SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 31 de maio de 2011

AS MAL-FALADAS (Crônica)

AS MAL-FALADAS

              Rangel Alves da Costa*


Não tem pra onde correr. Mesmo aquilo que se aproxima da pureza, da inocência, da castidade, ainda assim sempre haverá alguém falando mal, inventando coisas, deturpando a honra e a imagem.
Não adianta, é instintivo na maioria das pessoas falar mal de todo mundo. Quando não há o que falar inventa, quando não tem o que inventar escolhe uma qualificação qualquer: idiota, metida a besta, só quer dar uma de santa puta...
As armas que esses donos da vida dos outros possuem são as mais inteligentes e diversificadas possíveis. Se fossem usadas para o bem talvez até fossem laureadas com o Nobel do processo de elevação do outro pela palavra.
Verdade é que possuem um verdadeiro arsenal verbal, um linguajar bélico comparável às grandes potências mentirosas. E daí surgirem as fofocas, as redes de intrigas, as falsidades, as aleivosias, os rumores e boatos, as calúnias e as tão difundidas mentiras.
Tudo para usar contra inimigo algum, pois a pessoa ultrajada muitas vezes é colocada mil vezes no lamaçal sem saber ou sentir. Todo mundo sabe e comenta que ela não presta, não vale nada, é vagabunda ou coisa parecida, mas na presença da ofendida nada é dito, nada é ao menos ventilado.
Pelo contrário, a pessoa é elevada a uma categoria de respeito e consideração sem precedentes. E isto porque a falsidade, a canalhice, o embuste, tem o máximo de cuidado para preservar suas vítimas. É como se endeusassem para depois difamar, jogar na lama, sorrir da situação.
Desse modo são tratadas uma infinidade de pessoas, das mais altas às mais baixas classes sociais, das metrópoles e dos interiores de rua e beco, dos moradores das mansões aos sobreviventes nas palhoças.
Os objetivos são sempre os mesmos, que são os desonra pura e simples, mas os meios para se alcançar os fins é que sempre se modificam, dependendo também das características próprias da pessoa que será covardemente atingida.
Dizem que Cotinha é a sonsice em pessoa. Em casa a mãe implora para se desarnar, para ser mais alegre, para sair e se divertir. E ela finge que não, que sua vida é pra religião e futura beatice. Mas quando sai é fila de homem e ainda não dá pra quem quiser. È o que dizem, sem que a pobre coitada jamais tenha arrumado um namorado.
Espalham que Dorinha saiu à mãe, não presta. Como a mãe faz com o pai, chifrando a torto e a direita, a mocinha faz o mesmo com o namorado. E o babaca parece cada vez mais apaixonado por ela. É o que espalham, sem que nem a mãe nem a filha saibam dessa história e jamais tenham dado motivo para qualquer palavra de desonra.
Não tem boca que ainda não falou nem ouvido que ainda não ouviu que Dorivalda derrubou barriga de homem casado. Engravidou e foi tirar na cidade aquilo que seria a desonra familiar. Da família, porque ela mesma não vale o que o gato enterra. É o que se comenta na cidade sobre a solteirona que até virgem é.
E Querubina? Vixe Maria, dessa aí nem se fala. Não tem ninguém que suporte ela, sua falsidade, seu jeito esnobe, sua mania da riqueza sem ter nem o que vestir. E o pior é que faz amizade com todo mundo e depois fica por trás metendo o pau, botando mau gosto em tudo. Mas seria até bom se Querubina ao menos sonhasse que falam isso dela pelas calçadas e janelas, aí neguinha ia ver o que era bom pra tosse.
E assim o povo vai preservando e espalhando sua infame cultura da desonra, do denegrir a imagem do próximo, do desqualificar até rebaixar de vez quem ainda possui moral e procura conviver com dignidade. Os caluniadores não pensam em si mesmos nem tem medo dos castigos divinos porque já foram excluídos de qualquer respeito na vida.
Aliás, o respeito mandou notícias e diz que está cada vez mais longe, distante, muito distante.



Poeta e cronista
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Da natureza do amor (Poesia)

Da natureza do amor


De repente selvagem
fúria, ferocidade, voragem
animal solitário na rua
feito lobo embaixo da lua
chorando seu tanto espanto
num grito que seria acalanto
se a fêmea que está ao lado
no seu passo descompassado
prestes a se tornar presa
causasse espanto na natureza
e num gesto de amor
fugisse do predador
e num voo de pássaro
num pulo de lebre
na pressa do tigre
na fome da onça
se torne outro bicho
um bicho qualquer
bicho faminto mulher
para o animal solitário
que tanto te quer.


Rangel Alves da Costa

TEMPESTADE - 22 (Conto)

TEMPESTADE – 22

              Rangel Alves da Costa*


O menorzinho dos filhos de Julião e Gecineide, portanto irmão de Totinha, antes de se dirigir pra debaixo da cama segundo a ordem recebida, chamou os pais, pediu que se abaixassem e disse bem juntinho dos ouvidos:
“Deixe eu ficar com vocês porque a cobra vai pra lá debaixo da minha cama. Eu sei que ela vai papai e é uma cobra bem grande, desse tamanhão. Só é eu chegar lá e ela vai aparecer logo logo porque ela vem na água. Eu já tô sentindo até ela chegar e se bater toda gelada em mim. Deixa papai, deixa mamãe?”.
Mas o pai logo desconversou e disse que ele deixasse de invenção e fosse logo pra debaixo da cama antes que o telhado caísse de vez por cima de todo mundo. Então Zezeu, pois esse era o apelido dele, baixou a cabeça e com o rosto mais triste do mundo seguiu em direção ao local onde estava sua caminha.
A mãe, entristecida com esse fato, desgostosa porque não gostava de se meter nas ordens do marido, sentia que precisava conversar com este sobre o pedido do menino. Havia olhado nos olhos do filho e não tinha dúvidas do verdadeiro medo instalado naquela criaturinha. Mas com a pressa do homem para saírem dali e se arrastarem lá por debaixo, ficou apenas com a palavra entalada na garganta.
Quando os dois rolaram pelo chão tomado de água por debaixo do estrado, ela perguntou se ele estava bem, se já tinha se acomodado direito, pois precisava dizer uma coisa, e o mais depressa possível. “Mas que conversa é essa mulher, logo numa hora aperreada dessas?”, resmungou Julião, como se precisasse do silêncio para pensar no que fazer.
Silêncio só se fosse o da palavra, pois o dilúvio acompanhado de ventania e trovões estava cada vez mais forte, mais barulhento, mais amedrontador. Sem falar no barulho das águas lá fora passando por cima de tudo e do restante do telhado que parecia todo se movendo, rangendo ruidosamente pra se quebrar todo e despencar. Mas nem o silenciar completo da palavra se fazia, pois o menininho Zezeu chorava, gritava, pedia socorro e ninguém ouvia.
Mas lá no seu quarto, quase forçando a permissão do marido, Gecineide começou, devagarzinho, quase sem poder falar de tanta dor no coração: “Por que não ouviu Zezeu e deixou que ele viesse ficar aqui com a gente, homem de Deus? Coração de menino não mente, se ele estava dizendo que aquilo podia acontecer era porque sabia de alguma coisa, tem o pensamento pra essas coisas, você sabe bem disso...”.
“Do que é que você está falando mulher?”, perguntou, parecendo não estar dando muita importância ao que ela dizia. E ela prosseguiu: “Estou falando daquela conversa da cobra, estou dizendo que Zezeu disse que uma cobra bem grande ia aparecer por lá no quartinho dele e você não quis acreditar, não quis deixar ele vim ficar aqui com a gente...”.
“Mas mulher, aquilo era só conversa de menino com medo de ficar debaixo da cama. Todo menino tem medo de ficar debaixo da cama por causa daquelas conversas que diz que lá tem bicho-papão, tem bruxa que pega menino que não dorme, essas coisas do arco da velha. Não lembra dessas histórias não? Pois se alembre que você mesma inventava umas das boas...”.
E quase chorando ela tentava continuar falando: “Lembro sim, mas agora estou falando de outra coisa. Estou dizendo que se Zezeu disse que ali vai aparecer uma cobra é porque vai mesmo aparecer uma cobra, e cobra como ele disse, tenho certeza. E quer saber por que tenho certeza, por que sei que meu filho não mente pra essas coisas, quer saber?”.
“Diga mulher, diga...”. Então ela respirou mais profundamente e procurou dar firmeza às palavras:
“Quem disse a você, mesmo sem jamais ter ido lá ou saber de sua existência, que o cavalo preto de compadre Afonsino estava preso lá nos arames? Quem disse a você que o filho da vizinha estava engasgado com a chupeta, e se você não sai correndo daqui a criancinha tinha morrido? Quem disse a você que a melancia que você escondeu debaixo da ramagem para não ser roubada já estava madura, mesmo sem nunca ter ouvido um tiquinho dessa história? Quem foi que outro dia disse a você que nem fosse pela estradinha perto da fazenda Luarado que a ponte de madeira havia caído? Vá, Julião, veja se lembra de tudo isso e lembra também quem disse tudo isso sem ao menos saber de nada ou jamais ter visto nada daquilo que falou? Lembre Julião...”.
“Danou-se, mulher, pois é verdade. Zezeu, mesmo sem quase falar direito, foi quem disse essas histórias todinhas. Então, então, então esse negócio de cobra pode ser...”. E deu um pinote por baixo da cama que levantou o estrado, virou a cama completamente, e saiu correndo, acompanhado da desesperada Gecineide que vinha atrás.
“Zezeu meu filho, Zezeu, você está bem?”. E quando chegaram à porta do quartinho ouviram uma mistura de gritos e gemidos roucos, vindos de uma face que já estava praticamente sem cor, e bem ao lado dela, com os olhos mais acesos que vagalume e língua parecendo agulha passeando ao redor da boca, a serpente estava esperando somente um momento a mais para dar o bote.
“Valei-me Deus, valei-me minha Nossa Senhora, valei-me meu São Bento protetor, valei-me que essa desgraça mordeu meu filhinho!...”, gritava desesperada a mulher, enquanto Julião avançava sobre a jararaca com um pedaço de ripa na mão.
Num gesto, jogou a caminha pelos ares e quando a víbora virou a cabeça na sua direção para dar o bote, num golpe certeiro atingiu-lhe a cabeça, ficando o corpo inteiro se debatendo no chão molhado, espalhando o sangue pelo aguaceiro.
Apanhou rapidamente o menino no chão e foi entregar nos braços da mãe, mas esta estava lá por cima das nuvens, às portas do céu, rezando alto para que São Bento, protetor contra ataque de cobras, lhe ouvisse:

“Pela primeira chaga de Cristo,
Livrai-me São Bento;
Pela segunda chaga de Cristo,
Livrai-me São Bento;
Pela terceira chaga de Cristo
Livrai-me São Bento;
Pela quarta chaga de Cristo,
Livrai-me São Bento;
Pela quinta chaga de Cristo,
Livrai meu filhinho dessa cobra
Que é bicho peçonhento”.

