SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 23 de maio de 2011

A MENINA QUE NÃO EXISTE

A MENINA QUE NÃO EXISTE

Rangel Alves da Costa*


Conheço uma menina, mas a verdade é que essa menina não existe. Quer dizer, existe, mas não existe.
Quando ela era pequenininha, novinha mesmo, dando os primeiros passos, logo passei a acreditar que aquele pedacinho de gente era pessoa e não era.
Brincava com ela, me encantava vê-la fazendo suas reinações, sorrindo quando a encontrava toda suja e descabelada, com a roupinha mais imunda do mundo, quando instantes atrás a tinha visto toda arrumada e perfumada.
Minhas suspeitas começaram quando percebi que ela parecia muito mais um anjinho do que gente. Não por sua pele ser de uma brancura de nuvem, seus olhos azuis ou esverdeados, cabelos lisos e alourados. Não, nada disso.
Verdade é que ela era doce demais para ser gente, possuidora de um jeito sublime de ser, numa lindeza de encantar os olhos, numa simpatia de alegrar a criação, numa meiguice que me fazia esquecer suas peraltices, suas diabrurinhas de criança, seu jeito malino demais.
E esse jeito de profunda irrequietude, de extrema malinação, muitas vezes de teimosia e de gostar de não dar ouvidos se alguém dissesse que não fizesse isso ou aquilo, só confirmava minhas suspeitas: ela não era ser humano normal, comum.
Bem que poderia ser anjo, pois tinha tudo para ser uma linda querubinzinha alegrando as vidas de pobres terrenos. E anjo porque tinha tudo de um anjinho, ou anjinha se preferir, até mesmo com asinhas que eu tinha certeza que ela escondia tão bem.
Mais tarde, vendo-a crescer e observando se minhas suspeitas continuavam se confirmando, passei a imaginar que ela bem poderia ser outra coisa se não fosse anjo. E essa outra coisa já estava mais próxima da sua aparência, da sua feição, do seu jeito de ser. Eis que passei a cismar que a menina era flor.
E não simplesmente uma flor, mas a flor mais bonita, mais perfumada, mais atraente, verdadeira deusa do jardim. E nela enxergava olhos de suave orvalho, uma cor de manhã, um brilho de sol; pétalas na sua pele, na roupa que vestia, em tudo que usava; pólen em cada palavra, em cada sorriso, por cima dos lábios; primavera envolvendo-a feito uma aura, pois não era gente, eu tinha certeza, mas flor.
No compasso do tempo, a menina que não nasceu, pois apareceu; depois se fez anjo, pois com jeito e feições celestiais; mais tarde se tornou flor, pois o mais belo jardim em um ser; para um dia eu não saber mais o que ela era.
Não era mais anjo criança, não era mais flor menina, e agora era uma coisa totalmente diferente, menos ser gente, e disso eu tinha certeza. E fiquei imaginando o que poderia merecer aquele rosto, aquele olhar, aqueles cabelos, aquele sorriso, aquele corpo.
Somente depois de muito pensar é que fiz uma descoberta surpreendente: ali estava uma verdadeira mulher, mas não desse mundo, mas do mundo onde existe mulher verdadeira. E qual a verdade que pode existir numa mulher?
Silenciosamente me respondi que só existe mulher verdadeira se ela for tão feminina que o mais descuidado olhar enxergue nela a beleza de um ser que, humildemente, queira ser apenas mulher: a beleza daquelas que não precisam de enfeites e adornos para serem admiradas.
Assim, passei a ver na jovem a admirável e sempre surpreendente descoberta da mulher. Surpreendente e difícil porque se engana ter encontrado uma mulher aquele que se contenta apenas com uma aparência física, sem procurar saber se ali também há coração, sentimentos, qualidades da verdadeira mulher.
Mas quase não conseguia vê-la completamente mulher. Não queria acreditar e continuo não acreditando. Não posso acreditar porque quando ela passa faceira só vejo o anjo, só sinto o perfume da flor...



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: