fernando Pessoa: “EU SOU DO TAMANHO DO QUE VEJO E NÃO DO TAMANHO DE MINHA ALTURA...”. O que isso significa? A grandeza do ser humano está na grandeza como ele avista a vida. Está na importância dada ao que encontra e na valorização daquilo que reconhece. Está no tamanho da dignidade distinguida no outro, no respeito e na gratidão. Quem deseja ser grande, ser maior, estar na altura de sua própria importância, deve mirar sua igualdade perante o que está adiante. Por isso que quem diminui o próximo se torna na mesma altura do diminuído. Quem avista, por indesculpável desejo, o outro na sarjeta, também ao reles do esgoto deverá se avistar.


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domingo, 22 de março de 2020

UMA FLOR NA FLOR DA IDADE



*Rangel Alves da Costa


Quem avista uma flor da manhã está avistando ela; quem imagina a fruta morena espelhando doçura está imaginando ela; quem se encanta com as singelezas da vida, com as belezas escondidas na natureza e com os desejos repousando nos olhos, certamente se fartará dos maravilhamentos diante dela.
Solta, sempre descalça, sempre feliz, sempre tão bela, assim era a mocinha. Digo era porque o despertar do amor tudo fez para colocar naquele semblante um laivo de dor, uma feição de tristeza, um aspecto de melancolia. Contudo, a inafastável realidade não conseguiu adormecer a doçura existente no seu coração.
Quando não passava faceira de lápis e caderno à mão, dessa vez calçada por ofício da aprendizagem, era encontrada em cada canto dos arredores de sua moradia. Saindo da casa humilde, de barro socado, gostava de passear pelas matarias, na beirada do riachinho, subir nas mangueiras e goiabeiras para se deliciar da fruta mais doce.
Dizem que até tinha modos estranhos demais para uma mocinha, ou moça feita como os olhos da rapaziada insistiam em confirmar. Quem já se viu menina daquele tamanho, já desde muito tirado o cheiro de mijo, ainda passar com boneca de pano na mão, tomando banho de chuva em época de trovoada, correndo feito uma doidinha atrás de uma bolinha de sabão?
Quem já se viu uma mocinha já moça, tão bonita e tão vistosa, sem se importar com o desleixamento da roupa de chita, gostar de viver com assanhamento nos seus cabelos longos e escorregadios, fazer de conta que a vida era uma brincadeira sem fim, que os bichos e passarinhos eram seus amigos, que as pedras tinham conversas interessantes? Ora, conversava e muito com as pedras.
Quando não estava nas brincadeiras, nas voações descontraídas, estava cantando na lavagem de roupas no ribeirão, estava conversando com as velhas senhoras nas cadeiras de balanço ao entardecer, estava preparando mingau ralinho para que Sinhá Totonha conseguisse engolir. Depois contava um causo bonito pra doente se alegrar. E a velha ria de se acabar. Mas depois chorava, e chorava de se acabar.
Todo mundo gostava dela, sentia sua falta, perguntava onde havia se metido que nunca mais apareceu para alegrar coração. Ela não dizia onde estava quando sumida por pura vergonha. Não queria que ninguém soubesse que caçava folhas secas na mataria para escrever uns versinhos. Tinha medo que soubessem desse lado inspirado e logo começassem a falar que estava apaixonada.
Mas um dia uma dessas folhas secas lhe fugiu às mãos, e bem quando estava na janela pensando coisa muito diferente do que o normal. Seu coração inocente segredava-lhe coisinhas que a deixava atordoada. Somente assim começou a pensar em menino bonito, em rapazinho que segurasse na sua mão nas paisagens sertanejas.
Era coisa de querer namorar. Sentia, mas não queria. Ou queria, mas temia. Não se achava com idade ainda. Mas então, mocinha, por que escrevia versos dizendo assim: A semente um dia vira flor, e fica contente com o beijo do passarinho, mas quer sentir mais sabor, e da boca que venha de outro ninho.
E a folhinha que lhe fugiu da mão foi sendo levada pelo vento até cair em cima do banco da praça. E chegaram mais, muito mais versos levados no vento porque ela se enraiveceu por pensar em namoro e jogou pelo ar todos os versinhos escritos nas folhas. E o sopro da tarde parecia um livro de poesia.
Mas um olhar avistou uma poesia, outros olhares avistaram folhas secas estranhamente riscadas, e tantos olhos se admiraram e se apaixonaram pelos versos simples, pequeninos, mas cheios de encantamentos amorosos. E, de folha à mão, os meninos passavam tristonhos, apaixonados, diante de sua janela. Procuravam a poetisa, a dona daqueles versos, alguém que pudessem oferecer uma flor.
E pela fresta da janela entreaberta, de coraçãozinho apertado, ela sofria por querer continuar sendo apenas menina levada e por não poder fazer daquela sensação amorosa uma brincadeira. Sabia que o despertar ao amor era coisa muito mais séria do que bolhinha de sabão.