Totalmente entregue à sua fervorosa oração, a mãe nem se deva conta que o esposo chegava a gritar para que ela segurasse e cuidasse do filho. Só voltou a si porque ouviu o próprio Zezeu dizer: “Mamãe, obrigado por ter acreditado no que eu falei”.

                                                continua...




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segunda-feira, 30 de maio de 2011

QUANDO OS LOBOS UIVAM (Crônica)

QUANDO OS LOBOS UIVAM

                 Rangel Alves da Costa*


Os lobos, esses canídeos selvagens, predadores e solitários por natureza, são romanticamente lembrados pelos seus longos e tristes uivos nas montanhas enegrecidas, debaixo da lua cheia.
Todas as vezes que se fala nos gritos silenciosos em noites de solidão sempre se toma o lobo solitário como referência. E até se torna fácil mentalizá-los por cima dos montes, com a cabeça volta pra lua, seus dentes afiados sobressaindo e os uivos, os longos e tristes uivos.
Mas por que os lobos uivam tanto e sempre procuram lugares bem altos, geralmente rochedos e montanhas, para expressar sua solidão. Não seriam de tristeza, aflição, angústia, desespero, dor do abandono, os uivos dos lobos?
Dizem que os lobos uivam para dizer que estão presentes naquele lugar, que existem, mas que estão solitários, em busca de uma resposta, à procura de outro animal. Mas dizem também que esse ruído peculiar nada mais é do que o mais angustiante e doloroso grito de um coração que não mais tem por quem chamar.
Mas outros, talvez pretendendo negar o poder sentimental dos lobos, dizem apenas que o uivo é o meio através do qual eles mantêm contato entre si. Contudo, não negam que esses sons, muitas vezes assustadores aos ouvidos humanos, são emitidos por lobos muito solitários e, provavelmente, para manifestar o desejo de uma companhia.
Diante do que foi dito acerca dos lobos selvagens e seus uivos, urge perguntar: Por que tantas pessoas sobem nas montanhas, em noites do mais cortante entristecimento? Por que parece se ouvir gritos, ruídos, lamentos, chamados aflitos, verdadeiros uivos de lobos solitários? Por que parece que faces se voltam pra lua e corpos de braços abertos querem encontrar significados para suas noites, seus instantes de solidão, suas vidas solitárias?
Não possuem caninos afiados, não assustam, não são apavorantes como os lobisomens nem selvagens quanto os lobos, mas verdadeiras matilhas vagam pelos ares da noite procurando aquilo que não conseguiram encontrar durante o dia. O dia inteiro na esperança de uma lembrança ao anoitecer, um telefonema, um encontro marcado, um toque na porta e nada.
Ora, pessoas tão normais, tão alegres, amigueiras, parecendo sempre felizes e contentes e basta se aproximar o anoitecer e vão se transformando totalmente. Mas também todo mundo sabe que as angústias, as dores da solidão e outros sentimentos não andam tão visíveis assim pelos rostos.
Talvez seja por isso que todas as feições exteriores de determinadas pessoas, inclusive suas roupas, seus pertences e seus luxos nada mais são do que falsas couraças encobrindo ou tentando esconder verdadeiros lobos que não vêem a hora da noite chegar, a lua descer suas cores de abandono, para subirem nas suas montanhas para os uivos de sempre.
Talvez nem fechem bem as portas atrás de si para se transformarem em lobos. Ali à frente, logo ao primeiro olhar, na montanha mais alta do quarto, da sala ou da varanda, estará sempre a lua repousando sobre a fotografia, sobre a carta esquecida em cima da escrivaninha, sobre os restos de um amor que nunca foi esquecido. E então vão surgindo os uivos, os tristes uivos de lobos tão solitários.
E as matilhas vão vivendo os seus dilemas, buscando suas explicações, como se aqueles uivos molhados de uísque, cheios de fumo dos cigarros, molhados pelos lenços que se espalham ao redor, fossem trazer respostas.
Nunca trazem porque as montanhas sempre estarão no mesmo lugar à espera de seus lobos e estes animais indomáveis parecem não querer conhecer outras paisagens que transformem seus gritos em leves cantos nem passear pelos trigais que tão belamente brilham ao anoitecer.
Por isso que há muito decidi descer da montanha. Ser lobo jamais. Basta-me ser ostra imersa nas águas profundas por baixo dos travesseiros. As lágrimas inundam, silenciosamente, e gritam, mas somente eu posso ouvir.



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Luazinha imensa (Poesia)

Luazinha imensa



O que é
o que é
é luz em mim
é tudo enfim
mas só fica assim
se a noite é ruim?

não é a lua do céu
não é a lua de mel
não é feita no papel
não é tinta do pincel
não brilha feito anel
não rima feito cordel
não galopa no tropel
não voa no carossel
não é poeta menestrel
não amarga feito fel
não fala feito babel
não é um veloz corcel
não corre feito tropel
não está no painel

o que será enfim
tanta dúvida em mim
pode ser assim e assim
se a resposta é descrença
para dizer do teu olhar
que é luazinha imensa
que é ele que ilumina
o amor luz que compensa.


Rangel Alves da Costa

TEMPESTADE - 21 (Conto)

TEMPESTADE – 21

              Rangel Alves da Costa*


A família de Totinha não era diferente da maioria das famílias da região. Como se dizia, era apenas remediada, não tendo nada além do extremamente necessário à sobrevivência. E o necessário à sobrevivência, todo o luxo que as pessoas podiam dispor e dar graças por isso era ter o feijão com arroz e farinha no almoço, um naco de carne com osso de vez em quando pra cada um, uma caneca de kisuco e uma quartinha d’água do lado.
Isso no almoço, na hora da comida de maior sustança do dia, pois era o momento em que o dia se dividia entre o pouco do café da manhã e o quase nada da janta. Quando os meninos levantavam tinham que se contentar com o pão com café, se tivesse, ou com o mingau de farinha, de água ou com leite aguado, dependendo da situação.
Ainda assim os meninos se fartavam com alegria e felicidade. E isto porque, espertos demais, deixavam reservados outros alimentos para o acompanhamento com o que tivesse naquela hora: araticuns madurinhos, goiabas de encher a boca d’água de tanto aroma e gostosura, mamões de procedência dos quintais das vizinhanças, de melões caipiras e melancias. Os pais já sabiam dessas espertezas e não deixavam também de saborear uma talhada, um pedacinho disso ou daquilo.
Quando Julião, o chefe da família, ainda possuía um terreninho com três vaquinhas magras pastando lá pra cima do riachinho, e o gadinho era chiqueirado todo entardecer, ainda aparecia por ali dois ou três litros de leite fresquinhos, apetitosos, que fazia a festa quando misturado à farinha ou derramado por cima do cuscuz. Não há comida igual à cuscuz com leite, soando quase como unanimidade.
Mas essa iguaria de milho, o tão apreciado cuscuz sertanejo, já havia adquirido status de luxo e só era servido uma vez ou outra, assim mesmo durante o jantar. Os próprios pais da criançada não gostavam da expressão jantar, pois achava um descabimento diante do que os meninos comiam, que era o cuscuz, às vezes, e quase sempre o pão, bolacha ou biscoito com café.
E nessa hora, no momento do café à boca do anoitecer, mais uma vez os meninos traziam à mesa verdadeiras surpresas. De vez em quando inventavam de dividir um preá assado, uma nambu caçada às escondidas, um peixe pescado na barragem do Luarado. E que bonita fazenda era essa chamada Luarado, de dono tão rico e final de vida  tão medonho.
Foi exatamente por causa dessa grande propriedade rural chamada Luarado, do Doutor Laurentino Gamela, que o pai dos meninos acabou perdendo o seu terreninho. E tudo aconteceu quando começaram a chegar à região umas pessoas diferentes, vindas de outros lugares, carregando umas bandeiras vermelhas, armados de foice e facão, dizendo que iam invadir tudo que era propriedade improdutiva que havia nas redondezas.
Segundo esses desconhecidos, muito bem liderados por pessoas astutas e inteligentes, porém sabidos demais para tomar o que é dos outros, era preciso tomar as terras daqueles possuidores de grandes latifúndios e que os deixava sem produzir ou criar quase nada.
Tomando essa imensidão de terras dos seus donos, como se estes não tivessem comprado ou adquirido por herança, ou até por meios escusos, dividiriam a terra entre todos, dando a cada trabalhador aquele pedaço de chão para realmente produzir, sustentar a família e viver com dignidade. Discurso bonito que na prática não tem nenhum valor. Nunca teve, e já estava provado nas invasões que haviam feito em outras regiões.
Verdade é que esses desconhecidos, dizendo agir em nome de um movimento organizado de trabalhadores sem um palmo de terra, foram invadindo propriedades até chegarem aos limites da fazenda Luarado. Quando o Doutor Laurentino Gameleira soube da invasão e se dirigiu até lá para tomar providências, mas logo antes da porteira avistou arames cortados, animais mortos e a sede da fazenda tomada pelos invasores, nãos suportou a visão de tamanha atrocidade e bateu as botas, foi pro beleléu, vitimado por um infarto fulminante.
Não se pode negar que o Doutor Gameleira não era flor que se cheirasse, pior de que merda, como se dizia por lá, arrogante e parecendo que tinha o rei na barriga. Ali, naquela pança, como brincavam, cabia muito mais do que um reino inteiro, de tão grande que era. Mas o danado do ricaço cuidava bem de sua propriedade, criava bois, vacas e bezerros de não acabar mais.
Na terra toda dividida para produzir com mais eficiência, uma parte era reservada à plantação de capim e palma; outra, também com capim e palma, mas com os animais pastando à solta para se alimentar, e ainda outra própria para o cultivo do milho, do feijão, da abóbora, da melancia, do algodão. Muitas outras culturas existiam por ali.
Portanto, não havia nada de improdutividade como alegado pelos invasores. Então, vendo todo o seu investimento invadido tão covardemente de uma noite pro dia, com trabalhadores sendo expulsos a chicotadas, famílias inteiras tendo que correr de suas casas para não morrer, animais mortos e cenas de cortar coração, tudo isso foi demais para o velho coração do Doutor Gameleira.
Mas não obstante tal invasão, tão absurda e injustificada, eis que esses ditos trabalhadores sem um palmo de terra, acharam pouco o que fizeram na fazenda do doutor e acharam por bem tomar um pedacinho de chão, uma verdadeira vereda de mato, cipó e cobra, que ficava bem ao lado, fazendo divisa. Era a terrinha do pai de Totinha, toda a riqueza que Julião possuía.
Assim, por consequencia dos desmandos de forasteiros que eram mais que bandidos, pois chegando e invadindo o que era dos outros, matando animais, destruindo plantações, espalhando o terror, o coitado do Julião ficou impedido até de colocar os pés por lá. Quando foi alegar que aquela terra havia recebido de herança e que aquelas três vaquinhas era tudo que tinha na vida, recebeu foi um tiro de espingarda, que por pouco não lhe tirou desse mundo.
Depois disso desacreditou de vez na justiça, na política e nos políticos, em todo discurso que ouvia dizendo que aos mais pobres era assegurado isso ou aquilo. Perdeu as vaquinhas e para ter um litro de leite agora tinha que mandar a mulher entrar numa fila imensa para receber uma esmola. Ele mesmo não queria nada daquilo, porém tinha de se submeter a tais vexames por causa da filharada.
Estava mais pobre, é verdade, mas nunca desanimado nem entregando os pontos. E a família passava ainda mais necessidades porque há meses ele vinha se esforçando para juntar uns tostões e mudar o telhado da casinha, que sabia não suportar uma chuva mais pesada. O problema é que não veio a chuva temida, mas tempestade voraz e ventania faminta que, em menos de dois minutos, levou pelos ares metade da cobertura.
Pediu que cada menino corresse para debaixo de sua cama e só saísse de lá quando não suportasse mais as águas, que ele faria o mesmo com sua esposa. Deitados ali debaixo da cama, não havia nem motivação para reza ou promessa. Perguntava-se apenas porque teriam que morrer daquela forma, soterrados na própria casa ou afogados pelas águas de tão misteriosa tempestade.


