SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 30 de setembro de 2013

SOBRE PÁSSAROS E CRUELDADES


Rangel Alves da Costa*


Nada justifica manter pássaros engaiolados, aprisionados, distantes das vastidões de suas moradias. Pássaro nasceu para voar liberto, para cantarolar nas alturas, para revoar ao entardecer e viver sua vida passarinheira como bem desejar. Pássaro nasceu para ter a natureza como moradia e ninho como lugar de repouso.
Pássaro é sinônimo de liberdade; seu voo expressa a possibilidade de caminhos sem limites ou fronteiras; seu canto significa o desvendar da paisagem que adiante avista. Seu pouso logo faz pensar no merecido descanso depois de um itinerário; a construção do seu ninho remete ao lugar seguro e confortável que todos precisam ter, inclusive os humanos.
Daí a certeza que nada justifica dar outro sentido ao viver em liberdade dos passarinhos. Muitos tentam justificar o amor que sentem pelos pequeninos para mantê-los encarcerados, forçando-os a trinar para o deleite de sentimentos inexistentes. Covardia, desumanização, desrespeito à natureza e suas espécies, perda absoluta do senso de liberdade. E que amor é esse que se expressa através da imposição do sofrimento?
Mas parece não ter mesmo jeito. As leis de proteção aos animais de vez em quando são aplicadas e gaiolas e pessoas são apreendidas, viveiros têm seus cadeados forçadamente abertos, criatórios são devidamente lacrados, mas ainda assim persistem as ações criminosas. E isto porque é de grande rentabilidade a comercialização de um pássaro cantador, principalmente se sua espécie está em extinção.
Ainda encontro muitos pássaros engaiolados pelas veredas do meu sertão sergipano. Pergunto a cada um por que mantê-los aprisionados se bastam poucos passos e já estarão na mataria ouvindo seus cantos e presenciando seus voos, mas nunca obtenho uma resposta satisfatória. Também não compreendo por que aumentam a dor dos bichinhos ao levá-los, todas as manhãs, para ser pendurados nas catingueiras ao redor.
Passam caminhando com suas gaiolas e se dirigem para além da cidade, sempre em busca de outros pássaros que estejam passeando ao amanhecer. Penduram suas gaiolas nas galhagens e ali deixam por uma ou duas horas. Dizem apenas que é para que tomem um merecido banho de sol em meio à natureza. Mas sei que não. O objetivo é outro, totalmente diverso e bem mais desumano.
Eis que conduzem os passarinhos até a mata simplesmente para que não entristeçam de vez na gaiola e assim percam todo gosto pela cantoria. Um passarinho triste e silencioso não vale nada, ninguém vai oferecer um tostão por um canário fúnebre, um sabiá melancólico ou um cabeça cabisbaixo e emudecido. E não somente isso, pois intencionam também reanimá-los diante dos companheiros em liberdade. Depois disso se tornam iludidos e cantarolam festivamente nas suas gaiolas. Assim imaginam os criadores.
Mas que coisa mais terrível e brutal. Colocar o pássaro engaiolado diante do outro em liberdade para que aquele, na ilusão do ânimo, da alegria e do voo deste, também faça o mesmo na sua prisão. Quer dizer, observando o canto, o bater asas, a vivacidade daquele que tem o horizonte como portal de tudo, do mesmo modo se anime e gorjeie na sua vida de enclausuramento.
Lamentável que assim aconteça. Ora, só mesmo o insensato e desumano criador para não perceber que tal atitude provoca sentimentos terríveis na pequena ave. Utilizando de uma bizarra ilustração, seria o mesmo que levar prisioneiros engaiolados para tomar banho de sol diante de seus lares. Ao invés de proporcionar alegria e encorajamento, logicamente que provocará uma sensação ainda mais terrível de aprisionamento, de perda da capacidade para a liberdade, de absoluta impotência.
E qual renovação espiritual pode ter um passarinho depois de alguns instantes diante daqueles irmãos que estão usufruindo de tudo o que a natureza possa oferecer, com seus voos, seus ninhos, seus amores, seus frutos, seus grãos, sua liberdade de canto e de repouso? Certamente voltará da natureza ainda mais ferido e triste.
E talvez até cante um canto novo, o mais belo que possa existir. Mas será o último cantar.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

Sonhos, apenas... (Poesia)


Sonhos, apenas...


Os dias são de lembranças
saudades e recordações
as noites são de esperanças
nos sonhos e divagações

pelo dia sigo sua estrada
olho por anda passa e vai
à noite me surge cansada
no sonho de mim não sai

adormece um anjo feliz
amanhece noutro lugar
vai-se a flor fica a raiz
até um novo sonho chegar.



Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 391


Rangel Alves da Costa*


“Antigamente era assim...”.
“Um feudo, um coronel...”.
“Um casarão, um coronel...”.
“Um poder, um coronel...”.
“Uma riqueza, um coronel...”.
“Um voto de cabresto, um coronel...”.
“Um latifúndio, um coronel...”.
“Poder de vida e morte no coronel...”.
“A submissão através do coronel...”.
“A arrogância maior do coronel...”.
“Tudo acima da terra do coronel...”.
“E o coronel gritava...”.
“O coronel ordenava...”.
“O coronel exigia...”.
“O coronel açoitava...”.
“O coronel estuprava...”.
“O coronel ameaçava...”.
“O coronel amedrontava...”.
“Tudo o coronel...”.
“E a voz do coronel...”.
“Chegue aqui cabra da peste...”.
“Encha a arma de bala...”.
“Pegue facão e fuzil...”.
“E faça uma emboscada das grandes...”.
“Uma tocaia sem igual...”.
“Vá no encalço do meu desafeto...”.
“Aquele coronelzinho metido a besta...”.
“Espere ele na estrada...”.
“Bem na curva da passagem...”.
“Mire bem nas suas fuças...”.
“Ou entre os olhos...”.
“Aperte o gatilho e deixe ver fumaçar...”.
“Quero tiro certeiro...”.
“E o desavergonhado estrebuchado no chão...”.
“Sem ter nem tempo de pensar em nada...”.
“Apenas sangrando feito bicho ruim...”.
“E depois chame os urubus...”.
“E também os carcarás...”.
“Para tomar conta do resto...”.
“Quero ver a ossada sem sequer um sinal...”.
“Daquele verme asqueroso...”.
“Então vá agorinha mesmo...”.
“Pegue a estrada e vá fazer o serviço...”.
“E não me volte aqui sem a melhor notícia...”.
“Sem dizer que o outro já foi pros quintos...”.
“Ou é assim ou você já sabe...”.
“Mando o jagunço Jesuíno cuidar de você...”.
“Melhor que não, pois eu mesmo faço isso...”.
“Agora vá, anda...”.
“Mas o jagunço acha de fazer uma pergunta...”.
“E indaga por que quer matar o outro coronel...”.
“E então seu patrão...”.
“Olha raivoso e responde...”.
“Que não tinha motivo pra matar...”.
“Apenas queria matar e pronto...”.
“Que era coronel e tudo podia...”.