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Lá no meu sertão...


Nesta noite de domingo, no Memorial Alcino Alves Costa. Escrever, apenas...



Recado (Poesia)



Recado


A voracidade do vírus
distancia de tudo
e o vírus não entende
que eu preciso amar
abraçar e beijar
que eu preciso estar junto
sentir o suor e o calor

que o vírus entenda
que precisa ir embora
que chegou sua hora
pois preciso viver
preciso amar
preciso beijar
preciso abraçar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – canção do exílio



*Rangel Alves da Costa


Aqui estou em pleno exílio. Não é pátria distante, não levado forçadamente além-fronteiras, não desterrado do berço natal, mas igualmente lançado a uma estranha solidão. Ora, o isolamento imposto pela pandemia, nada mais é que um doloroso exílio perante aquilo que gostamos de viver e vivenciar. Em estado de reclusão entre quatro paredes, em situação de distanciamento do mundo lá fora, em instantes vividos no eu para mim, então hei que reinventar a vida para, na desolação, tecer em versos outra canção do exílio: Pátria minha entre quatro paredes, multidão de minha voz e companhia do meu passo e de minha sombra, que as fronteiras do ontem que ficaram atrás retornem como passos de vida, com momentos de alegria e de gratidão, como portas e janelas ao mundo e ao ser que não merece amargar o silêncio das horas e sussurro do tempo. E que o exílio seja apenas canção, e que da canção renasça a esperança que as mesmas luas e os mesmos sóis retornem sem temor, medo ou pavor. Que e vida reencontre seu canto. E que seu canto seja tão belo quanto a vontade de imensamente viver.


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sábado, 21 de março de 2020

HERÓIS DA TERRA DO SOL



*Rangel Alves da Costa


Os heróis nem sempre são gestados pelos livros de história ou pelos feitos tidos diferenciados dos homens comuns. Muitas vezes, por serem pessoas demasiadamente comuns, são tidas até sem o devido reconhecimento.
Mas então desponta a face de seu verdadeiro heroísmo: o anonimato, porém de vivência em bravura tamanha que não há como deixar de reconhecer sua distinção. Surgem, assim, os heróis da terra. às vezes continuam anônimos. Outras vezes ganham as páginas da posteridade.
Há bravura maior que o do vaqueiro em meio ao toco de pau e aos pontiagudos espinhos das matas e catingueiras?
Há denodo maior que arar a terra seca e depois do trabalho se dar ao ofício da prece, da oração e da promessa, para que a chuva chegue e a semente seja lançada?
Há coragem maior que a do bravo caçador que adentra os escuros da mata em busca da caça para alimentar a família?
Há esforço maior que o do lavrador, de enxada ou foice à mão, sobre o chão rachado de calor e debaixo da fornalha do sol?
Há persistência maior que a do pobre homem da terra que replanta a planta morta e depois ainda faz renascer a esperança de colher grão?
Há heroísmo maior que sofrer o sofrimento do bicho na pele e no osso, que chorar a mesma lágrima do animal, que berrar por dentro o mesmo berro de dor daquele na desvalia da fome e da sede?
Há intrepidez maior que deixar a panela vazia, a filharada esperando qualquer “de comer”, e no mato adentrar em busca de um preá escondido nas locas das pedras?
Há reinado maior que o do pedacinho de chão sertanejo, onde reis e rainhas dividem na luta as esperanças de dias melhores, ainda que o sofrimento chegue dia após dia?
Há heroísmo maior que se manter com caráter, respeito e moral, ainda que pelos arredores voejem os abutres da política e dos assistencialismos em troca de voto?
Todos são heróis, são sertanejos de excepcionalidades indescritíveis. De nobreza inigualável é a vida do sertanejo, do homem da terra, do mato, dos escondidos, das distâncias matutas.
E todos são igualmente heróis, bravos guerreiros, fulgurantes Ulisses em Odisseia. Na história e no cotidiano sertanejo, não há coadjuvante, não há personagem de segundo plano no seu enredo e trama.
Todos, indistintamente, são protagonistas, atores principais nas páginas reais de uma epopeia chamada existência. De uma saga chamada sobrevivência.
No livro-sertão, cada personagem possui importância igual, cada um influencia na gestação de uma realidade a muitos desconhecida e até incompreendida, mas sempre tão comovida e comovente.
Além deste pedestal de lutas e vitórias, de sofrimentos e inglórias, há de se reconhecer o heroísmo em cada um, em cada ser nascido e vivente no mundo-sertão. Todos são, pois, heróis sertanejos. Não existe o sertanejo comum, o reles sertanejo, o sertanejo desvalido de tudo.
Mesmo na pobreza e magrez há o heroísmo da sobrevivência, mesmo na carência e no sofrimento há o heroísmo da luta por dias melhores, mesmo na angústia pela mesa sem prato e pelo prato vazio há o heroísmo dá invenção do viver, mesmo na lágrima que cai escondida e na prece que nunca é ouvida há o heroísmo pela abnegação da esperança incontida.
Há o heroísmo na acumulação de riquezas em meio hostil. Há o heroísmo na casa bonita e no móvel da sala, vez que sempre um sonho realizado. Há heroísmo no veículo na garagem e no sítio para repouso e estadia, vez que nascidos de cada pingo de suor. Mas outros heróis tão reais que chegam a assemelhar a deuses e semideuses de um Olimpo Matuto.
Mateiros, roceiros, pequenos agricultores, vaqueiros, autônomos, vendedores, pescadores, fateiras, varredoras de rua, garis, lenhadores, coureiros, bordadeiras, rendeiras, artesãos, doceiras, lavadoras de roupas, pedreiros, serventes, caçadores, feirantes, beatas, missionários, benzedeiras, rezadores, todos, enfim.
Há imenso heroísmo numa gente que vive distante, escondida, oculta, vivendo seus dias apenas perante seus mundos. Uma gente em casebres, em toscas moradias, e que ainda bebe água de pote e cozinha em fogão de lenha.
Mas também na bravura de uma gente que foi além da normalidade. Pessoas com sangue no olho ou rosários em mãos, sujeitos de valentia ou rebeldia, e que foram além de suas portas para enfrentar com outras armas as realidades apresentadas.
Lampião foi herói na jornada, Padre Cícero e Frei Damião heróis nas suas missões de fé, Antônio Conselheiro no seu desvario consciente por um mundo humanizado através do trabalho e da religião.
Gonzagão foi herói, Dominguinhos também. Mas também Tião, Bastião, Jucundina, Luzia, Timóteo, Pedro, João, Bastiana, Porcina, Minervina. Heróis da luta, do suor, da prece, da oração, da persistência, da vela acesa, do rosário nas mãos.
Aquela heroína que encontrei no Assentamento Madre Teresa de Calcutá: debaixo do sol, voltando da mata e carregando na força dos braços uma carrada de toco de pau para fazer lenha. Que heroína maior desse mundo-sertão!
Heróis como eu e você, que sertanejos somos sem jamais abdicar desse orgulho maior!


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