                                                      continua...





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domingo, 29 de maio de 2011

UMA PAIXÃO DIFERENTE (Crônica)

UMA PAIXÃO DIFERENTE

Rangel Alves da Costa*


Recentemente saído de uma relação conturbada, deixando marcas tão profundas e difíceis de ser superadas, ele pensou em desistir de vez de tudo que dissesse respeito ao amor, às relações amorosas, às paixões. Era a desilusão em pessoa.
Não penso que uma desilusão amorosa, uma paixão reconhecida inexistente ou um desvão desses que atacam o coração, surta um efeito tão penoso num ser humano, deixando-o aos pés de um estágio de querer destruir a própria vida. Contudo...
O abalo foi, podemos dizer, tão sismicamente brutal e cruel que o rapaz, para não enlouquecer de vez, passou a se atirar aos pés de tudo aquilo que fosse fêmea que passasse à sua frente, ao seu lado, enfim. O problema é que não passava nenhuma mulher, mas só animais.
E passava cada perua enfeitada, cada galinha bonita, cada pata elegante, cada cachorra saliente, cada lebre fofinha, cada jumenta interessante, cada vaca bem cuidada, cada cabrita cheirosa, cada tigresa envolvente. E passava sempre também muitas cobras, sempre lisinhas, furtivas, misteriosas. Mas na dúvida se macho ou fêmea acabou nem olhando mais.
Não se sabe se porque estava completamente louco pela desfeita amorosa ou em vias de atirar pedras, mas a verdade é que começou a retomar alegria no coração, ficar mais feliz e contente, com essas tantas novas fêmeas que encontrava pelo caminho. Muitas vezes pelos matos, descampados e quintais.
De repente e havia esquecido completamente aquela maldita, aquela ingrata que tão fortemente havia ferido seu coração. E isso porque nem tinha mais tempo de pensar no passado, reviver as tristezas de ontem, pois voltado completamente para o cheiro, o canto, os gritos, as expressões próprias daqueles animais apaixonantes.
Não podia ouvir o cacarejar de uma galinha e ia pra pertinho jogar uma flor e um punhado de milho. Enquanto ela ciscava e ia catando os grãos, sem se importar com a flor, ele ficava ali abaixado, totalmente admirado, encantado com tanta formosura daquela espécie galinácea. E dizia a si mesmo que qualquer dia conversaria com ela, abriria de vez seu coração.
Não podia ouvir o mugir de uma vaca e lá ia correndo com outra flor e um punhado de palma fresquinha para oferecer à pretendida. Às vezes ela mordia a flor e a deixava de lado, mas saboreava vagarosamente cada pedacinho daquele cacto novinho, macio, colhido com tanto amor para outro verdadeiro amor. Ele sentia que ela queria dizer alguma coisa, pois ficava mugindo, se lambendo toda, e então ficava em tempo de pular de alegria e gritar para o mundo que enfim havia encontrado seu eterno bem-querer.
Não podia ouvir o miar de uma gata no telhado que ia correndo buscar uma escada para subir até lá, levando na mão a flor e qualquer comida apetitosa. Arisca, desconfiada, intrigante demais, e por isso mesmo mais feminina e mais sexy, a gatinha ia se afastando quando ele se aproximava e só dava um passo à frente quando ele deixava os presentes ali e fazia que ia embora. E no seu íntimo inebriado ficava muito mais feliz porque sabia que um dia iria conquistar aquela fêmea que se fazia tão difícil.
Amava tanto essas fêmeas de pasto e quintal, de cercado e mataria, todas elas perfeitas para compartilhar do seu grande amor e de uma feliz união conjugal, que gritava aos quatro ventos que era pessoa mais feliz e realizada do mundo. Contudo, amava demais e tantos amores ruminantes, felídeos, bubalinos, carnívoros, vegetarianos e muito mais, que não sabia quem amava mais e quem escolheria para a benção eterna dos casais apaixonados.
Mas que aflição tamanha, horrenda situação essa de um coração tão apaixonado e tão indeciso. O pior é que sabia que ia ser devorado pela tigresa se ela não fosse a escolhida, tinha certeza disso. Os outros sumiriam de vez de sua vida e jamais ouviria um cacarejar, um miado, um uivo, um canto, um pio, um balido, nada. Pensou e pensou e quanto mais pensava mais se via sem saída. Coitado do rapaz!
Até que um passarinho pousou no seu ombro e disse assim: Se você não sabe, mas ali naquela casa chegou uma fêmea nova, bem diferente dessas daqui. O nome dela é Maria e é a única espécie que não vai causar ciúmes nessas outras. Basta que você continue dando milho, palma, resto de comida, alpiste... Vá lá, tente namorá-la e reaprenda verdadeiramente como e a quem se deve amar.



Poeta e cronista
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Terno e eterno (Poesia)

Terno e eterno


A humildade em tudo
traz o brilho e a riqueza
que o coração deseja
e se for humilde o amor
sem se manter na paixão
nem vivendo no suportar
logo se fará a eternidade
de amar e mais amar
sempre num gesto fraterno
para existir sempre
pleno e docemente terno
com a certeza do amanhã
pois será amor eterno.


Rangel Alves da Costa

TEMPESTADE - 20 (Conto)

