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quinta-feira, 26 de maio de 2011

TEMPESTADE - 17 (Conto)

TEMPESTADE – 17

Rangel Alves da Costa*


Manuela, a mãe de Marilda, estava realmente passando por momentos muito difíceis na sua vida. Não pela loucura daquele momento, por ter feito a besteira de sair fora de casa numa calamidade daquelas. Mas por problemas familiares, acumulando-se feito bola de neve desde que se separou do esposo, ou se largaram, como se dizia por lá.
Na verdade, não houve separação alguma. Menandro simplesmente pegou a mala, jogou dentro tudo que tinha e disse que ia embora dali. Saiu que não falou nem com filha, nem se despediu da pequena Marilda. Aproveitou que ela estava na escola e evitou mentir ou dar qualquer tipo de satisfação à menor.
Mentir não podia, pois a esposa já sabia toda motivação pra ele ir embora. Sabia que, safado como era, tinha se enrabichado com outra mais jovem, encontrada pelas mesas dos cabarés, numa cidade vizinha onde estava trabalhando de pedreiro. Estava, no dizer popular, enfeitiçado, cegamente apaixonado, não querendo saber mais da família, mas crente da ilusão com essa nova relação.
E homem quando se apaixona por prostituta só tem três futuros, como os mais antigos proseavam debaixo das sombras do entardecer: abandonar injustificadamente a família construída ao longo do tempo e gastar, bem mais cedo do que imagina, tudo que tem com a outra e depois, merecidamente, receber um chute na bunda, que é pra deixar de ser besta. E isso mais cedo ou mais tarde também aconteceria com ele, tinha certeza Manuela, baseada em conversas com vizinhas e amigas.
Verdade é que o homem foi embora e deixou apenas uns trocados em cima da mesinha da cozinha. Não disse pra onde ia nem se voltava, também não precisava. Ela não podia exigir que ele desse maiores explicações sobre essa conduta nem recriminá-lo pelo que estava fazendo. Se era por gosto, por vontade própria, por encegueiramento, nada poderia impedir. Ademais, se ele queria abandonar mulher e filha assim de hora pra outra, sem pensar nas consequencias da atitude, sem pensar em nada, seria apenas um problema dele arrepender-se depois. Só isso.
Forte como era, com coragem para trabalhar como sempre teve, iria à luta para não deixar que sua filhinha passasse necessidades. Trabalharia lavando roupa, de doméstica, no meio da feira, de diarista, de varredora de rua, na roça, de qualquer coisa. Não tinha vergonha de nada, muito menos para trabalhar, principalmente quando pensava na menina que tinha pra criar.
Contudo, por mais que tivesse pensado no fato, circunstâncias e consequencias, e por isso mesmo não havia ficado tão abalada, o problema é que ela não havia refletido ainda sobre um fator essencial: gostava demais dele, era apaixonada pelo safado, pelo raparigueiro. Por isso mesmo foi que na primeira noite da sua partida, após conversar muito com a filha sobre o ocorrido e confirmado e reafirmado que ficariam bem, saiu lá fora para olhar um pouco o luar e fumar um cigarro e se deu conta que estava à beira de um precipício.
Ali na escuridão enluarada começou a perceber uma coisa que nunca tinha sentido antes, que era o amor demasiadamente sentido pelo esposo ausente. Chorou todas as lágrimas que pôde ali mesmo, evitando o máximo possível que Marilda pudesse perceber. E era como se ele estivesse chegando retornando, brincando com a menina, dizendo qualquer coisa no ouvido dela, exalando o odor da cerveja e da cachaça costumeiras. Que cheirinho bom, sentia, só porque vinha de seu homem, de seu macho.
Ainda estava enxugando mais uma leva de lágrimas quando se lembrou de uma garrafa de aguardente que havia na dispensa da cozinha. Ele sempre mantinha uma ali, dizendo que era o uísque para oferecer a um amigo ou outro que chegasse pra um proseado. E não pensou duas vezes. Entrou em casa, passou pela filha que assistia televisão, e foi diretamente ao local onde estava a cachaça. Como não era de beber muito, tomando apenas uma pequena dose uma vez na vida outra morte, como diziam os de lá, ficou uns dois minutos olhando para o rótulo, depois segurou a garrafa na mão e se dirigiu até o quintal, já com um copo na mão.
Ainda assim não foi fácil tomar o primeiro gole dessa noite. Pensou, sopesou, imaginou. Tinha consciência que beber não era a melhor maneira de esquecer o companheiro, podendo até fazer o efeito inverso. Mas, por outro lado, admirando de novo o luar e sem conseguir esquecer o ingrato, achou que não seria nada demais tomar umas duas doses apenas para alegrar um pouco mais o coração, ficar mais animada, fingir uma felicidade.
De repente a garrafa já estava quase pela metade. Uma, duas doses, depois outra e mais outra, e de repente já estava cantando: “Vi os seus olhos brilhando de tanto amor/ Então resolvi me entregar completamente/ Você se tornou o meu mundo e a mais pura verdade/ Felicidade eu conheci lhe amando loucamente/ Você me ensinou os caminhos do amor verdadeiro/ Tudo que você dizia eu acreditava/ Quase morri no momento em que fiquei sabendo/ Que lhe perdendo para outro eu estava/ Quem será seu outro amor/ Porque me traiu desse jeito/ Vem arrancar essa dor que você colocou/ Dentro do meu peito...”. Realmente gostava de Chico Rey e Paraná, o problema é que já estava bêbada.
Marilda ouviu aquela cantoria toda lá no quintal e foi ver o que era e chegou no momento exato de segurar sua mãe que estava caindo após um tropeço. Depois disso começou a chorar incontidamente. A filha perguntava o que estava se passando com ela, mas era o mesmo que falar com a mangueira ali próxima. E somente depois de muito insistir, de chamar para que entrasse em casa e fosse deitar, é que ela seguiu aos tropeços em direção ao quarto.
Após essa primeira noite a vida da mulher entrou num lamentável declínio, começou a se sustentar numa verdadeira corda bamba. Assim que levantava deixava um pé na realidade e outro ia apressadamente caminhando para a beirada do abismo, para o alcance do precipício, pois não durava muito e tomava outra dose para equilibrar os nervos, para se iludir com um monte de coisas.
Fazia de tudo para esconder essa triste realidade da filha. Mas a menina já quase mocinha era mais inteligente do que a mãe imaginava. Ela via tudo, observava tudo, sentia tudo. O pior é que também compreendia perfeitamente os motivos nessa mudança repentina e autodestrutiva na mãe. Por isso mesmo é que um dia, assim que a mãe levantou, ela foi ao seu encontro e falou:
“Minha mãe, entendo que a senhora esteja sofrendo. Eu também estou sofrendo muito. Mas a verdade é que não vejo motivo algum pra senhora ficar desse jeito. Gosto muito do meu pai, mas se ele quis abandonar a gente e viver com outra, então o que a gente deve fazer é procurar viver pra não sentir falta dele. Desculpe eu dizer, mas eu nem tenho estudado direito porque estou fazendo minha comida, lavando prato, varrendo casa e até lavando minha roupa. Gosto muito de ajudar, mas gostaria de estudar mais um pouquinho. Enquanto tudo isso acontece a senhora fica ali sentada debaixo daquela mangueira com o toca-cassete ligado e parece que não tem mais o que fazer. E essa é a vida que tá levando todo dia. A senhora pensa que não vejo, mas sei onde guarda a garrafa e quanto bebe. Vou pedir à professorinha Suniá pra vim aqui conversar com a senhora...”.
Marilda caiu nos braços da filha num choro de não acabar mais. Prometeu por tudo na vida que dali em diante tudo seria diferente. Porém, bastou que a menina fosse pra escola, logo nesse dia que começou a cair a tempestade, e ela dizer a si mesma que ia tomar apenas um gole. E agora estava caída na frente de casa, com as águas quase encobrindo o seu corpo inteiro.


continua...



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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