Poeta e cronista
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domingo, 29 de setembro de 2013

SOLITÁRIO E SÓ


Rangel Alves da Costa*


Hoje é sábado. Dia de sair, de passear, de rever amigos, de buscar afazeres que façam esquecer um pouco dos tédios acumulados durante a semana. Muitos gostam dos barzinhos, da conversa descontraída acompanhada de uma bebida e algum petisco. Outros preferem os shoppings, a orla praieira ou mesmo viajar.
Já é noite fechada, já passando das sete, e a esta hora os bares estão repletos, as curtições se espalham, as descontrações se alastram. E muitos ainda terão muito a comemorar e fazer no final da noite e varando a madrugada. Apenas imagino que tudo seja e esteja realmente assim, pois me acostumei a viver distante disso tudo.
Mesmo quando mais jovem e quando era apreciador contumaz de cerveja e música de barzinho, jamais fui além do instante certo de voltar pra casa. Nunca esquecendo as horas e adentrando a madrugada de copo à mão e muito menos bailando passos pelos salões. Também nunca dancei. Nunca aprendi a dançar. Nem valsa.
Hoje nem mais cerveja nem música de barzinho. E infelizmente. Infelizmente porque poucas coisas na vida são tão admiráveis quanto bebericar uma cervejinha gelada ouvindo um violão e uma voz cantando alguma velha canção dos meninos do clube da esquina, dos antigos festivais, do nosso autêntico cancioneiro.
Nem mesmo em casa tenho o prazer de saborear um véu de noiva ou um tinto de antiga safra. Haveria de ser assim, então que seja. Hoje tenho de me contentar com repetidas doses de café forte e sem açúcar. A primeira dose por volta das três da manhã, pois antes disso acordo todos os dias. Coloco a água no fogo e depois derramo na pequena xícara com duas colheradas de café solúvel.
Enquanto bebo minha primeira dose de café na madrugada, certamente muitos outros ainda estão de copos cheios pelos bares e ambientes da vida. Enquanto ainda curtem as proezas do final de semana, eis que retomo meus afazeres da noite passada, pois as palavras também cansam e adormecem e precisam repousar. E não demora muito e desperto cada palavra adormecida num verso, numa crônica, num texto qualquer.
E é isso que faço agora. Simplesmente dando continuidade às palavras adormecidas de ontem, numa incansável busca de dar nexo e sentido às situações escritas e reescritas. E assim percorro essa estrada até as dez ou onze da noite, para depois tudo adormecer e recomeçar novamente. Enquanto estou aqui e daqui tomarei o caminho da minha rede de dormir, eis que a vida se faz lá fora e mais adiante com outra vivacidade muito diferente.
Mas jamais trocarei meus instantes noturnos por aqueles outros, ainda que jamais diga a qualquer pessoa que prefira a solidão da escrita, os instantes solitários do texto e do contexto, a sair, beber, brincar, festejar com responsabilidade o que a vida de melhor possa oferecer. E isto porque sei de mim, mas não sei como os outros possam suportar a solidão da noite diante apenas de palavras e pensamentos.
O silêncio ronda pelos arredores. Os finais de semana possuem a proeza de fazer o silêncio ser ouvido. Infelizmente não chove, pois gosto desse momento acompanhado do murmurejar das águas se derramando. Momento único para ouvir Tchaikovsky, Offenbach e tantos outros mestres da música clássica. Por isso ouço apenas o teclado ofegante e os passos da minha mente procurando fugir dos espinhos da estrada.
Solitário e só, assim é a minha noite nessa noite de sábado, como geralmente acontece em todas as noites de todos os outros dias. Fecho a porta atrás de mim e só me permito falar com o que escrevo. Muitas vezes provoco e exijo silêncio total, mas sou confrontado pelas palavras, pelo que foi escrito. Um verso repentinamente grita, um personagem reclama de sua situação na história, outro me chega choroso e diz que já sabe o seu fim: viver esquecido e sufocado nas páginas de um livro numa estante qualquer.
Prometo libertá-lo desde já, retirando-o da história. Mas ele diz que não. Sua sina é ser como o autor: solitário e só.


Poeta e cronista
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Verbo (Poesia)


Verbo


Depois de esperar
chegar
depois de amar
chorar
tanto verbo
a me torturar

depois de acostumar
acabar
depois de esquecer
reencontrar
e tanto verbo
a me torturar

depois de retornar
perder
depois de chorar
sofrer
esquecemos conjugar
o verbo amar

vamos conjugar
amar
vamos aprender
amar
não basta decorar
amar

senão o verbo
vai atormentar.


Rangel Alves da Costa


PALAVRAS SILENCIOSAS – 390


Rangel Alves da Costa*


“Não sei se mundo...”.
“Não sei se hospício...”.
“Não sei se vida...”.
“Não sei se amarras...”.
“Pois tudo loucura...”.
“Tudo insanidade...”.
“Tudo doidice...”.
“Tudo demência...”.
“Tudo maluquice...”.
“Mas não de doentes...”.
“Não daqueles psiquiatricamente insanos...”.
“Não daqueles com distúrbios mentais...”.
“Não daqueles que jogam pedras...”.
“Não daqueles que querem abraçar a lua...”.
“Não daqueles que falam sozinhos...”.
“Não daqueles que se fecham em silêncio...”.
“Não daqueles que conversam com o inexistente...”.
“Mas de outros...”.
“Outros que se dizem normais...”.
“E mais parecem tomados por absurdos...”.
“São os doidos do trânsito...”.
“Os loucos da violência...”.
“Os varridos pela maldade...”.
“Os ensandecidos pelas incoerências...”.
“Os malucos de toda sorte...”.
“Os doidos de toda ordem...”.
“Eis que não é normal...”.
“Não possui comportamento normal...”.
“Não possui plenas faculdades mentais...”.
“Aquele que vitima inocentes...”.
“Que abusam de crianças e adolescentes...”.
“Que destroem lares e famílias...”.
“Que se entregam às drogas e suas consequências...”.
“Que roubam, matam, violam as leis...”.
“Que vivem na ilicitude...”.
“Que premeditam o pior...”.
“Que esquece as boas lições...”.
“Que preferem os caminhos tortuosos...”.
“E também a caneta injusta...”.
“A arbitrariedade pela autoridade...”.
“A corrupção pelo poder...”.
“O mal pela governança...”.
“O pensar que está acima de tudo...”.
“O imaginar que vive acima de todos...”.
“Tudo loucura...”.
“Tudo distúrbio moral...”.
“Tudo desvio ético...”.
“Pois para o louco de verdade...”.
“Aquele que nem se reconhece a si mesmo...”.
“Há a medicina em seu amparo...”.
“Mas para os falsos insanos...”.
“Somente o encarceramento...”.
“A mais vil das masmorras...”.
“Para começar sua cura...”.
“E apenas o começo...”.
“Pois os homens de bem cuidarão do resto...”.