TEMPESTADE – 20

Rangel Alves da Costa*


Na solidão dos seus últimos dias, somente quando a tempestade passasse e se dessem conta de que morava ali uma velha feiticeira que havia desaparecido é que poderiam arrombar a porta para procurá-la. Por enquanto somente visitantes desconhecidos, espíritos de duvidoso caráter e um aguaceiro imundo velavam a mulher no seu último leito terreno. Se assim pudesse ser chamado.
Não se pode nem afirmar qual o horário agora naquela cidade e região. Não importava se três, quatro ou cinco horas se tudo era noite de breu, numa pretidão de não se enxergar um passo à frente. E ninguém podia avistar nada não apenas pelo negrume que tomou conta de tudo, mas também pelo vento dilacerante e pelos pingos grossos demais, caindo na chuva que parecia uma cachoeira descendo das nuvens.
Os dois campos de futebol já haviam se transformado em leitos de rio, o riachinho já havia transbordado de tal forma que engoliu pocilgas, hortas espalhadas pelas margens, cercas e cercados, e no seu curso destrambelhado e feroz devastado e levado toda a mata ciliar, carregado furiosamente os animais que encontrava pela frente.
Era um riachinho, como chamavam, mas parecia um rio correndo faminto, sujo, cheio de paus e troncos, tudo que pudesse arrastar. Mais de dez casas que ficavam próximas às margens já haviam sido completamente destruídas e muitas outras já estavam abandonadas desde cedo pelos moradores. Se não tivessem saído logo agora seria tarde demais, pois seriam levados juntamente com restos de móveis, telhas e paredes.
Folhas de flandres que serviam de cobertura para casebres, tábuas, papelões, telhas de amianto, madeirites, tudo isso zanzava pelo ar como folhas ao vento. Um zumbido ensurdecedor que ninguém sabia ao certo de onde vinha reinava ruidosamente pelos ares. Era a voz da ventania, furiosa demais, incansável e arrogante, não deixando em pé sequer uma árvore das muitas existentes nas praças. Postes pendidos e outros caídos, fiações misturadas às águas, feição da total destruição.
A única escola que ainda continuava com o telhado incólume e paredes sem serem ameaçadas era onde estavam abrigados a professorinha Suniá e seus alunos. Em todas outras, públicas ou particulares, muitos danos já estavam confirmados, se alguém pudesse observá-los. Muros caídos, paredes rachadas, desabando ou já deitadas, telhados há muito esvoaçados numa fragilidade inacreditável.
Verdade é que somente a presença divina em meio à tragédia contínua e imensa para que a maioria daquelas moradias não fosse completamente destruída. Quando se diz que os mais pobres e mais carentes às vezes possuem uma proteção diferenciada, tal assertiva poderia ser fundamentada naquela ocasião. O que fazia com que choupanas, barracos, taperas, casebres, verdadeiros ninhos de barro continuassem de pé?
A garagem da prefeitura já havia sido completamente destruída, carros estavam muito danificados lá embaixo, ninguém tinha notícias do vigilante. O telhado do clube municipal já havia sido completamente destruído, pilastras balançavam, salões ficariam a céu aberto a qualquer instante, a piscina se misturava num aguaceiro só que tomava conta de tudo. E em muitas outras edificações se somavam grandemente as destruições.
Entretanto, o barraco de Purgentina se balançava todo, estremecia que parecia voar a qualquer instante, mas continuava de pé; a tapera onde Zezéu e Geromilda criavam os seus oitos filhos, todo levantado na ripa e no barro, encoberto por telha, papelão e tábua, continuava erguido; a moradia do viúvo Titonho, já chegando perto do riachinho, que nem porta tinha, ainda continuava no seu lugar. Não se sabe até quando, mas a fúria da tempestade e da ventania continuava preservando esse povo, essa gente pobre demais.
O mesmo não acontecia com muitos outros, infelizmente. Famílias inteiras ficaram sem teto e sem nada, só restando a vida por uma providência divina. Fugiram a tempo para a casa dos amigos, dos parentes e até desconhecidos. A grande preocupação era saber para onde todos fugiriam a partir daí, pois como as coisas iam ninguém ficaria nas suas moradias por muito tempo.
Muito se comentava, quando as palavras de medo e de aflição deixavam, quando os choros e os gemidos permitiam, que uma verdadeira leva de pessoas havia corrido em direção aos matos, aos descampados, procurando grutas, fendas nas rochas e montanhas onde se proteger. Pelo que diziam, tinham certeza que muitas pessoas, à moda dos tatus e pebas, agora estavam entocados nas redondezas.
Todos os santos que protegiam aqueles moradores da região certamente haviam achado muito estranho o que vinha ocorrendo nas últimas horas. Nunca foram tão requisitados, chamados para proteger, ajudar, salvar. Santa Bárbara, a protetora contra dilúvios, tempestades e vendavais, teve que pedir permissão superior para também se tornar onipresente, vez que todo mundo chamava pelo seu nome, acendia uma vela em seu favor, erguia as mãos aos céus implorando para que fosse até ali ajudar.
Por todos os lugares rezas, promessas, orações. Velas não existiam mais, os santos já eram carregados de mão em mão, muitos também pelas águas, pois muitos oratórios, pequenas capelas familiares e outros locais de ofícios haviam sido tomados pelas águas ou completamente destruídos.
Alguém disse que viu uma pessoa se jogando nas águas para salvar um santo que ia sendo levado e foi tragado gulosamente pela sua força. Já outro disse que viu com os dois olhos que Deus haveria de comer quando viu a mesma pessoa sendo salva do afogamento pelo santo, que a ergueu pelos braços e a colocou em local seguro. Mas qual o local seguro ali?
Como visto, mesmo naqueles momentos de aflição as lendas, as conversas e os mitos também emergiam com vigor. Tibério dizia à sua velha esposa que tudo aquilo era castigo divino pelo estado de perdição que a humanidade estava, e que se não morressem pelas águas, certamente mais tarde morreriam pela fúria do fogo. Felônio era da mesma opinião, só que culpava a safadeza demasiada naquelas meninas novas que precisavam respeitar mais a si mesmas e às suas famílias.
O apaixonado comunista Tiburcino, um velho e aposentado estivador de todos os portos do mundo, bradava raivoso suas razões para todo aquele caos. Segundo ele, tudo que viesse da natureza, mesmo naquela proporção e ferocidade, teria que ser visto com normalidade, pois não era a primeira vez que caía uma tempestade assim.
E dizia ainda que o problema todo estava nos governantes, nos administradores públicos que só pensam em roubar e jamais fizeram qualquer tipo de obra que impedisse grande destruição quando surgissem as intempéries. Sem infra-estrutura, sem local ideal para o escoamento das águas, sem uma eficiente coleta de lixo, com o mato tomando conta de tudo e a sujeira se espalhando por todo o leito do riachinho, não seria de se esperar outra coisa quando chovesse.
Contudo, o pobre do comunista falava sozinho. Há muito tempo chamado de maluco, ninguém dava ouvidos ao que o homem dizia. Enquanto isso o mundo continuava se acabando lá fora, lá dentro, por cima de tudo. E a próxima casa que teve seu telhado jogado pelos ares foi do menino Totinha. Preocupado demais com saúde da professorinha, nem imaginava o que sua pobre família estava passando.


continua...




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sábado, 28 de maio de 2011

FILOSOFIA DA MELANCIA (Crônica)

FILOSOFIA DA MELANCIA

Rangel Alves da Costa*


Não sei se você já percebeu, mas a grandeza e a boniteza, a sedosidade e o verdor da casca, não significam que por dentro a melancia vá estar com a polpa vermelhinha e apetitosa, aquosa e docinha, nutritiva que se derrama pelos cantos da boca.
Não sei se você já percebeu, mas as talhadas vistosas e maravilhosas que são expostas para apreciação dos compradores nada têm a ver com o que está por dentro das outras melancias que estão bem ao lado, na mesma banca do vendedor.
Não sei se você já percebeu, mas não adianta comprar uma melancia achando que ela é grande e bonita e lá por dentro vai estar igualzinha àquela que você experimentou e que fazia parte do mesmo monte das outras que estão à venda.
Não sei se você já percebeu, mas tamanho e sedosidade da casca da melancia não dizem nada do seu volume, cor e doçura interna. Mesmo que todas sejam imensas e do mesmo tamanho sempre serão diferentes internamente; a cor da melancia, mais vermelha ou quase embranquecida, não modifica a doçura. Melancia linda existe cujo doce anda longe.
Não sei se você já percebeu, mas toda melancia, por suas características e aparências, é igualzinha ao ser humano, igualzinha a qualquer um, tanto no chão onde nasce com facilidade, na estação que começa a vingar e a crescer, como na casca que engana e na polpa que engana muito mais. Em tudo.
A melancia muitas vezes é imensa, parecendo que tudo dentro dela é também espaçoso, mas basta um pequeno corte para perceber da finura da sua casca, de quase nenhuma semente, mas, o que é pior, sem a carne vermelhinha esperada nem a doçura desejada. Alguma coincidência com certas pessoas?
Pela aparência física da pessoa não dá para se conhecer o seu conteúdo espiritual. Muitas vezes, a aparência que muitos repulsam, que acham feio ou ignoram, encobre apenas um ser humano maravilhoso, um doce de pessoa, uma alma bondosa e amiga. Por isso é que não se pode desprezar a melancia que nasce no canto do pasto, toda sem jeito de querer crescer, miúda demais para ter coisa boa por dentro, mas quando a sede bate e se procura por ela encontra uma fruta dos deuses.
Melancia da roça, de roçado caipira mesmo, de pasto pequeno e diminuto roçado, aparentemente nem se compara com aquela que é plantada nos eitos molhados, nas irrigações, sob os cuidados diuturnos. A primeira quase não é plantada, pois nasce de uma semente levada por uma galinha, de restos jogados ao acaso, e quando vinga vai querendo se esconder e chama pra si toda folhagem que por perto houver.
Já segunda é fruto de semente escolhida, selecionada, muitas vezes trabalhada em laboratório, cuidadosamente plantada, cuidada e colhida. Uma tem cara de qualquer coisa, de qualquer esfera sem verde definido esquecida num canto. A outra faz sorrir o olhar, encher a boca de água, orgulhosamente dizer que aquilo é que é fruta maravilhosa.
Contudo, no momento do corte de uma é que pode surgir a grande surpresa. Aquela que ninguém dava nada se abre bonita, vermelha, sadia, doce feito mel sertanejo. Aquela ainda que seja vermelha, de coloração parecendo tingida, nem sempre tem o autêntico sabor e a doçura daquela outra com sua humildade. E quando a melancia cultivada em irrigação é doce, logo se verá que é uma doçura enjoativa, como se um açúcar tivesse sido espalhado por cima dela.
As pessoas também são exatamente desse jeito. Considerando-se a melancia pequena e feia como pessoa, logo se verá que há um olhar que sempre prefere enxergar aquela outra bonita e enfeitada que nasceu e vive na cidade grande, educada nas boas escolas e de anel brilhoso no dedo.
O sertanejo, a pessoa do campo, da cidade acanhada, é a melancia que ninguém valoriza porque não tem uma feição bem cuidada e atrativa. Mas na hora de se matar a fome e a sede, que se chega na busca da amizade sincera, do apoio irrestrito e do compartilhamento em tudo, não há o que se comparar.
A melancia da cidade até que pode ser aquilo que os olhos desejam ver, mas o bom e autêntico fruto é muitas vezes somente é encontrado lá por trás de uma porteira de pau, lá dentro de um casebre, escondidinho, acanhado, mas inigualável igual melancia sertaneja.



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Sábio coração (Poesia)

Sábio coração



No homem
ainda que o selvagem
saia pelas ruas
dizendo ser civilizado
só lhe caberá o perdão
se estiver guiado
pela valorosa vontade
de ser perdoado
por não sabe o que é
por estar apaixonado

nesse selvagem e humano
tanta certeza e desvão
de um lado o mero viver
no outro um sábio coração
um selvagem por merecer
um amante com sua razão
na selva ou na passarela
o homem aprendendo a lição
que até o sábio coração
é bárbaro diante da paixão.


