Rangel Alves da
Costa*
A vida e o
cotidiano do povo sertanejo possuem uma significação verdadeiramente difícil de
ser explicada ao citadino. Dificilmente o sulista irá compreender porque ações
tão simples, tão corriqueiras e desprovidas de intencionalidades outras, se
tornam na essencialidade da existência de um povo.
Desde o
anoitecer ao amanhecer, no percurso do dia e em quase tudo que se faça, o
sertanejo vai juntando pedacinhos de coisas, juntando pequenas ações,
costurando o simples com a simplicidade, até formar a grande colcha de sua
existência. E bordada com as maiores significações. Seja na fé, no alimento, na
religiosidade, no fazer cotidiano mais simples, em tudo um jeito diferenciado
de graciosa realização.
O preparo
de um simples café exige um percurso de adoração. Aprontar o pilão, despejar os
grãos, bater demoradamente, ver tudo esfarelado e sentir o negrume do pó depois
de peneirado. Ajeitar o fogão de lenha, providenciar o bule, despejar a
quantidade certa de água, levar ao fogo por cima do braseiro em chamas.
Derramar o pó, mexer, tampar e esperar a fervura. Não demora muito e a moradia
e arredores já estão tomados pelo melado negro e aromatizado do saboroso café.
E depois é só agradecer a Deus pela dádiva daquele incomparável saborear.
A gestação
de um autêntico cuscuz de milho ralado se assemelha a um ato de fé. Primeiro
escolher o milho, preferindo as espigas que estejam entre o verdor e a secura,
de modo que os caroços não se transformem em papa. Depois colocar o ralo em
cima do banquinho apropriado e então começar o vai e vem com a espiga, sentindo
que o farelo amarelado vai se juntando abaixo do ralo. Quando o milho ralado já
é suficiente para encher um cuscuzeiro grande, então tudo é cuidadosamente
colocado no utensílio, coberto com pano limpo e colocado no fogão de lenha. Uns
cinco minutos depois e uma névoa cheirosa desponta do pano, vai subindo pelos
ares e toda a vizinhança fica sabendo que ali vai ser apreciada comida sem
igual no sertão.
O cuscuz
de milho ralado fica melhor ainda se for acompanhado de ovos de galinha de
capoeira. Não há nada melhor no mundo, segundo afirmam meus conterrâneos. E
tenho prova disso, pois várias vezes já repeti o prato e ainda fiquei com uma
vontade danada. Gulodice sim, mas justificada, e pelas razões já expostas. Mas
até o preparo dos ovos exige um procedimento todo especial. Ovos de galinha de
quintal, de capoeira, dos terrenos pelos arredores. Logo cedinho dá-se o seu
recolhimento e a colocação das preciosidades numa cesta acima da mesa da
cozinha, e próximo às panelas, pois sempre mais fácil lançar mão de dois ou
três quando na presença de cuscuz, de feijão de corda verde ou de macaxeira ou
inhame.
Também não
é raro o preparo de doces, cocadas e outras guloseimas deliciosas. Tudo
parecendo abençoado pelos deuses sertanejos, pois inegável a festa dos olhos
diante daquelas cores e sabores. Doce de leite com bola, deixando o leite
açucarado, temperado com cravo da índia e cascas de limão, ferver à vontade.
Pela quantidade de ovos é que se tem o tamanho das bolas. Quando as nuvens
açucaradas tomam um amarelo mais forte e a calda engrossa, então já está no
ponto, como se diz por lá. O doce de coco, talvez por ser muito trabalhoso,
pois exige não só o coco ralado como também leite de vaca e até ovos, acaba
valorizado e apreciado mais ainda.
Sem falar
na verdadeira trabalheira que dá o preparo da cocada de frade, pois exige não
só a retirada de todos aqueles espinhos, a remoção da casca grossa verdosa até
a obtenção da polpa esbranquiçada, para somente depois proceder como uma cocada
normal, inclusive com seus ingredientes. E ainda os bolos, o queijo de coalho,
a coalhada, o melão do mato batido no garfo. E que Deus grandioso esse Deus
sertanejo, que colocou a maestria no preparo dos melhores pratos naquelas mãos
rudes e tão sábias.
Quem
quiser comprovar o que digo faça o favor de ir até o sertão e procurar saber em
qual cozinha está sendo preparado um sarapatel, uma buchada, uma feijoada
matuta, uma carne assada, um cozido com verdura, uma galinha caipira, um capão
de mulher parida. Infelizmente não há mais cozinheiras de feira como Jarde de
João Lameu. Duvido alguém preparar uma panelada de fígado ou de carne de gado
como ela fazia. Logo cedinho, com tudo fresquinho, e o seu pequeno ambiente já
tomado de sertanejos se empanturrando com tantas fervuras encantadoras.
Contudo,
não há rotina mais fascinante que aquela onde toda a fé sertaneja é
demonstrada. O benzimento na chegada e na saída, o respeito pelos retratos
santos logo à entrada da casa, o coração comovido e devotado diante do
oratório, o pequeno livreto santo aberto em cima de um móvel, as fitas dos santos
e imagens sacras guardando os ambientes. A fé e a religiosidade desde o
primeiro instante do dia, as preces e orações, a divina gratidão por tudo que a
vida oferece. Somente o sertanejo para ser assim, grato e devotado demais até
mesmo no sofrimento, pois a crença que o dia seguinte será sempre melhor.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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