Poeta e cronista
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sábado, 28 de setembro de 2013

A HISTÓRIA DO RAPAZOTE QUE FORÇADAMENTE CONTRAIU MATRIMÔNIO COM UMA JUMENTA (OU UMA HISTÓRIA MAIS ESCABROSA QUE ESSA)


Rangel Alves da Costa*


Nem olhe de banda que aconteceu de verdade. Já faz muito tempo, mas aconteceu. E lá no sertão onde tudo pode acontecer. Inclusive nadica de nada. Coisa do passado, mas até hoje se comenta nas rodas de fim de tarde, nos proseados matutos e nas biroscas em fins de feira, a triste e inusitada história do rapazote que forçadamente contraiu matrimônio com uma jumenta.
Tudo para ser dentro da normalidade daquele costume mais antigo e que se comenta existir até hoje, vez por outra um meninote ou até mesmo homem feito ser surpreendido pelos quintais, nas matarias ou atrás dos tufos escondidos, se roçando cheio de amores no traseiro de jumentinha nova e fogosa. Em diversas ocasiões o dono do animal conseguia o devido flagrante e o animalesco amante corria de calça na mão e se arrebentando por cima de tudo.
Havia o espanto e a vergonha pela conversa espalhada, mas nada de se estranhar que fosse assim. Hoje não, pois a mulherada não está mais tão difícil como antigamente e em cada canto que se vá há um rabo de saia mostrando a calcinha. Antigamente era tudo mais difícil, mais exigente e de dificultosa realização. Somente os velhos e doentios cabarés para salvar a exasperação da rapaziada.
E quando nem brega tinha não havia outro jeito mesmo. Quem pagava o pato era mesmo a jumentinha que pastava despreocupada. E, diga-se de passagem, que também tanto apreciava um carinho por trás. Quando esquece o coice e levanta o rabo, então é certeza de que também já está cheia de desavergonhadas intenções. Já ouvi falar de verdadeiras paixões entre humanos e todo tipo de bicho, e sempre me perguntei quem era o irracional nessa safadeza toda.
O problema é que o rapazote foi dividir sua volúpia logo com a jumenta mais apreciada pelo poderoso senhor. E tal fato, segundo contam até hoje e está registrado em livretos de cordel e nos repentes populares, causou um bafafá tão danado que mexeu com toda a sociedade interiorana de então. Os motivos serão conhecidos mais adiante.  
E assim aconteceu. Já num tempo de quebra do ranço coronelista, mas ainda os grandes latifundiários se mantendo como senhores absolutos das classes empobrecidas e a eles submetidas, existia um senhor de grande poder e riqueza nos sertões nordestinos do deus dará. Dono de terras infindas e boiadas e mais boiadas, mantinha verdadeiro apego aos seus rebanhos e todos os tipos de animais ali existentes.
Tanto gostava do garrote puro sangue como do papagaio falador; a mesma adoração que tinha por seu famoso alazão a tinha com relação ao cachorro. Mas eis que chegou aos seus ouvidos - e certamente fruto das fofocas premeditadas para produzir as mais nefastas consequências - que um rapazote, quase menino ainda, filho de um de seus empregados, havia sido avistado mantendo relação sexual com uma de suas jumentas.
O homem prontamente quis saber qual das jumentas havia sido seduzida pelo rapazote, e começou a soltar fogo pelas fuças quando soube que o conluio safadista havia sido com a jumenta parda, aquela mesma que ele tanta gostava. Não se sabe bem o porquê, mas o mundo quase acaba neste momento, considerando as atitudes tomadas pelo poderoso. Mandou selar seu alazão e subiu num pulo só, seguindo veloz em direção à residência de seu empregado, que ficava ali mesmo nas suas terras.
Pulou do animal e foi entrando birosca adentro e certamente passaria por cima se alguém estivesse no seu caminho. Gritou pelo dono da casa e uma voz foi ouvida lá do quintal. Bastou dizer quem estava ali para que o outro aparecesse num repente. Diante do temido patrão, nervoso e cabisbaixo, o coitado do homem quase dá um treco quando ouviu o inesperado:
Sabia que seu fio ainda nem deixou o cheiro de mijo e já vai casar, e com uma jumenta? Apois fique sabeno que inda hoje ele vai casar com uma jumenta minha que ele deflorou. Percure ele e vão junto até o casarão. O casamento vai ser lá na maiada mermo. Se ele teve a ousadia de bolinar nas vergonha de quem tava quieta, desvirginando a bichinha inocente, entonce agora vai ter todo tempo do mundo pá ficar no bem bom. Nem pense em deixar de ir. Do crontaro já sabe as consequença.
No fim da tarde desse dia o rapazote já estava devidamente casado com a jumenta. E por ordem do patrão, os dois foram devidamente encaminhados para um curral afastado. Mas quando já iam sendo levados à força, eis que o poderoso senhor irrompe em prantos, gritando de não acabar mais e pedindo para que desfizessem tudo e trouxessem aquela jumentinha pra perto dele.
E, talvez tomado pelo inexplicável das estranhas paixões humanas guardadas a sete chaves, acabou confessando que a jumentinha desde algum tempo era sua amante. E que não suportaria ver aquele pelo delicado sendo acariciado por outra criatura. Solteirão, e para espanto e deleite da sociedade conservadora de então, mandou imediatamente providenciar um pequeno reservado com mataria bem ao lado do seu quarto.
E, segundo dizem, foram felizes para sempre.


Poeta e cronista
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Para sempre (Poesia)


Para sempre


Guardo o passado
como livro adorado
relendo o que escrevi
pois nele te conheci

sinto todo o vivido
como um bem acontecido
tudo o que presenciei
pois nele te encontrei

vivo cada momento
como doce alimento
semeando o que virá
pois ao seu lado vou estar

seja ontem ou no futuro
sob a luz ou no escuro
com você a construção
toda grandeza no coração.



Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 389


Rangel Alves da Costa*


“Tanto a fazer para ser feliz...”.
“Num sopro derruba o muro”.
“Num olhar e a fortaleza desaba...”.
“Num passo alcançar o mundo...”.
“Se que a felicidade...”.
“Nada será impossível de ser vencido...”.
“Os lanhos serão curados...”.
“Os espinhos esmagados...”.
“As pedras tornadas em pó...”.
“O vento fazendo a curva...”.
“E as águas voltando pelo mesmo leito...”.
“Difícil é o caminho da felicidade...”.
“Tanta aspereza no desejo...”.
“Tanto sofrimento no pretendido...”.
“E quantas quedas...”.
“Quantos tombos...”.
“Quantos desencorajamentos...”.
“Mas sempre levanta...”.
“Sempre olha adiante e segue...”.
“E que venham os labirintos...”.
“Que venham as curvas da estrada...”.
“Que surja o desconhecido...”.
“Que o medo faça estremecer...”.
“Mas nada mais forte que a vontade...”.
“Se a vitória está adiante...”.
“Então é preciso seguir...”.
“Levar à mão a bandeira da luta...”.
“Levar na mente o desejo de realização...”.
“Levar no passo o objetivo maior...”.
“Mas que caminho distante...”.
“Que estrada infinita...”.
“Muitos se perdem pelas veredas...”.
“Muitos jazem aos sombreados...”.
“Muitos extasiam e voltam...”.
“Muitos lamentam e choram...”.
“Tantos enlouquecem...”.
“Tantos não sabem mais para onde ir...”.
“O que querem adiante...”.
“Ou mesmo o que fazem pela estrada...”.
“Alguns adentram nos labirintos...”.
“Outros se entregam a desconhecidos...”.
“E poucos são aqueles...”.
“Que não se deixam iludir...”.
“Pelas maldades que imperam ao redor...”.
“Pelas influências ruins que vão surgindo...”.
“Pelas falsas promessas que aparecem...”.
“Por isso que a multidão...”.
“Vai se transformando em fila...”.
“Depois em apenas alguns...”.
“E tão poucos continuam seguindo...”.
“E mesmo cansados e famintos...”.
“Feridos e estropiados...”.
“Buscam forças para a fronteira maior...”.
“A um lugar sempre chamado...”.
“Perseverança...”.
“Conquista...”.
“Realização...”.


Poeta e cronista
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sexta-feira, 27 de setembro de 2013

RELICÁRIO


Rangel Alves da Costa*


Minha idade é a idade do tempo. E tempo presente e tempo passado, de agora até onde avisto aquilo que existiu um dia. Mas também tudo aquilo que mesmo não avistado me é trazido pelo conhecimento, pela busca incessante de conhecer e reencontrar o passado.
Por isso mesmo que sou tão novo e tão antigo. E tão próximo e tão distante. Sou de muitas verdades presentes e também de infinitas recordações. Contudo, quanto mais olho pra trás e procuro encontrar um fato ou lição mais me vejo caminhando por estradas ainda mais envelhecidas e empoeiradas.
Tudo me vem num instigante entrelaçamento. Se for atrás de uma linhagem familiar, eis que não me contento com o encontrado e sigo em busca das raízes primeiras; se olho para uma velha fotografia na parede, logo sou levado a querer saber mais sobre a pessoa, seu passado, sua existência, e também seus laços familiares.
Tudo num só percurso. A fuligem de agora, a pó de instantes atrás, a poeira de outros instantes, o grão de outro momento e o que se transformou para que surgisse esse grão. Daí o calcário, daí a rocha, o granito, a pedra. O que foi e no que se transformou, e também as mudanças nas transformações para, enfim, avistar o momento: a fuligem como o que restou da rocha.
Ora, nada mais que espelho da vida. Nada somos senão pelo que nos transformou. Somos apenas a feição de momento de aparências outras, mais antigas e que foram transformadas ao sabor dos dias, da vivência, dos tempos. Por isso que ainda somos tão crianças. E por isso também que somos o que sequer conhecemos, pois fruto de uma gênese maior de raiz a raiz. De lá até aqui, até o momento, é o que somos.
Sou, pois, o agora e o ontem, a impensável distância. Por ser presente e passado, por viver carregando, ainda que imperceptivelmente, as marcas passadas, logo sou eterno pela raiz primeira que me fez brotar. E basta a certeza de ser tão distante e profundo para que jamais me contente em conhecer apenas o que ache que pertença ao meu tempo.
Quero e preciso conhecer tudo. Se quanto mais cavando mais significado possa encontrar na areia, então que eu prossiga sempre adiante, pois não me canso de cavar mais fundo se sei que posso encontrar baús repletos de histórias e vidas guardadas como relíquias. E que belo relicário é aquele que se nos apresenta como fundamento maior da própria existência.
Desse modo, nunca há uma fronteira delimitada para o que preciso encontrar. Não que eu não saiba o que realmente pretendo obter, mas pelo simples fato de jamais me contentar apenas com o que avisto, encontro ou sei. Quero sempre mais. Quero as faces da feição, o verso da aparência, as sombras da imagem, tudo que está ao redor e além, mesmo muito distante.
Assim, o que estou já não é, pois noutro lugar. Onde talvez esteja já está buscando outro lugar. Quando penso ter encontrado tudo, eis que me surgem as indagações e tantas vezes eu tenho de refazer todos os passos. E assim me sinto um baú antigo numa estante nova, uma chave enferrujada numa janela aberta.
E todo o encontrado, seja no baú ou na experiência do instante, cuidadosamente guardo no meu relicário. E são tantas as relíquias, preciosas memórias, raízes ainda presentes, experiências, objetos, escritos e pequeninos acontecimentos cotidianos, que de repente penso não haver mais lugar para o que alcançarei amanhã.
E amanhã o retorno. E depois e depois o olhar voltado ao que existiu agora. Talvez amanhã enxerguemos mais o agora do que o instante vivenciado. Porque nos esquecemos de fazer a hora. E porque gostamos de sentir saudades pelo que de uma forma diferente deveria ser feito.