Rangel Alves da Costa

TEMPESTADE - 19 (Conto)

TEMPESTADE – 19

Rangel Alves da Costa*


Inácia não pôde fazer nada para salvar a vida de Dona Querência. Quando colocou a lamparina perto do rosto logo percebeu que ali zanzava a morte. O desespero era tanto que ela ficou com a calma maior do mundo. Nesses momentos extremos geralmente a pessoa não sente reação alguma, somente depois, quando a frieza da realidade se assenta, é que o mundo vem abaixo.
Cinco minutos depois a mocinha dava gritos desesperados, soltando verdadeiros uivos de lobas nas montanhas tristes. O problema é que ela podia berrar com a força que tivesse, se rasgar todinha que ninguém ouviria nada, mas nada mesmo. O mundo lá fora era outro mundo, sem ninguém, sem testemunha, sem qualquer pessoa que atinasse pra qualquer lamentação.
Somente o maluquinho Teté poderia ouvir e correr para perguntar o que tinha acontecido, mas este estava resolvendo outros problemas, quase da mesma monta, se não piores, pois envolviam riscos de mortes. Aliás, o maluquinho se virava como podia para ajudar nos sinistros que se acumulavam. Verdade é que se não fosse ele tudo seria pior. Contudo, como ele dizia que aquela fúria estava ocorrendo porque ele queria, então não se sabe ao certo o mérito dele até agora.
Mas sem ninguém que chegasse à porta para ajudar, Inácia pensou em fazer um monte de coisas ao mesmo tempo. Queria sair correndo pela rua avisando às pessoas, queria telefonar para o hospital, queria a todo custo ir até a escola buscar Betinho. Não conseguiria nada disso, principalmente dar qualquer telefonema, pois os telefones estavam completamente emudecidos. Resolveu então encobrir a defunta e ficar pensando no que fazer.
Inácia não sabia, mas naquele mesmo instante os espíritos pranteavam a velha Otília, aquela mesma tida como verdadeira bruxa, pois chegada às feitiçarias, leitura de mão ali mesmo na tenda cigana ou a domicílio, a prometer vidências. E se metia ainda a remexer paneladas de ervas e poções mágicas, no mesmo feitio de bruxa medieval, a fazer serviços para separar casais, reatar namoros, broxar homem casado safado, garantir emprego pra uns e desemprego pra outros, enriquecimento de uma hora pra outra, magia negra e magia branca, tudo de magia.
Diziam que ela tinha o poder de fazer a pessoa murchar, definhar de vez e para sempre só com um olhar. Mas só fazia isso por uma grande justificativa e por muito dinheiro, mas muito dinheiro mesmo. Talvez nunca tivesse feito um trabalho desses, pois era pobre de comer mamão verde cozido na água e sal. Diziam também que já tinha sido mulher de posses, porém gastou muito dinheiro investindo em propaganda enganosa, pagando a um e a outro para andar espalhando mentiras sobre os seus poderes.
Na verdade, de encantamento, de feitiçaria e magia, madame Otília, como gostava de ser chamada, não entendia de nada. Vontade não faltava, pois sentia que tinha um dom espiritual apropriado para esses trabalhos. Porém, ainda que tivesse um baú repleto de livros da capa preta, de magias e transformações, de feitiçarias da Madame Vivù e principalmente o Grande Livro Templário Das Grandes Magias de Perdição e Salvação, escrito no século IV por um tal Oriecitief Roiam, a pobre da mulher alcançou o envelhecimento sem ter aprendido nada.
A bem da verdade, não se pode dizer que não foi uma cultuadora das magias, enfeitiçamentos e encantamentos. Exerceu tal ofício e muito, o que se quer deixar claro é que seus trabalhos nunca deram nenhum resultado desejado. E se deram foi exatamente ao contrário do pretendido. Muitas vezes teve de passar muitos dias corrida com medo das mulheres casadas que perderam seus amantes, das ciumentas cujos maridos passaram a broxar somente para elas e não para as amantes, das apaixonadas que perderam de vez seus namorados.
O problema maior, contudo, fora causado por ela consigo mesma. Eis que certo dia, à meia-noite, bateu à sua porta uma rica mulher de uma cidade vizinha para fazer encomenda de um servicinho muito especial. Queria que a grande mestra da feitiçaria preparasse uma garrafada com ervas mágicas para que a própria ficasse tão fogosa, apetitosa e devoradora com seu amante bem mais jovem do que ela, de modo que o rapazinho ficasse completamente extasiado todas as vezes que a possuísse.
Aceita a encomenda, pagou bem pago e marcou o retorno dali a dois dias, no mesmo horário, dando mais do que tempo para que a encomenda fosse preparada com perfeição. Assim, ainda na madrugada a metida a feiticeira começou a catar ervas, raízes, besouros e lagartixas para juntar tudo na panelada, acrescentar outros ingredientes, dizer algumas palavras mágicas e pronto, o rapazinho seria um cativo nas mãos da insaciável e safada mulher.
A partir das características da formosa mulher, fez algumas perguntas na vizinhança e ficou sabendo que era a esposa do mandatário maior, o prefeito, da cidade vizinha. Porém, não tomou isso como nenhuma surpresa. Aquele não seria nem o primeiro nem o último caso, disso tinha certeza. A fama daquelas ricaças corria solta. Famosas por cima e verdadeiras marafonas por baixo e nas alcovas.
Mas o problema começou a surgir quando a eterna aprendiz de feitiçaria colocou o caldeirão no fogo de lenha e, pouco a pouco, foi juntando ervas, besouros, rabo de lagartixa e tudo o mais que naquela receita cabia. Cada ingrediente que era adicionado era também acompanhado por algumas palavras somente conhecidas por ela e depois colocado um pouco do caldo na palma da mão e saboreado.
Contudo, a cada experimentação saboreava duas, três, até quatro vezes. E logicamente, com a mistura já podendo surtir efeito, quanto mais a mulher ia provando mais ia sentindo um fogo diferente subindo-lhe pelas partes de baixo e tomando todo o corpo. Sentindo uma sensação agradavelmente diferente, uma vontade danada das coisas do sexo, acabou colocando numa caneca um pouco daquele caldo e foi sorvendo aos poucos.
Não durou muito e o efeito foi tamanho que ficou completamente nua pela casa ansiando a chegada do marido. Quando o coitado do homem chegou, cansado das durezas do trabalho pesado, e sem saber nada do que estava se passando, quando menos espera se viu atacado pela esposa, numa fúria sexual jamais vista. E foi nesse dia que ela ficou viúva, pois o homem não agüentou tantas exigências e acabou batendo as botas nuzinho da silva, todo suado e alquebrado. Cena triste de se ver, o homem morto, estirado no chão, e a mulher querendo mais sexo de qualquer jeito.
Depois disso numa mais quis experimentar as poções mágicas que fazia. Também ficou sabendo que o prefeito da cidade vizinha havia ficado viúvo, vez que sua digníssima esposa fora encontrada misteriosamente morta, completamente nua dentro de um estábulo. Jurou numa mais fazer aquela garrafada, e realmente cumpriu o prometido. A única coisa que havia dado certo na sua feitiçaria também tinha causado tanto mal. E continuou apenas como uma feiticeira desacreditada, uma bruxa sem poderes, uma vidente cega para o futuro.
E agora estava morta, caída nos fundos da casa, lá pelo quintal. Quis fazer magia para que a tempestade se dissipasse e um raio acertou-lhe em cheio enquanto lamentava sua impotência frente às forças da natureza.


continua...




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sexta-feira, 27 de maio de 2011

MEU BOM KAMIKAZE (Crônica)

MEU BOM KAMIKAZE

Rangel Alves da Costa*


Conheci e fiz grande amizade com uma pessoa que em muitos aspectos parecia um kamikaze. Eu dizia, o alertava para não se meter naquilo que não lhe dizia muito respeito, mas o seu coração bondoso demais, sempre preocupado em pacificar os outros, de repente lhe fazia de vítima daquilo que queria salvar.
Chamava-o de kamikaze pelo seu voo maluco em direção ao praticamente desconhecido, se metendo onde não era chamado apenas para prestar solidariedade, opinar com suas palavras inteligentes, dar conselhos nem sempre ouvidos.
O outro kamikaze, o japonês, era um suicida consciente que ia morrer por um ideal bélico, por amor à pátria nipônica, por ideais de honra tão arraigados na cultura milenar daquele povo dificilmente reconhecedores da derrota.
Mesmo com atos parecidos aos dos pilotos japoneses que se lançavam com seus aviões carregados de explosivos contra os barcos inimigos, meu amigo não agia consciente do suicídio e nem jamais pensou em praticar tamanha loucura. Seus atos de bravura sempre foram para salvar e não destruir a si mesmo nem a ninguém.
Ocorre que a incompreensão o tornou praticamente num verdadeiro suicida. Tamanha era sua preocupação com o bem-estar, a felicidade, a amizade, o amor e a união entre os outros, que se entregava totalmente aos objetivos de fazer juntar o que estava se separando, unir aquilo que se desligava, fazer retornar o amor onde o rancor queria imperar.
Se soubesse que desconhecidos estavam a ponto de terminar uma união conjugal de muitos anos, lá ia ele, como quem não sabia de nada, se metendo no meio dos dois para compreendê-los e fazer tudo para resolver os problemas. Com seu coração grandioso e palavras de grande força, muitas vezes até que conseguiu realizar coisas que pareciam impossíveis, mas na maioria das vezes foi incompreendido e rechaçado como um cão vira-lata que entra numa mansão.
Sem jamais ter experimentado qualquer tipo de entorpecente, cismou de freqüentar redutos de traficantes e viciados para tentar tirá-los daquela vida e mostrar os caminhos bons do mundo sem drogas. Só foi lá duas vezes, pois disseram que se voltasse podia se considerar um homem morto.
Não voltou, mas foi procurar as famílias de dois rapazinhos conhecidos que o acaso os fez encontrar por lá. Dessa vez foram as famílias que o ameaçaram e disseram que se voltasse ali com mentiras iriam prestar queixa na polícia. Nessas encrencas é que se metia.
E eu o chamava para conversar e insistentemente dizia que se preocupasse mais com a própria vida, com os seus escritos, com os seus estudos, com o seu trabalho, com os seus sonhos. E ele concordava com tudo que ouvia e dizia que dali em diante realmente mudaria, procuraria deixar que os outros mesmos resolvessem seus problemas.
Mas não durava muito e lá estava ele novamente sentado nos bancos das praças ao lado dos namorados e falando sobre a importância do namoro, como estes devem se respeitar e sobre a importância do casamento. Não era difícil ser visto apartando brigas de vizinhos, de irmãos, de desconhecidos. Um dia quase foi atingido mortalmente por causa desse costume.
Outro dia, sem querer, descobri que o meu amigo estava passando por sérias necessidades. De tanto se preocupar com os outros, de viver para os outros, perdeu o emprego. As contas todas atrasadas, praticamente não tinha nem do que se alimentar. Sem pretender ser intrometido, perguntei se estava tudo bem e ele disse que não. E o vi chorar pela primeira vez.
Desabafou, mas estranhamente não falou sobre ele. Disse apenas que estava muito triste porque não tinha mais o que tirar da dispensa de casa para dar aos mais pobres. Então perguntei se ele se sentia rico ou pobre.
E não teve jeito, tive que acreditar naquela imensa riqueza em pessoa. E um dia, já fragilizado demais pelas angústias e tristezas dos outros, deu seu último voo. Não foi suicida, mas foi um voo kamikaze.




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Menina, menina (Poesia)

Menina, menina


Perdoo estes meus olhos
porque te procurando sempre
enxergam o que não querem ver
e até apreciam certas faces
pensando que olham você

e andas ao meu redor e tudo
num silêncio de ferir sentimento
desconhecendo o querer que te quer
perfumando esperança com sofrimento
tornando feia a tão bela mulher

menina, menina
a lição de hoje do amor
é que o amanhã pode ser de dor
que sua arrogância não peça favor
a quem ficou porque você passou

menina, menina
a lição de amanhã do amor
é que a semente se abre um dia
aquilo que sem soberba hoje acaricia
terá na mão estendida esta poesia.


Rangel Alves da Costa

TEMPESTADE - 18 (Conto)

TEMPESTADE – 18

Rangel Alves da Costa*


Totalmente embriagada, tentando se manter em pé a todo custo em meio à fúria do tempo, Manuela pendeu com uma rajada de vento e caiu em meio às poças, ao aguaceiro brutal, pois corria levando consigo todo tipo de bagaceira. Somente a intercessão divina para salvar a mãe de Marilda da morte certa e horrenda.
Quem também esteve prestes a cometer uma asneira dessas foi a avó de outro aluno de Suniá, o menino Beto. A velha senhora, com mais de setenta anos e cheia de reumatismos que mal conseguia andar, era mais teimosa do que uma pedra, do que um lajedo inteiro. Pois a danada queria porque queria, mesmo vendo o mundo se acabar por todos os lados, na escuridão chispada de água, ir lá ao galinheiro do quintal contar as galinhas, que era pra ver se todas estavam ali protegidas.
Por três vezes foi arrastada pela mocinha Inácia já quando ia puxando o ferrolho. Pegava o cabo de vassoura para investir na empregada, ameaçava de expulsá-la de lá debaixo da tempestade, esculhambava de tudo que era nome feio. Mas a mocinha, já conhecedora por demais dessas reações amalucadas da patroa, apenas se esforçava para não sorrir de modo que ela percebesse.
Chamava-se Querência a senhora avó do menino Beto. Viúva, com aposentadoria que dava pra sobreviver com folga, além de possuir aplicações em poupança, cujo valor nem ela sabia mais. Por outro lado, era tida como uma verdadeira mão de figa, numa avareza de não acabar mais.
Segundo os vizinhos, uns poucos amigos e familiares, a velha era daquele tipo de cozinhar ovos na chaleira do café que era pra não gastar o gás; só comprava outra sandália quando a que usava já estava imprestável ou Inácia cismava e jogava no mato. Diziam que ela mandava pechinchar quando a empregada ia pagar conta de água e luz. Só podia ser lenda, mas espalhavam que ela emprestava dinheiro a juros a Santo Expedito, que era pra este repassar, também a juros, para os endividados.
Mas com Beto era muito diferente, pois tudo que o único neto quisesse ela disponibilizava sem fazer cara feia, reclamar de preço nem de nada. Tinha e criava o menino com neto e filho, talvez por isso mesmo tanta afeição. A mãe do menino o deixara com ela assim que cismou de ir morar e trabalhar lá pelas bandas do sul. Saiu de casa dizendo que não demorava pra voltar e levar o filho, mas já se haviam passado quase dez anos e nada dela retornar. Nem notícias enviava mais.
Desse modo, consciente que o destino de Beto estava em suas mãos, a avó Querência abraçou essa boa causa com devoção. Mas pela fama de mesquinha que não deixava de ter para certas coisas, colocou o menino pra estudar em escola pública, pois dizia a todo mundo que já ia ter muito gasto com seu sustento. Vendo o esforço e a inteligência do pequenino, voltou atrás e resolveu matriculá-lo numa escola particular, quando já era tarde demais, pois este logo afirmou que não deixaria a escola da professorinha Suniá por nada nessa vida.
Nesse dia, já noite de tempestade, pois desde a tarde que a escuridão era completa, a velha senhora, contudo, não estava preocupada apenas em saber se suas galinhas estavam todas na casinha no quintal, no galinheiro. Queria dar vassouradas na mocinha Inácia porque impedia que ela fosse até lá, mas não durava muito e chamava a menina pra demonstrar seu desassossego porque estava longe do netinho numa situação daquelas.
“Inácia, se ele fala tanto bem dessa professorinha, essa tal de Suniá, então é porque ela deve ser mesmo muito boa com ele. Se ela é assim como penso, então o meu menino deve tá sendo muito bem cuidado e protegido por ela. Mas juro por Deus que dava tudo, tudo não, uma coisinha, se eu pudesse trazer ele de volta daquela escola agora mesmo. Será que ele tá bem, Inácia? Venha cá, e se eu lhe desse um vestido novo você teria coragem de ir até lá buscar ele, minha filha?”, perguntou a avó entristecida, mas não se sabe se pelo neto ou se porque se predispôs a comprar uma roupa nova para presentear.
Mas a empregada respondeu na ponta da língua: “A senhora não tá broca não, tá endoidando, isso sim. Nem por um caminhão carregado de dinheiro eu ia bota meus pés lá fora num tempo desses. Dona Querência, eu sou muito nova ainda, só tenho dezoito anos, e a senhora já quer me ver mortinha da silva, é? Deus me livre ao menos botar a cabeça aí fora, arriscando um raio cair, uma tufada de vento me descangotar. Deus me livre. Mas não se preocupe não que ele está bem. Se o mundo não acabar dessa vez ele voltará são e salvo, pode ter certeza”.
Dona Querência brigava muito com a mocinha, não a deixava em paz mandando que fizesse isso ou aquilo. Fazia isso sempre, porém gostava dela demais. Sentia por ela um amor de filha, tinha vontade de dar roupar novas, sandálias, perfumes, tudo que uma mocinha merece para viver bem arrumada. Um monte de vezes já esteve pra fazer isso, pra chegar perto dela e carinhosamente oferecer isso tudo. Sofria muito por ainda não ter feito ainda nada do que gostaria, mas um dia desses faria, tinha certeza. Mas tinha de ser logo, também sabia.
Inácia era uma flor de menina. Mocinha de dezoito anos, sem gostar de chamego, mesmo que não fossem poucos os apaixonados. De família pobre demais, do que ganhava tomando conta da casa da viúva quase não usufruía um tostão sequer, entregando tudo nas mãos da mãe. Também era pouquinho o ganho, quase nada, nem um salário. Porém não deixava de viver contente por ajudar Dona Querência e principalmente o menino Beto e, acima de tudo, poder freqüentar a escola de alfabetização todas as noites.
Naquela noite não teria aula, talvez ninguém nem estivesse pensando na escola senão em proteger-se, buscar sair daquilo dilúvio ainda com vida. Só não ficava mais alegre com a alfabetização que recebia porque na escola não tinha uma professorinha igual aquela que Betinho, como chamava, falava tanto, era verdadeiramente apaixonado.
Aliás, ela e o neto de Dona Querência eram cúmplices em muitas coisas. Conversavam como dois grandes amigos, sorriam de festejar coração e corpo, numa amizade sincera e devotada. Conhecedor das dificuldades financeiras dela para comprar uma roupinha ou uma chinela, muitas vezes ele mentia pra avó e dizia que estava precisando de dinheiro pra isso ou aquilo. A velha perguntava pra que, dificultava, se fazia de esquecida, mas sempre acabava dando o que ele pedia. E aí ele ia entregar nas mãos da boa amiga, dizendo sempre que ficaria de mal se ela não aceitasse.
Naquela escuridão de lamparina também ela estava com muita saudade dele, também pensando como ele deveria estar àquela, o que deveria estar fazendo, como estaria. E nesse momento quis ser um vento bem forte pra romper todos os outros ventos mais fortes e chegar até onde ele estava, colocá-lo debaixo de uma asa, pois vento também tem asas, e voar com ele protegido para um lugar onde não houvesse nenhum perigo. Ele merecia, ela reconhecia isso, e por isso mesmo deixava cair uma lágrima na face morena.
Estava nesse sofrimento todo, sentada num banquinho na cozinha, na mais completa escuridão ruidosa e barulhenta, quando imaginou estar ouvindo um grito rouco. E estava mesmo. Era Dona Quitéria gritando sufocada, com a mão na altura do peito, implorando o remédio. Estava morrendo.


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quinta-feira, 26 de maio de 2011

“ESTREITA A PORTA E APERTADO O CAMINHO” (Crônica)

“ESTREITA A PORTA E APERTADO O CAMINHO”

Rangel Alves da Costa*


Não quero a largueza de um vão à minha frente nem uma estrada florida no meu percurso, se para encontrar a vida somente preciso de uma porta estreita e de um apertado caminho. Não são apenas palavras bonitas, mas consciência do quanto preciso para minha humanização.
No Evangelho Segundo Mateus está esse norte único e que tanto preciso: “Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçoso o caminho que conduzem à perdição e numerosos são os que por aí entram. Estreita, porém, é a porta e apertado o caminho da vida e raros são os que o encontram” (7,13-14).
Não sei se meu passo consegue encontrar esse norte. Tenho andado feito anjo torto em busca de uma lua cadente, muitas vezes dormindo na lua e acordando no sol. É que às vezes não sei bem onde estou, o que sou nem o que quero ser. Mas sei onde quero ir, para onde preciso seguir. Sei muito bem onde quero chegar.
Quando o sonho bom vai chegando, sinto que vai acontecer, eis que o passarinho me chama com a mesma voz de água corrente. Levanta e vá se banhar de sol e procurar sua estrada. E não tenho o que fazer senão me benzer ao badalar dos sinos da igrejinha e partir.
Meu amor não vai botar comida no fogo pra me esperar, até mesmo porque nunca fez isso. Não há nem amor nem ninguém que me espere retornar, mas sempre retorno porque todo caminho que encontro é muito largo para o meu passo humilde. Quero uma estrada que me deixe apenas passar e isso basta. E nessa estrada um espinho, uma pedra, um cansaço. Não é assim a vida?
Posso bem colocar um pé na frente e outro atrás. Alguém me disse isso um dia, após não conseguir caminhar com os dois pés ao mesmo tempo. Nem adianta correr, nem adiante querer voar. Ora, o lugar que quero encontrar não vai sair de lá. Aliás, já está aqui. Meus pés estão sobre ele, porém o meu coração ainda não o alcançou.
Meu chinelo de couro sempre estranha caminhos enfeitados demais, fáceis demais de andar. Do couro cru que é feito, aprendeu apanhando para saber caminhar, por isso que gosta de seguir pelos espinhos, pois sabe que não haverá traição. Não sei por que, mas em certas flores, plantas exóticas e pétalas sorridentes sempre encontro o espelho de amigos que estão à beira da estrada para amedrontar, perseguir, destruir, pois tudo falsidade naquilo que seria amizade.
Mas são tantos os labirintos e os assombros que existem ladeando essa estrada que nem colocaria um só pé se não tivesse um destino, um desígnio na vida. Se quanto mais difícil é o caminho melhor a chegada, então que os abraços da felicidade me esperem um dia. E dia que já encontrei, destino que já encontrei, a vida que reencontrei. Ora, só falta a minha fé confirmar isso. Alegrai-vos, então, homem de pouca fé!
Por não ser fácil de caminhar pelo verdadeiro caminho, também sei que devo estar pronto para a travessia. Preciso, então, do que para botar no velho alforje de caçador, derramar no cantil amarrotado, jogar por cima dos ombros e do corpo?
Ora, desde cedo aprendi que o homem tem tudo quando sabe o quer. Se quero encontrar a felicidade, a minha vida que me pertence e não está em mim, e sei que tudo isso somente é possível a partir daquilo que quero e que sou, então já sei que não preciso levar nada além do que já tenho no coração.
Tenho no coração uma imensa igreja, uma fé imensurável, uma bíblia aberta no Salmo 22, uma vela acesa, um incenso queimando, um altar do Senhor perfumado. Tenho ainda dentro do coração os meus joelhos que se dobram em oração, uma fervorosa prece, um pedido:
“Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz. Onde houver ódio, que eu leve o amor; Onde houver ofensa, que eu leve o perdão; Onde houver discórdia, que eu leve a união; Onde houver dúvida, que eu leve a fé; Onde houver erro, que eu leve a verdade; Onde houver desespero, que eu leve a esperança; Onde houver tristeza, que eu leve a alegria; Onde houver trevas, que eu leve a luz. Ó Mestre, Fazei que eu procure mais consolar, que ser consolado; compreender, que ser compreendido; amar, que ser amado. Pois é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado, e é morrendo que se vive para a vida eterna”.
Vejo a porta aberta, Senhor, cheguei pelo apertado caminho, mas como é bom, é doce, é canto, encanto, a Ti reencontrar.



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O que é o amor (Poesia)

O que é o amor


Olhe pra mim
deixe-me explicar bem
o que é o amor
o amor é...
é...
é...
é algo assim
assim...
assim quase como
como...
como uma coisa
uma coisa...
algo parecido com
com...
com você
com você
é isso mesmo
você
entendeu bem?


Rangel Alves da Costa

TEMPESTADE - 17 (Conto)

TEMPESTADE – 17

Rangel Alves da Costa*


Manuela, a mãe de Marilda, estava realmente passando por momentos muito difíceis na sua vida. Não pela loucura daquele momento, por ter feito a besteira de sair fora de casa numa calamidade daquelas. Mas por problemas familiares, acumulando-se feito bola de neve desde que se separou do esposo, ou se largaram, como se dizia por lá.
Na verdade, não houve separação alguma. Menandro simplesmente pegou a mala, jogou dentro tudo que tinha e disse que ia embora dali. Saiu que não falou nem com filha, nem se despediu da pequena Marilda. Aproveitou que ela estava na escola e evitou mentir ou dar qualquer tipo de satisfação à menor.
Mentir não podia, pois a esposa já sabia toda motivação pra ele ir embora. Sabia que, safado como era, tinha se enrabichado com outra mais jovem, encontrada pelas mesas dos cabarés, numa cidade vizinha onde estava trabalhando de pedreiro. Estava, no dizer popular, enfeitiçado, cegamente apaixonado, não querendo saber mais da família, mas crente da ilusão com essa nova relação.
E homem quando se apaixona por prostituta só tem três futuros, como os mais antigos proseavam debaixo das sombras do entardecer: abandonar injustificadamente a família construída ao longo do tempo e gastar, bem mais cedo do que imagina, tudo que tem com a outra e depois, merecidamente, receber um chute na bunda, que é pra deixar de ser besta. E isso mais cedo ou mais tarde também aconteceria com ele, tinha certeza Manuela, baseada em conversas com vizinhas e amigas.
Verdade é que o homem foi embora e deixou apenas uns trocados em cima da mesinha da cozinha. Não disse pra onde ia nem se voltava, também não precisava. Ela não podia exigir que ele desse maiores explicações sobre essa conduta nem recriminá-lo pelo que estava fazendo. Se era por gosto, por vontade própria, por encegueiramento, nada poderia impedir. Ademais, se ele queria abandonar mulher e filha assim de hora pra outra, sem pensar nas consequencias da atitude, sem pensar em nada, seria apenas um problema dele arrepender-se depois. Só isso.
Forte como era, com coragem para trabalhar como sempre teve, iria à luta para não deixar que sua filhinha passasse necessidades. Trabalharia lavando roupa, de doméstica, no meio da feira, de diarista, de varredora de rua, na roça, de qualquer coisa. Não tinha vergonha de nada, muito menos para trabalhar, principalmente quando pensava na menina que tinha pra criar.
Contudo, por mais que tivesse pensado no fato, circunstâncias e consequencias, e por isso mesmo não havia ficado tão abalada, o problema é que ela não havia refletido ainda sobre um fator essencial: gostava demais dele, era apaixonada pelo safado, pelo raparigueiro. Por isso mesmo foi que na primeira noite da sua partida, após conversar muito com a filha sobre o ocorrido e confirmado e reafirmado que ficariam bem, saiu lá fora para olhar um pouco o luar e fumar um cigarro e se deu conta que estava à beira de um precipício.
Ali na escuridão enluarada começou a perceber uma coisa que nunca tinha sentido antes, que era o amor demasiadamente sentido pelo esposo ausente. Chorou todas as lágrimas que pôde ali mesmo, evitando o máximo possível que Marilda pudesse perceber. E era como se ele estivesse chegando retornando, brincando com a menina, dizendo qualquer coisa no ouvido dela, exalando o odor da cerveja e da cachaça costumeiras. Que cheirinho bom, sentia, só porque vinha de seu homem, de seu macho.
Ainda estava enxugando mais uma leva de lágrimas quando se lembrou de uma garrafa de aguardente que havia na dispensa da cozinha. Ele sempre mantinha uma ali, dizendo que era o uísque para oferecer a um amigo ou outro que chegasse pra um proseado. E não pensou duas vezes. Entrou em casa, passou pela filha que assistia televisão, e foi diretamente ao local onde estava a cachaça. Como não era de beber muito, tomando apenas uma pequena dose uma vez na vida outra morte, como diziam os de lá, ficou uns dois minutos olhando para o rótulo, depois segurou a garrafa na mão e se dirigiu até o quintal, já com um copo na mão.
Ainda assim não foi fácil tomar o primeiro gole dessa noite. Pensou, sopesou, imaginou. Tinha consciência que beber não era a melhor maneira de esquecer o companheiro, podendo até fazer o efeito inverso. Mas, por outro lado, admirando de novo o luar e sem conseguir esquecer o ingrato, achou que não seria nada demais tomar umas duas doses apenas para alegrar um pouco mais o coração, ficar mais animada, fingir uma felicidade.
De repente a garrafa já estava quase pela metade. Uma, duas doses, depois outra e mais outra, e de repente já estava cantando: “Vi os seus olhos brilhando de tanto amor/ Então resolvi me entregar completamente/ Você se tornou o meu mundo e a mais pura verdade/ Felicidade eu conheci lhe amando loucamente/ Você me ensinou os caminhos do amor verdadeiro/ Tudo que você dizia eu acreditava/ Quase morri no momento em que fiquei sabendo/ Que lhe perdendo para outro eu estava/ Quem será seu outro amor/ Porque me traiu desse jeito/ Vem arrancar essa dor que você colocou/ Dentro do meu peito...”. Realmente gostava de Chico Rey e Paraná, o problema é que já estava bêbada.
Marilda ouviu aquela cantoria toda lá no quintal e foi ver o que era e chegou no momento exato de segurar sua mãe que estava caindo após um tropeço. Depois disso começou a chorar incontidamente. A filha perguntava o que estava se passando com ela, mas era o mesmo que falar com a mangueira ali próxima. E somente depois de muito insistir, de chamar para que entrasse em casa e fosse deitar, é que ela seguiu aos tropeços em direção ao quarto.
Após essa primeira noite a vida da mulher entrou num lamentável declínio, começou a se sustentar numa verdadeira corda bamba. Assim que levantava deixava um pé na realidade e outro ia apressadamente caminhando para a beirada do abismo, para o alcance do precipício, pois não durava muito e tomava outra dose para equilibrar os nervos, para se iludir com um monte de coisas.
Fazia de tudo para esconder essa triste realidade da filha. Mas a menina já quase mocinha era mais inteligente do que a mãe imaginava. Ela via tudo, observava tudo, sentia tudo. O pior é que também compreendia perfeitamente os motivos nessa mudança repentina e autodestrutiva na mãe. Por isso mesmo é que um dia, assim que a mãe levantou, ela foi ao seu encontro e falou:
“Minha mãe, entendo que a senhora esteja sofrendo. Eu também estou sofrendo muito. Mas a verdade é que não vejo motivo algum pra senhora ficar desse jeito. Gosto muito do meu pai, mas se ele quis abandonar a gente e viver com outra, então o que a gente deve fazer é procurar viver pra não sentir falta dele. Desculpe eu dizer, mas eu nem tenho estudado direito porque estou fazendo minha comida, lavando prato, varrendo casa e até lavando minha roupa. Gosto muito de ajudar, mas gostaria de estudar mais um pouquinho. Enquanto tudo isso acontece a senhora fica ali sentada debaixo daquela mangueira com o toca-cassete ligado e parece que não tem mais o que fazer. E essa é a vida que tá levando todo dia. A senhora pensa que não vejo, mas sei onde guarda a garrafa e quanto bebe. Vou pedir à professorinha Suniá pra vim aqui conversar com a senhora...”.
Marilda caiu nos braços da filha num choro de não acabar mais. Prometeu por tudo na vida que dali em diante tudo seria diferente. Porém, bastou que a menina fosse pra escola, logo nesse dia que começou a cair a tempestade, e ela dizer a si mesma que ia tomar apenas um gole. E agora estava caída na frente de casa, com as águas quase encobrindo o seu corpo inteiro.


continua...



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quarta-feira, 25 de maio de 2011

JÁ QUE CHOVE TANTO... (Crônica)

JÁ QUE CHOVE TANTO...

