SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 11 de maio de 2011

TEMPESTADE - 2 (Conto)

TEMPESTADE – 2

Rangel Alves da Costa*


Toda a cidade e arredores, nos grotões e descampados onde moradias se juntavam para formar comunidades, nas fazendas, sítios e choupanas nos escondidos, se arrastava pela terra e ia subindo pelo ar uma sensação de espanto e tristeza pela inesperada cor e feição que de repente tomaram conta da tarde.
Panos se desprendiam dos varais e zanzavam pelo ar feito pipas; papelões, plásticos, gravetos, folhagens e toda uma junção de bagaceira dançavam na força do vento e iam sumindo muito adiante; as árvores das praças, ruas e campos chegavam a estremecer, muitas delas sendo agitadas de tal modo que galhos inteiros se desprendiam e se tornavam feito folha pelo espaço.
Torquato estava arando para plantação um pedacinho de terra lá pelas bandas da propriedade de Totonho Marques, o homem mais rico da região, e teve que voltar correndo pra sua casinha nos arredores da cidade assim que o seu chapeu de palha voou da cabeça e seguiu veloz e sem rumo.
Melquíades estava caçando tatu pela caatinga e já assustado com a mudança do tempo, mas quando avistou quase de uma vez só três cágados saindo de suas tocas nem pensou em colocá-los num saco e fazer uma boa venda, foi logo olhando novamente para o alto, se benzendo e saindo em correria, se estropiando todo nos tocos, galhos e pedras, em busca de proteção. Velho caçador, sabia que quando cágado sai repentinamente da toca é porque vem trovoada de acabar com tudo.
Quem estava pelos campos, nas caçadas, trabalhando ao ar livre e até mesmo nos locais onde haviam janelas já havia percebido aquela transformação. Todos que olhavam o horizonte, miravam a barra ou simplesmente tentavam adivinhar o fenômeno a partir do comportamento das nuvens e da cor que se estendia por toda a natureza, logo se mostravam apreensivos, amedrontados, se benzendo, fazendo orações silenciosas.
A velha Otília, tida por todos como uma velha bruxa que se passava por gente, principalmente porque fazia trabalhos de grandeza e destruição por encomenda, preparava paneladas com ervas para os mais diversos fins, dizia ter o poder de fazer encontrar e sumir, amar e desamar, reviver e até matar, estava que era um medo só.
Assim que olhou na água turva da bacia de feitiçaria não teve dúvidas: naquele dia dificilmente se salvaria. E a morte viria pelo ar, na força do vento, se consumando com os pingos grossos de chuvas que cairiam impiedosamente. Abriu a porta dos fundos da tapera, fez alguns traçados pelo chão, se pôs dentro do círculo e ergueu as mãos enquanto pronunciava palavras misteriosas. Mas quanto mais se esforçava na sua magia mais o vento açoitava, mais as árvores gemiam, mais a natureza parecia se revoltar. Por fim, vendo-se na maior fragilidade diante das forças superiores, se pôs de joelhos e começou a chorar.
Na escola municipal, sem ter a mínima ideia do que se passava lá fora, de toda a agonia que tomava conta daqueles que ainda ousavam caminhar pelas ruas, sair à porta ou abrir as janelas, a professorinha comentava exatamente sobre as diversas formas de precipitação das chuvas. Para explicar melhor, fazia uma ligeira explanação sobre conceitos e diferenciações entre temporal, trovoada, tempestade e outras formas anormais de pluviosidade.
E assim dizia: “Primeiro vamos ver o que é chuva. Chuva é um fenômeno meteorológico, consistindo num vapor de água que se forma nas nuvens e cai sobre a terra em forma de gotas. Assim, chuva é a água que cai das nuvens. Além dessa forma que todos vocês conhecem, as chuvas podem se formar nas nuvens com mais intensidade e cair sobre a terra de diversas formas. Quando a chuva vem com mais violência, de modo anormal, dizemos, por exemplo, que houve um temporal, uma tempestade, uma trovoada etc.”.