Poeta e cronista
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Cantiga de meu amor (Poesia)


Cantiga de meu amor


Foi o vento que passou
foi a brisa que soprou
ouvi canto e melodia
e lembrei do meu amor
cantei uma saudade triste
melodia com uma flor
naveguei no meu olhar
em busca do meu amor

a lua brilha entristecida
sabe bem como eu estou
vaga-lume e escuridão
faiscando tanta dor
soluçando a cantiga
mágoa nesse cantador
que grita desesperado
chamando o meu amor.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 388


Rangel Alves da Costa*


“Deus não existe?...”.
“E o ser em você?”.
“Esse sopro, essa vida?”.
“Essa escolha para viver?”.
“Deus não existe?”.
“Já abriu a janela?”.
“Já viu a lua, já viu o sol?”.
“Já bebeu água da fonte?”.
“Já se encantou com a revoada?”.
“Deus na existe?”.
“Olhe para a natureza...”.
“Admire a fauna e a flora...”.
“Sinta a brisa da manhã...”.
“Cante as belezas na paisagem...”.
“Caminhe entre os campos floridos...”.
“Deus não existe?”.
“Então por que invoca o seu nome?”.
“Por que teme pecar?”.
“Por que tem religião?”.
“Por que acredita em santos e anjos?”.
“Por que ora diante do temor?”.
“Por que se benze ao sair e ao chegar?”.
“Deus não existe?”.
“Pergunte a quem tem fé...”.
“Pergunte a quem acredita...”.
“Pergunte a quem foi curado...”.
“Pergunte a quem prega sua lição...”.
“Pergunta ao que tem sede e fome...”.
“Pergunte ao que tem esperança de salvação...”.
“Deus não existe?”.
“E quem permite a graça e a vitória?”.
“Quem dá o dom e a sabedoria...”.
“Quem dá a cura e a salvação...”.
“Quem consola os aflitos...”.
“Quem silenciosamente age para o conforto da alma...”.
“Quem olha e protege o seu filho...”.
“Quem ama a todos indistintamente...”.
“Deus não existe?”.
“E quem o protege do inimigo?”.
“Quem mostra o caminho a ser seguido?”.
“Quem ilumina a escuridão da alma?”.
“Quem perfuma o espírito de felicidade?”.
“Deus não existe?”.
“O que é viver sem ter Deus?”.
“O que é o anoitecer sem falar com Deus?”.
“O que é a manhã sem o diálogo com Deus?”.
“O que será da vida sem Deus?”.
“Deus não existe?”.
“Não importa...”.
“Talvez tanto faça...”.
“Mas ainda assim...”.
“Ele continuará sendo o seu Deus...”.
“Pai, Filho e Irmão...”.
“Pois conhece o dia...”.
“Em que o filho baterá à porta de casa...”.
“E ela se abrirá...”.
“Pelas suas mãos...”.


Poeta e cronista
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quinta-feira, 26 de setembro de 2013

NAS CURVAS DA LINHA RETA


Rangel Alves da Costa*


Com acerto e sabedoria, alguém já disse que por mais que a vida possa ser avistada do começo ao fim, pois um só percurso do nascer ao morrer, a maioria das pessoas insiste em fazer curvas na linha reta. Rompem as barreiras da estrada, transgridem suas fronteiras, ultrapassam as laterais e adentram nas veredas do imprevisível.
Mas nem tanto imprevisível, considerando-se principalmente que muitos conhecem muito bem as consequências nefastas advindas da simples opção de enveredar pelos atalhos mais perigosos. É como se dissesse que não vá por ali e a pessoa seguir adiante; não tente colher daquele fruto podre e o sujeito avançar com afoiteza; implorar para que não entre por determinada senda e o indivíduo se fazer de surdo.
Em situações tais, logicamente que a pessoa será, ela própria, unicamente culpada pelo pior que lhe possa acontecer. Quantas e tantas vezes os pais, com vozes sempre repetidas de pedidos e rogos, imploram para que os seus não façam isso ou aquilo, não andem rondando o perigo nem cometam o erro de ir se arriscar perante o desconhecido. E nem sempre são ouvidos, e quase sempre sofrem injustamente as consequências das ações danosas dos seus.
Depois começam a ecoar as lamentações em torno do caminho espinhento escolhido pelo sujeito. É de boa família, teve uma infância sob os maiores cuidados, nunca lhe faltou nada, tudo tinha para grandes conquistas na vida, mas de repente passou a agir de modo totalmente contrário ao imaginado. E diferente porque deixou de seguir o percurso normal, a estrada que lhe caberia percorrer rumo às melhores e possíveis realizações.
Certamente que a linha reta citada é aquela da vivência comum, na normalidade da vida. Sem antecipar-se aos fatos e sem antever os espinhos que estarão na estrada, pressupõe-se que o ser humano nasce e caminha segundo o delineado como destino até o dia do adeus terreno. E em tal percurso a infância, a adolescência, a idade adulta e a velhice.
Do mesmo modo, certamente que as linhas na curva reta dizem respeito aos atalhos e fugas que a pessoa, por conta própria e risco, se permite adentrar. Quer dizer, tem tudo para viver seu percurso sem trazer para si mesmo surpresas e circunstâncias desagradáveis, porém procura modificar o traçado e incorrer em afoitezas e perigos.
Com efeito, por mais que muitos afirmem que sempre procuram viver zelando pela pureza de seu espírito e alma, cuidando de si mesmos, agindo honestamente, fugindo das armadilhas mundanas e evitando tudo aquilo que seja pernicioso, traga desgostos e contratempos, a verdade é geralmente outra. Eis que agem, e premeditadamente, para transformar a retidão da linha da vida em curvas e precipícios intermináveis.
Na maioria das situações, tem-se como normalidade da vida a convivência pacífica, a semeadura para colher os melhores frutos da sobrevivência, a busca de realizações e conquistas, o esforço para o reconhecimento social através do trabalho. E isto se dá através da honradez, da coragem produtiva, do estudo, da responsabilidade, do elevado esforço para sobreviver com dignidade e paz.
Tais aspectos, que se reconheça, não devem ser vistos como características de apenas alguns, pois todos, indistintamente, nascem com poder de realização e de seguir dignamente pela normalidade da vida, percorrendo aquela linha reta inicialmente citada. Portanto, tanto o pobre como o mais financeiramente aquinhoado, todos possuem as características únicas da existência para usufruir, dentro de suas capacidades, o melhor que a vida possa oferecer.
Contudo, jamais poderá ser admitido como normal que a pessoa pretenda desconstruir a normalidade da estrada e onde haja chão firme e flores do campo e passe a semear ervas daninhas, espalhar pedras pontiagudas e espinhos perfurantes. E também que vá além da margem da estrada em busca de labirintos, precipícios, abismos e outras fendas destruidoras.
Há de se reconhecer, contudo, o quanto difícil é seguir sempre pela linha reta da vida sem que o seu curso seja desafiado. De repente, os próprios labirintos se tornam até mais atraentes que o horizonte seguro. Espelham chamativas ilusões, fantasias, experiências de toda sorte. E muitos, principalmente os mais jovens e inexperientes, cessam a caminhada segura para experimentar as utopias fáceis espelhadas no labirinto. Dificilmente pensam no que pode estar no outro lado, nas sombras da destruição.
Talvez ajam assim porque a caminhada pela linha reta da vida lhes parece previsível demais. E se dizem que estudar, trabalhar, lutar para sobreviver, suar para conquistar, tudo não passa de chatice cotidiana. Havendo novas coisas a fazer, outras situações a experimentar, então nada melhor que arriscar. Pensam assim e logo tomam outro rumo. Ao invés de prosseguir cimentando o futuro, preferem as facilidades do desconhecido. Mas dificilmente conseguem retornar e retomar sua estrada.
Daí que a linha reta da vida, ainda que seja percurso previsível demais para muitos e sem as experiências fulgurantes que as veredas ilusoriamente ofereçam, sempre foi o caminho mais seguro para as grandes realizações. É cansativa, desafiadora, mas um oásis para aqueles que a segue com retidão.


