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sábado, 7 de maio de 2011

NOVÉJIAS MERICANAS: O TESTAMENTO (Sátira)

NOVÉJIAS MERICANAS: O TESTAMENTO

Rangel Alves da Costa*


A grande matriarca da tradicionalíssima família Ruellas, Consolación Ruellas, estava à beira da morte, talvez mais pela idade do que propriamente por qualquer enfermidade, ainda que tomasse medicamentos contra mais de dez doenças diferentes. Chegavam a dizer que a sua incurável doença era a maldade.
No leito dos moribundos, talvez com aquela lucidez e saúde tão próprias dos que estão se despedindo dos seus, convidou à beira da cama grande parte dos seus familiares e herdeiros para anunciar que suas últimas vontades, com relação aos bens que deixaria para cada um, estavam previstas em testamento.
Tal testamento, segundo a velha matriarca, teria que ser obedecido segundo as disposições ali constantes, sob pena daquele que descumpri-lo perder direito aos bens que lhes foram destinados. E virando-se para o seu neto Augusto João, abrindo bem os olhos e até erguendo um pouco a cabeça, disse com voz firme:
“Vou abrir uma exceção e antecipar logo o que deixei para você, Augusto João Ruellas, para que todos os presentes tenham conhecimento e façam firmemente com que cumpra uma cláusula que tive o cuidado de inserir. Deixei para ele a Estância dos Vinhedos, cinqüenta mil ações no banco e dez barras de ouro, guardadas no mesmo banco. Contudo, consta da cláusula que no dia que ele lançar o olhar para a filha da maldita e infame família Almagro, a também maldita Serena Almagro, terá que restituir toda herança recebida ao testador, que desde já nomeio o seu primo e desafeto Carlos Felipe. Sendo primos e ainda assim inimigos, certamente Carlos Felipe terá o prazer de retomar tudo o que foi destinado a Augusto João, se acaso ele teimar em ainda pensar naquela vagabunda...”.
Foram palavras ditas como se fosse o seu último canto de maldade, prestes a desfalecer. Assim que desse o último suspiro iria para a posteridade dos ricos, que é um lugar onde tudo é falso, pois também comprado. Mas tudo muitíssimo caro. Quando as fortunas acabam eles vão sendo conduzidos para lugares menos indignos, mais dolorosos, tortuosos. Para esse lugar iria a matriarca Consolación Ruellas, achando que se salvaria.
Augusto João respeitou somente o instante em que a bisavô falava, pois no momento seguinte não quis nem saber se aquilo que ia dizer seria demais para a moribunda, se ela suportaria ouvir. E, com voz firme, olhando sem nenhuma piedade para a velha estendida e com os olhos fundos olhando também sua direção, disse:
“Que os diabos a carreguem, bem como sua maldita herança e seu vil testamento, sua velha malvada, impiedosa e cruel. Nem toda sua fortuna me impediria de lutar e ir atrás sempre da mulher que amo. E se a senhora jamais aceitou o fato de o avô dela, o conde Santino Almagro, tê-la um dia abandonado na porta da igreja...”.
E ouve um espanto geral com a revelação, pois até aquela data ninguém sabia desse fato inquietante. “Isso é verdade Carlos Felipe?”, quase todos perguntaram ao mesmo tempo. E o rapaz continuou:
“Tão verdade quanto o meu amor por Serena. E digo mais, se aquele bom homem a abandonou um dia isto é problema exclusivamente seu. Dele eu garanto que não é, pois agiu bem em não casar com uma serpente venenosa igual à senhora. Porque ele acertadamente achou por bem abandoná-la, nem por isso os outros devem ser vítimas do seu ódio. Por isso que amo a neta dele, a linda e sempre maravilhosa Serena Almagro e garanto-lhe, sua cascavel, que um dia estaremos juntos nem que seja para morar debaixo de um pé de pau sombreado. E viveremos melhor do que com essa herança maldita. Pois pegue toda sua riqueza e leve-a junto no seu caixão. Talvez a senhora possa fazer um bom uso dela lá embaixo, no fogo impiedoso, oferecendo joias e valores por um grito a menos...”.
Vendo que a velha senhora estava nervosa, fazendo gestos para falar, o filho mais velho, tio de Carlos Felipe, perguntou antes que lhe desse a palavra: “Isso é verdade mamãe?”.
Então ela respondeu: “É, é tudo verdade. E ainda amo aquele velho ingrato. Mas Carlos Felipe não tem o direito de descobrir isso agora, logo nesse momento de despedida...”. E este acrescentou: “Não só tenho o direito como sei de outras coisas que passaram a ocorrer depois do seu casamento com o trouxa do meu avo. Digo?”.
“Pelo amor de Deus, Carlo Felipe. Fique com sua herança, case com a mulher que você ama, mas não revele isso não!”, conseguia ainda falar, arquejando, cansada, nas últimas mesmo. Então o neto se aproximou um pouco mais e disse:
“Está bem, pode morrer em paz. Vá para onde merecer que ninguém aqui ficará sabendo que a senhora depois de casada voltava sempre para os braços do conde Santino Almagro”.
E os filhos avançaram para esganar a velha. Mas ela já tinha partido.
FIM



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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