E logo pediram para que explicasse melhor cada um desses conceitos. Então a professorinha prosseguiu: “Então prestem atenção. Tempestade é um estado climático marcado por ventos fortes, trovoadas, relâmpagos, raios e chuva torrencial, ou seja, chuva bem forte, parecendo incessante e que pode causar grandes estragos e destruições, colocando em risco a vida de pessoas e animais. Já a trovoada, como o nome bem diz, é o grande número de trovões que surgem durante as tempestades, causando muitos estrondos por causa dos relâmpagos que parecem rasgar a atmosfera. Assim, de modo geral a trovoada é a tempestade com raios, relâmpagos e rajadas de vento...”.
“E o temporal professora? Explique o que é o temporal”, lembrou uma aluna. E assim foi feito:
“Então vamos lá. Temporal é a tempestade que cai repentinamente, com chuvas muito fortes e ventos também muito fortes e perigosos. Os temporais costumam alagar rapidamente as ruas e os lugares, enchendo os bueiros, as redes de esgoto e os canais, vez que as chuvas são intensas demais e num período de tempo relativamente curto”.
Sobraram aplausos para a professorinha, sem atinarem, contudo, para o que viria a acontecer dali há instantes. Nem os alunos nem a professora, bem como as beatas que estavam reunidas à portas fechadas com um jovem seminarista na igreja, sequer imaginavam por longe o perigo que os rondava e que seria verdadeiro tormento em suas vidas.
Com efeito, na sede da matriz, como faziam todos os dias a partir das duas da tarde, de seis a oito beatas se reuniam em volta do seminarista Tristão para ouvi-lo extrair qualquer assunto da bíblia e discorrer como tema do dia. Era um momento de aprofundamento do conhecimento religioso e de discussão amigável de tudo o que o jovem extraía da bíblia para analisar e explicar de forma bastante clara.
O tema escolhido para o dia foi exatamente a fúria da natureza perante os relatos bíblicos, até como forma de expressão do poder divino. E eis que o bondoso e paciente doutrinador explicava às senhoras com seus xales e bíblias nas mãos:
“A bíblia está repleta de passagens que falam das manifestações da natureza, através das tempestades, ora como forma de dizer da fragilidade do homem diante da força dos fenômenos ora como o próprio Deus agindo para castigar os humanos nos seus erros. Sem uma ordem lógica, anotei aqui algumas citações que passo a ler:
Em Ezequiel 13,11 lê-se “Dize pois àqueles que põem esse gesso: este muro vai cair. Vai haver um aguaceiro, vai cair saraiva grossa, vai desencadear-se uma tempestade”. O Livro de Jó, 30,22, diz “Arrebatas-me, fazes-me cavalgar o tufão, aniquilas-me na tempestade”.
O Salmo 54,9 presecreve que “Apressar-me-ia em buscar um abrigo contra o vendaval e a tempestade”. Já o Salmo 82,16 afirma que “Persegui-os com a vossa tempestade, apavorai-os com o vosso furacão”. Já em Provérbios 1,27 consta que “... quando vier sobre vós um pânico, como furacão; quando se abater sobre vós a calamidade, como a tempestade; e quando caírem sobre vós tribulação e angústia”.
O Livro da Sabedoria, 4,4, diz que “Ainda que por algum tempo estenda seus ramos, estando instavelmente assentada, será abalada pelo vento e, pela violência da tempestade, será desarraigada”. Já Isaías 10,13 pergunta “Que fareis vós no dia do ajuste de contas, e da tempestade que virá de longe? Junto de quem procurareis auxílio, e onde deixareis vossas riquezas?”.
Porém, minhas irmãs, toda nossa esperança está em Tobias 3,22, ao afirmar que “Porque vós não vos comprazeis em nossa perda: após a tempestade, mandais a bonança; depois das lágrimas e dos gemidos, derramais a alegria”.
E tanto na sala de aula como dentro da igreja, de repente foi como alguma coisa começasse a querer sacudir o telhado, surgindo um barulho ensurdecedor dos trovões e, lá fora, raios cortando os céus. Tiquinho correu assustado para ver o que era e e voltou tremendo para dizer: “Professora, tá tudo escuro lá fora e começou aquilo que a senhora cabou de falar, a tempestade”.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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