Poeta e cronista
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No seu caminho (Poesia)


No seu caminho


Não sei
o que o sol diz a lua
a cada final de dia
só sei que a lua
enche os olhos
de luz e fulgor

não sei
o que a escuridão
diz ao alvorecer
só sei que a manhã
nasce radiante
e sempre feliz

mas sei
o que acontece comigo
ao cruzar seu caminho
pois sou lua e alvorecer
renovado de esperança
e amor por você.


Rangel Alves da Costa


PALAVRAS SILENCIOSAS – 387


Rangel Alves da Costa*


“Na mata fechada há tanto mistério...”.
“Em cada canto um segredo guardado...”.
“Um silêncio com voz...”.
“Uma voz sem presença...”.
“Uma pedra que anda...”.
“Que fala e que chora...”.
“Uma árvore que voa...”.
“Uma árvore que some...”.
“Catingueira com orquídea no galho...”.
“Girassol por cima do xiquexique...”.
“Tantas lendas e mitos...”.
“Tantas crendices e causos...”.
“O fogo-corredor de cabeça em chamas...”.
“O cavalo espantado pelo juízo queimando...”.
“Seriema que passeia faceira...”.
“Bicho da noite que vem assustar...”.
“Um pio agourento de olhos vermelhos...”.
“Uma rasga-mortalha rasgando a vida...”.
“Mãe da lua triste e choradeira...”.
“Dizem que chora os mortos...”.
“E quem vai morrer...”.
“A fúnebre coruja no seu barulho medonho...”.
“Um som que faz levantar o cabelo...”.
“O fogo-fátuo ao longe...”.
“Tão longe que ninguém avista de perto...”.
“A loca da pedra tão escura e arrepiante...”.
“Morada da bruxa verde...”.
“Morada da bruxa vermelha...”.
“Morada da bruxa sem cor...”.
“E um açoite faz tudo balançar...”.
“O cavalo doido vem derrubando tudo...”.
“O macaco assobia mandando parar...”.
“Pois passarinho está enlutado...”.
“Roubaram seu amor com ninho e tudo...”.
“Ai tantos lamentos soltos...”.
“Ecos dolorosos de uma vida triste...”.
“Sabiá está apaixonado...”.
“O uirapuru enlouqueceu de tanto esperar...”.
“Mataria que geme e barulha...”.
“As folhagens balançam como em ventania...”.
“O caçador geme e chora de tanto apanhar...”.
“Entrou na mata sem pedir licença...”.
“Quis caçar sem ter proteção...”.
“E agora geme com o corpo lanhado...”.
“Apanhou sem saber de quem...”.
“Talvez o caipora...”.
“Talvez a matita-pereira...”.
“Talvez o saci-pererê...”.
“Talvez um encantado qualquer...”.
“Melhor chorar do que ser devorado...”.
“Pela boiúna que surge do nada...”.
“Pela imensa cobra que anda de pulseira...”.
“Mas tudo agora silencioso...”.
“Todo mundo imagina o maior sossego...”.
“Enquanto os encantados preparam o terreno...”.
“Para receber todo aquele que entra na mata...”.
“Sem a permissão da mãe-terra...”.
“Sem a benção da natureza...”.


Poeta e cronista
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quarta-feira, 25 de setembro de 2013