Rangel Alves da Costa*


O tempo andava quente demais, fazendo muito calor, numa quentura de deixar muita gente agoniada, angustiada, sem ânimo pra fazer nada. Temperatura elevada demais tem esse poder de desanimar e ao mesmo tempo deixar as pessoas mais embrutecidas, raivosas, com o sangue exageradamente quente.
Por mais que reclamem das altas temperaturas, muitas pessoas da cidade não gostam quando a chuva vem com vontade. Basta dar uma chuvarada forte e logo começam a reclamar de tudo, que não podem sair, não podem lavar roupa, não podem ir à praia, que a vida fica um transtorno. Sobra sempre para São Pedro, o bom velhinho guardião do chuveiro.
Contudo, em outros lugares essa situação se inverte, pois a chuva é sempre bem vinda e na quantidade que for, mas quanto mais forte melhor. Muito demorada não, apenas forte e constante na medida de molhar bem a terra, fazer os tanques e as barragens se encherem, proporcionar uma paisagem verdejante e cheia de esperanças. É aguaceiro como benção divina.
Lá pelas bandas do sertão é assim, sempre muitas as preces e orações para a chuva chegar e assim que ela bate à porta pra uma visita mais demorada o povo se enche de encantamento e felicidade. Não sabe se vai colher, mas certamente vai plantar; não sabe até quanto tempo vai ter comida e água para os animais, mas mesmo assim só há que pagar promessas.
E nós, aqui dentro dessas paredes, sentindo também com encantamento a chuva que bate no telhado, molha a vidraça e cai lá fora, lavando ruas, espantando as mágoas e as desesperanças, o que vamos fazer agora?
Vamos também plantar, meu amor. Chegou a hora e a terra espera que espalhemos pelos sulcos no nosso jardim tudo aquilo que ainda não tivemos tempo de cultivar. Para o momento, uma semente de flor vermelha para enfeitar o seu cabelo; para mais tarde, flores do campo para enfeitar nossa casa e nossas manhãs; para sempre, uma árvore enorme, de vasto sombreado, que é para nos acolher nas tardes de namoro e beijo.
Vamos lá para o fundo da casa, para o quintal, onde as águas que se derramam pelo telhado e escorrem pelas calhas nos convidam ao banho que há muito tempo não tomamos. Banho de chuva, de chuva pesada, com muita água escorrendo pela cabeça e caindo pelo corpo nos faz crianças novamente, nos faz querer brincar e brincar de amor.
Vamos sair pelas ruas abraçados, cantando, dançando, festejando a festa das nuvens que cai sobre nós. Existem quantos momentos assim, meu amor? Quantas recordações boas nos chegarão nesse bailado molhado, nesse pular de alegria porque somos diferentes e não temos medo da chuva?
E aqueles casais que estiverem em suas casas, ao nos enxergarem pelas janelas também sairão para a festa, para o grande salão da natureza e valsarão como jamais valsaram, cantarão como jamais cantaram, se encharcarão de felicidade como jamais ficaram e a vida ficará em paz, como diriam Jobim e Chico.
Mas vamos ainda deixar a chuva lá fora e nos reencontrar aqui dentro, pois precisamos desse momento para compartilhar com alguns bons amigos que nem sempre nos dão o prazer da visita. Diminua um pouco mais a luz e dê as boas vindas aos dois cálices que chegam acompanhados de um vinho sem rótulo, faça Tchaikovsky derramar um “Andante Cantabile”, talvez uma valsa vienense de Strauss. Se uma nuvem entrar pela sala vamos subir nela ouvindo Enya, com a certeza de uma doce viagem.
Mas ainda é cedo e a chuva continua forte lá fora. Às vezes dá sono tanta chuva assim, por isso mesmo é bom deitar no calorzinho da cama. E não dormir...



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A LÍNGUA É DO POVO E NÃO DA GRAMÁTICA (Artigo)

A LÍNGUA É DO POVO E NÃO DA GRAMÁTICA

Rangel Alves da Costa*


Após o Ministério da Educação recomendar, através do Programa Nacional do Livro Didático para a Educação de Jovens e Adultos (EJA), a publicação e distribuição do livro “Por uma vida melhor”, da coleção Viver, Aprender (editora Global), da professora Heloísa Ramos, defendendo a validade do falar coloquial, com erros de pronúncia, em desacordo com a chamada norma culta, o mundo pareceu que ia desmoronar.
É que os defensores da língua, aqueles mesmos que não sabem nem um terço das exigências lingüísticas para se falar ou escrever corretamente, aparecem na mídia afirmando que é inadmissível ensinar a alunos falar e escrever de modo que não seja culto. Já a autora e o Ministério da Educação defendem o livro com o argumento de que reconhecem as variedades da língua portuguesa e a linguagem dos diversos grupos sociais.
Os doutores da língua, os cultores e impregnados estudiosos que agora se academizam demais, esquecem que o povo não tem culpa de eles terem complicado excessivamente o estudo e aprendizagem da língua. Bem antes disso, há mais de um ano, eu já havia publicado um texto intitulado “Fale assim mesmo!”, onde defendo o falar, ainda que eivado de erros, do povo. Eis parte do que escrevi à época:
“Já imaginaram quantas palavras deixaram de ser ditas simplesmente porque quem deveria pronunciá-las não o fez por medo ou vergonha? Já pensaram quantas mensagens ficaram somente no vão das ideias porque não foram expressadas? Quantas e quantas palavras únicas, frases ou enunciados maiores não saíram da boca porque esta, temendo falar errado, não disse o que deveria?
Até hoje não me conformo com essa frescura de dizer que esta ou aquela pessoa fala errado, não sabe falar direito, tem fala de caipira ou de matuto, não abre a boca pra não tropeçar no português. Linguisticamente falando, não há nada mais preconceituoso do que isso.
Preconceito porque, ao justificar através das normas cultas da língua, nada mais fazem do que esquecer que as palavras, a linguagem e o que se tem como culto na língua nasceram precisamente de palavras despidas de qualquer cobrança relativas a ela; nasceram daquilo que o primitivo dizia e o outro entendia, sem ser bonita ou nada, certa ou errada, mas apenas palavra; nasceram da necessidade dos povos em se expressar e não do convencionalismo para se expressar de determinado modo, porque assim seria mais bonito e sinal de inteligência. Foi a gramática que promoveu essa discriminação toda, e que até hoje tenta erroneamente balizar o que seja um falante inteligente, menos inteligente ou burro, na mais pura expressão do termo.
Ora, se estou com sede pido ou peço um copo dágua, não mato a sede com a hipéborle; se estou com fome vou coisar as panela, cunzinhar quarqué coisa, encher o bucho e pronto, não preciso esmolar na onomatopéia; se estou cansado me aprochego num tamborete, me aderreio numa cadeira ou me amoito na rede, mas não vou descansar na derivação parassintética; se estou enjoado é porque estou imburrado mermo, e não com locução pronominal indefinida. Se os outros entendem o que se fala, onde estará, então, o erro?
O erro deve estar no surgimento da gramática, com o sânscrito de Panini, por volta do séc. IV a.C., ou com os gregos, no séc. V a.C. Pelo seu conceito logo se vê que seria um instrumento para dificultar a liberdade da língua: é a exposição metódica das regras que ensinam a falar e escrever corretamente a língua; é o conjunto de regras, observadas em um ou mais idiomas, relativas aos sons ou fonemas, às formas dos vocábulos e à combinação destes em posições; é um ramo da lingüística que estuda a relação das palavras dentro da frase ou oração. Sintetizando, é o conjunto de regras usadas em uma língua.
Quando a gramática requer para si o poder impositivo de dizer que o que você fala está errado é porque quer limitar a todo custo o poder de expressão que todos possuem. O pior é que até os conceitos gramaticais são difíceis de serem aprendidos e falados. Veja só que inteligência do homem, que criou a etimologia (etimo: origem; logia: estudo) com os seus prefixos, sufixos e radicais, para impor regras gramaticais como: fonética, ortografia, crase, tonicidade, curva melódica, parônimos, hipônimos, hiperônimos, polissemia, neologismo, preposição, conectivo, adjunto adnominal, verbo transitivo direto e indireto, pleonástico, substantivação etc. Quer dizer, criam verdadeiros monstros e querem jogar a culpa em quem apenas quer falar como sabe.
Nem os próprios estudiosos da gramática se entendem sobre a necessidade de se impor isso tudo ao povo. Já imaginaram um estudante do sertão nordestino que chega na escola com fome e a desqualificada professora exige que diga o significado de ósculo, de abnegação ou de circunlóquio? Ou que diga onde está o erro na seguinte frase: Pedro e João está com fome e sede. É, pois, um absurdo que situações como tais possam ocorrer.
Vamos colocar as coisas no seu devido lugar. Se digo nóis vai ali, ela me falou-me, a situação tá pecuária, os bicho vão tudim morrer de fartura de tudo, vou no rio, a gente queríamos, as coisas é assim mermo etc., será que o outro não está entendendo o significado do que quero dizer, o sentido das minhas palavras? Mas não, é burro quem for na cidade, porque o certo é ir à cidade. Ora, santo Deus, se eu sei o quero falar é você, professor ou qualquer outro sabidão, que vai me dizer como eu deva dizer? É preciso respeitar a língua dos outros, pois língua é liberdade, como ensina Luft.
Em Portugal, por exemplo, mesmo após a unificação ortográfica, algumas palavras são escritas de modo diferente do que se observa no Brasil (acto, ato, direcção, direção). Daí se vê que nem mesmo os lingüistas e lexicólogos se entendem. Ademais, outras vezes o que fazem é simplesmente matar certas palavras, colocando-as em desuso, porque assim desejam. Sinhá não existe mais, agora é senhora; moçoila virou sinônimo de coisa feia, agora é adolescente; só matuto diz vosmicê, e nem os doutos usam vossa mercê, pois agora é na base do excelência, do ilustre, do preclaro. Outro dia uma senhora do interior cismou que não estava mais desquitada, simplesmente porque o direito aboliu tal expressão, ou seja, divorciou da língua.
Por essa e por outras, fale sem medo, diga o que quiser e como souber, não tenha medo das suas palavras, não fuja da vontade de expressar o que bem entender. Ora, você não ouviu o que eu disse, pelas palavras que usei não sabe o que pretendo, o que quero, o que desejo? Então por que essa cara, se ouves o que não deveria do seu próprio espelho?”
Na verdade, antes de exigirem o ensino da língua somente a partir da norma culta, deveriam lutar por uma educação de qualidade, que é o primeiro passo para a boa formação cultural do País. Ademais, só pode e deve exigir aquele que também cumpre com suas obrigações. E o Brasil, que não passa de uma capengagem educacional, pode exigir excelência tanto no ensinar como no aprender?




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