LAMPIÃO E A MÃE DE SANTO


Rangel Alves da Costa*


Dizem que certa época o Capitão Virgulino andava tão desconfiado das coisas do destino que mal falava com seus cabras, comia ou bebia. Passava horas amoitado, pensativo, cabisbaixo, com um aperto danado no coração. Maus pressentimentos, augúrios sombrios, sentimentos de derrocada logo adiante.
O destemido, o homem de todas as guerras sertanejas, de repente estava sendo vencido por batalhas internas. Sempre com crucifixo à mão, e religioso como era, rezava de virar noite, se apagava como nunca aos mistérios divinais. E implorava aos céus para que lhe afastasse do peito e do pensamento tanta coisa melindrosa de se pensar e sentir.
Foi Maria, a Bonita, que procurou resolver aquela difícil situação de seu amado. Encontrou seu Capitão em cima da pedra grande ao entardecer, e após fazer um carinho lamentoso disse - também entristecida de doer no coração de quem avistasse - que achava melhor ele marcar um encontro com o padre do Juazeiro, o Padim Ciço. Suas palavras talvez tivessem o dom de acalmar e fortalecer aquele espírito sofredor.
Lampião prontamente acatou a ideia de sua Maria. Até esboçou um leve sorriso, gesto que não expressava desde semanas. No instante seguinte e já estava escrevendo carta a ser enviada com urgência ao milagreiro do Juazeiro. Na missiva, embora curta e objetiva, dizia que não andava com o coração em compasso com sua lide, mais temeroso do que nunca, tendo pensamentos ruins, e por isso mesmo precisava muito ter uma conversa com aquele que certamente faria retornar as forças num homem atormentado.
Quando a missiva chegou às mãos do Padim Ciço, que estava bebericando um cálice de vinho, este sentiu a mão tremular tanto que não pôde evitar que o cristal se espatifasse pelo chão. O milagreiro não gostava de ver vinho derramado a seus pés, sentia como mau presságio, como aviso de acontecimento ruim. E aquela carta do Capitão então piorava ainda mais a situação.
Nervosamente abriu a missiva, leu-a com a avidez dos desesperados, para, enfim, recobrar a calma com outro cálice de antiga safra. Sentiu o aroma da bebida, levou-a aos lábios e depois sorriu, dizendo a si mesmo: Vou ter que revelar ao danado do cangaceiro o que faço às escondidas, sem ninguém jamais duvidar que isso pudesse acontecer. Certamente servirá pra ele evitar o pior na sua caminhada. Faço isso porque sei que ainda vou precisar muito de suas armas, de sua sangrenta valentia.
E em seguida passou a escrever a resposta. E resposta também curta, mas dizendo tudo o que o Capitão precisava fazer, e com urgência. Depois selou a missiva com sinal sagrado e entregou ao mesmo portador. E na carta dizia, entre outras considerações, as seguintes:
“Venerado Lampião, que Deus seja louvado no céu e o grande Capitão aqui na terra. Que suas apreensões e temores desapareçam como os inimigos no fogo de sua arma. Mas afirmo que não tenho poderes para, com um simples encontro de aconselhamento, mudar nada do que pressente como negativo no seu destino. Tenho mais poderes políticos do que divinos, e que isto não chegue aos meus fiéis, e também fanáticos eleitores. Mas aconselho a fazer o que faço quando me sinto apequenado, com sensação de que os inimigos políticos estão fazendo perseguições além das devidas. E nestes momentos o que faço é procurar Mãe Cabocla de Oxolufá, a mãe de santo mais famosa dessa região do Cariri. Basta adentrar no seu terreiro de candomblé que a velha senhora faz descer seus orixás para afastar do seu corpo tudo de ruim que esteja lhe perseguindo. Como diz o ditado cunhado pelo seu bando, é tiro e queda. Abaixo mando endereço e outras ordenações”.
Mesmo um tanto desapontado, pois do Padim Ciço esperava apenas a confirmação do encontro entre os dois, Lampião decidiu que partiria, juntamente com sua Maria e mais dois cabras, em secreta viagem até o local onde a dita mãe de santo atendia no seu terreiro. E disse a si mesmo que não era nada demais se avistar com uma yalorixá e, através dela, os orixás. Quem sabe se naquela manifestação religiosa não estava uma porta para acabar de vez com as tantas apreensões que lhe perseguiam.
Chegando ao local indicado na missiva do padre do Juazeiro, não demorou muito e alcançou o terreiro da Mãe Cabocla de Oxulufá, que na região era conhecida por roça. Contudo, ao se fazer anunciar, o que se viu daí em diante foi uma verdadeira danação. O atendente da porteira, após esbugalhar os olhos pelo nome ouvido, correu desembestado mata adentro. Duas filhas de santo desmaiaram no mesmo instante que souberam de quem se tratava.
Como não havia quem os mandasse entrar, então Lampião e seu pequeno grupo foram cortando passo pelo terreiro. De um lado um barracão e de outro uma casa grande com alpendre. Desta saíram pessoas para saber quem chegava assim de modo tão afoito, sem prévio anúncio e sem permissão de Mãe Cabocla. Porém, antes que estas fizessem qualquer pergunta, uma voz ecoou lá de dentro: É o Capitão Lampião. Abram passagem, deixem entrar.
Mas nem precisava dizer para abrir passagem, para deixá-los entrar, pois o nome do maior dos cangaceiros surtiu um efeito inacreditável. Duas mulheres e um homem pareceram tomados por estranhas manifestações corporais, que não só os faziam revirar os olhos e se contorcer freneticamente como correr ao mesmo tempo, derrubando tudo que encontrassem pela frente. Sumiram no meio do mundo que a poeira levantava em profusão.
Ouvindo a barulheira, em seguida foi a vez da mãe de santo aparecer diante do Capitão. Portentosa, paramentada segundo seu culto, mostrava imponência e uma misteriosa beleza. Vamos ali pro outro lado, pro barracão. Foi o que disse. Deixando Maria e os outros cabras na casa, apenas os dois seguiram para a moradia dos orixás. Era ali no barracão que ela recebia convidados importantes, como tantas vezes aconteceu com o padre do Juazeiro.
Contudo, assim que colocou os pés no ambiente, a velha yalorixá estremeceu dos pés à cabeça, franziu o cenho, parecia fora de si. Curvou-se de lado a outro, recobrou as forças e disse ao Capitão tomado de espanto: Algo muito estranho está acontecendo com os orixás. Querem me jogar pra fora do barracão a todo custo. E tudo por causa de você, Lampião. Só resta agora implorar para que algum se apresente e diga como resolver sua situação. Mas o que é que tanto aflige o Capitão?
Quando o cangaceiro contou dos pressentimentos ruins e perguntou se tudo aquilo era sinal de funesto acontecimento, a mãe de santo foi logo dizendo: O Capitão é homem que não deve temer a nada. É só o vento mau que traz pensamento ruim. Sei bem do quanto é capaz de vencer a tudo e a todos. É verdade é ou não, Lampião? E ele falou na bucha: Comigo é na espoleta, no chumbo, na bala, na faca e no punhal, e quem se mostrar intriguento demais ainda sangro todinho vivo.
Nem terminou tais palavras e se ouviu um barulho tão grande que quase o barracão desaba, e em seguida um som de correria e de mata se abrindo em alvoroço. Valei-me Yxulá Boncoxá, valei-me Infó Gulamê, valei-me que meus orixás correram com medo do homem. Foi o que disse a espantada Yalorixá, levando as mãos à cabeça.
Mas em seguida se voltou para Lampião e afirmou: Se até os orixás temem o Capitão, se metem no oco do mundo pela sua presença, então provado tá que nada há de afligir sua caminhada. Seu problema tá resolvido, em nome dos orixás!


Poeta e cronista
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Caderno de solidão (Poesia)


Caderno de solidão


Nunca mais fui sertão
escrevi no meu caderno
um diário de solidão
de página a página sertão

trouxe o velho alforje
e cantil cheio de lágrimas
a terra entre os meus dedos
e uma tristeza pranteada
desde a curva da estrada
e nunca mais meu sertão
nunca mais a imensidão
nunca mais brilhei suor
esturriquei a lágrima
embruteci faminto
nem chorei sedento
porque nunca mais
me fiz sol ensolarado
e negrume enluarado
como no meu sertão
que nunca mais em mim

nunca mais nada em mim
senão saudade do sertão
caderno de velha lição
dizendo que a vida dói
na distância que corrói
desejando chão e espinho
ao mundo feio urbano
entre tantos e sozinho.


Rangel Alves da Costa


PALAVRAS SILENCIOSAS – 386


Rangel Alves da Costa*


“Canto a noite triste...”.
“Canto a noite alegre...”.
“Canto qualquer noite...”.
“Porque cantiga de coração...”.
“E coração fiel ao luar...”.
“À brisa que sopra...”.
“Ao vaga-lume adiante...”.
“E no coração iluminado...”.
“Uma saudade tamanha...”.
“Menor apenas que o amor sentido...”.
“Por isso canto...”.
“Canto o silêncio da noite...”.
“Canto o murmurejar da escuridão...”.
“E os seus medos e mistérios...”.
“E os seus labirintos e encontros...”.
“Porque também procuro...”.
“Reencontrar o meu amor...”.
“No silêncio e no sussurro...”.
“Pois amigo do mistério...”.
“É o meu imenso amor...”.
“Por isso canto...”.
“Canto a voz do vento...”.
“Canto o grito e a mudez do vento...”.
“Pois sei que ele vem de longe...”.
“E traz um perfume...”.
“Traz um aroma e um retrato...”.
“E talvez um bilhete...”.
“Com duas ou três linhas apenas...”.
“Mas dizendo bastante...”.
“Para o meu coração se alegrar...”.
“E cantar na noite...”.
“Ser a melodia na escuridão...”.
“Pois não há amor mais fiel...”.
“Que o do próprio coração...”.
“Por isso canto...”.
“Canto a saudade e a recordação...”.
“Canto retrato e fotografia...”.
“Canto a presença na longa distância...”.
“Canto o abraço tão forte...”.
“Como se outro corpo...”.
“Do meu se apossasse...”.
“E toda essa cantiga e canto...”.
“Com nome e sobrenome...”.
“Com face e feição...”.
“Com passo e caminhada...”.
“Com olhar e sorriso...”.
“Em tudo você...”.
“Por isso canto...”.
“E mil vezes canto...”.
“Ecoaria o canto tão belo...”.
“A doce melodia da felicidade...”.
“Pois mesmo tão distante...”.
“O amor deve ser cantado...”.
“Porque a noite e a natureza...”.
“A lua e a estrela...”.
“O vaga-lume e o vento...”.
“Precisam conhecer como se expressa...”.
“Um amor demais...”.


Poeta e cronista
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terça-feira, 24 de setembro de 2013

AIÓ, ALFORJE E EMBORNAL


Rangel Alves da Costa*


Não adianta pretender esquecer ou mudar. A bolsa de viagem, de caçada ou de trabalho do sertanejo sempre foi e sempre será o aió, o alforje e o embornal. Não do sertanejo tomado pelos modismos recentes e suas sacolas, pastas e mochilas requintadas, mas sim daquele que tem sua bolsa encourada e tingida de sol e suor como verdadeiro instrumento de trabalho.
Com destino à mente, ou mesmo diante de um fato inesperado e urgente, lá se vai o caboclo lançando mão de sua companheira de viagem. Envelhecida, carcomida pelo tempo, já de cor muito além do barro queimado, mas sempre firme nas suas costuras e fechamentos. Ou ainda de cipó trançado com maestria artesanal, cujo tempo vai amolecendo as tiras e nós, mas sem diminuir sua resistência.
Quando produzidas em larga escala e comercializadas pelos quatro cantos, tais mochilas sertanejas possuem a mesma serventia para o viajante, mas não a mesma durabilidade. Esta só é conseguida quando cada peça é feita artesanalmente, uma a uma, na dureza dos dias, manualmente cortadas, costuradas ou enlaçadas, segredos maiores do velho coureiro ou do enlaçador de cipós.
Depois de dias e mais dias, assim que o velho artesão dá como pronta sua encomenda, a primeira coisa que se observa é o cheiro forte no alforje ou no embornal. Aliás, todo instrumento de couro exala um cheiro intenso quando novo. Precisa, pois, ser batizado pelo sol, receber uns solavancos e sofrer as mesmas agruras sofridas pelo homem. Depois disso fica macio, de cor envernizada, humilde e singelo como o filho da terra onde terá serventia.
O mesmo ocorre com o aió, mas não pelo cheiro, e sim pelo trabalho que dá. Feito de caroá, uma planta da família das bromélias, vai surgindo do cuidadoso trabalho do artesão para cortar as folhas, retirar toda a pele e ir repuxando as longas e resistentes fibras. Quando isoladas das folhas, as fibras passam a se assemelhar muito mais a fiapos esbranquiçados, que unidos vão formando verdadeiros cordames. Do entrelaçamento dessas cordas finas é que vai surgindo o aió.
Sempre colocado num armador do canto da casa, de modo a ser logo alcançado quando já próximo da saída para o afazer cotidiano, o aió, o alforje ou o embornal passa a ter quase a mesma utilidade daqueles tão conhecidos instrumentos sertanejos. Presente no homem como o gibão, o chapéu de couro, a perneira, a taca de couro cru, a sela, o cantil. E assume tanta importância porque dentro dele estará tudo que necessitar nas horas que a fome apertar ou quiser lançar mão de um cigarro de palha, de uma espoleta ou de qualquer outra coisa de pequeno porte.  
Por mais que chamem de embornal aquela sacola de muitos bolsos e trancas que os jovens de hoje andam carregando às costas, geralmente de pano ou sintética, em nada se parece com aquele outro, obra artesanal e autenticamente sertaneja. Este é traçado no couro curtido debaixo do sol, com enfeites à moda cangaceira ou não e feito para a eternidade. Embornais passam de geração a geração e, além da história familiar, continuam carregando dentro de si as necessidades dos novos tempos.   
Tanto o aió como embornal e o alforje surgiram da necessidade de o sertanejo obter mais facilidade de alcance daqueles objetos de menor porte que faziam parte do seu cotidiano além da moradia. Por mais que levasse consigo a cartucheira, o cantil, o canivete de cinta, precisava de uma bolsa que fosse espaçosa e resistente para as durezas da lide. Bastava arrumar lá dentro a carne seca com farinha, o fumo e a garrafa de pinga, o frasco com espoleta e tudo que fosse de serventia, deitar nas costas ou no lombo do animal e seguir adiante.
Luiz Gonzaga, na música “Pau de Arara” fala de outro objeto dessa mesma família sertaneja: o matulão. Um pouco maior que os citados, a serventia desse utilitário de retirantes é descrita com precisão: “Quando eu vim do sertão, seu moço, do meu Bodocó/ A maleta era um saco e o cadeado era um nó/ Só trazia a coragem e a cara, viajando num pau de arara/ Eu penei, mas aqui cheguei/ Trouxe um triângulo no matulão/ Trouxe um gonguê no matulão/ Trouxe um zabumba dentro do matulão/ Xote, maracatu e baião, tudo isso eu trouxe no meu matulão...”.


Poeta e cronista
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