SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 5 de setembro de 2013

UM PÔR DO SOL EM KANTARA


Rangel Alves da Costa*


Kantara está localizado em algum lugar, mas talvez também não exista em lugar algum. Mas lá, existente ou não, há um pôr do sol inigualável, e por diversos motivos.
Estranho que seja assim, pois o sol que se põe em Kantara é exatamente igual aos mais belos sóis quando adormecem. Depois da tarde, quando chega o entardecer e a brisa suave começa a soprar um pouco mais forte, e então no horizonte se descortina o encantamento.
Feito um laranjal ao longo da frutificação, o sol amarelo vai tomando uma cor de laranja madura, da cor da terra e do bronze, para em seguida afoguear e soltar suas labaredas por entre as nuvens. Que belo fogo no sol de Kantara!
As labaredas afogueadas servem como moldura a uma indescritível paisagem. As nuvens se movem em diversos matizes, do dourado ao vermelho sangue, até tudo ser tomado por uma bola de fogo engolindo a última revoada do dia. E tudo vai ficando distante, numa viagem que o olhar comovido não resiste de seguir.
Todo este cenário, num misto de arte e transformação, somente é possível em Kantara. Por isso mesmo que o seu pôr do sol vai além de uma mudança de astros, de uma despedida da luz solar e a chegada dos primeiros sinais da noite, para se transformar numa página de encantamento, reflexão e pulsação espiritual.
Somente Kantara para possuir tal portal ao entardecer. Pelas areias de suas praias, no cais de chegada e partida, em cima de montes e montanhas, nas solitárias e silenciosas campinas, numa janela qualquer defronte à natureza, seja em qualquer lugar, tudo leva ao instante maior da magia do seu pôr do sol.
Somente o fim de tarde em Kantara para que todos os sentimentos escondidos ou adormecidos sejam revelados ou aflorados. Vem a saudade boa, chega a terna lembrança, surgem as doces recordações de feições e momentos, de encontros e compartilhamentos.
E também outras memórias, faces tão insistentes nestes momentos de pôr do sol. Por mais que se queira viver apenas o encantamento e a magia do momento, impossível fugir dos olhares internos que chegam ao pensamento como sentenças de aflição e angústia.
É próprio do pôr do sol, principalmente no entardecer de Kantara, que tudo aconteça assim. O olhar sorridente, a mente esvoaçante, o coração tomado de contentamento, e de repente tudo mudando de cor como a própria paisagem adiante. A tristeza, a saudade dolorosa, o retrato angustiante, tudo isso também faz parte da moldura daquele pôr do sol.
De onde a pessoa está, de onde lança seu olhar para a fogueira no horizonte, tudo ao redor parece também tomado por aquelas cores avermelhadas, abrasadas, de lava escorrendo entre as nuvens. As pastagens, as montanhas, as pedreiras, as estradas e curvas, os arvoredos solitários, tudo também tomado por aquele fogo sonolento e inebriante.
Sonolento porque já resto do dia, entorpecido porque o sol já com suas últimas forças para partir, tudo em calmaria porque as ondas açoitantes da tarde já se recolhendo para o silêncio das sombras da noite que logo virão. No último esforço de existência, aquelas veias do entardecer jorrando seu sangue por detrás das montanhas, além da linha do horizonte.
O pôr do sol em Kantara também é verso e poesia, é escrita íntima e sentimental; folheia álbum de antigas fotografias, avista cartas amareladas pelo tempo, reencontra imagens escondidas atrás dos vitrais da memória. Naquele instante todo ser é poeta e cantador, é um leitor do próprio passado.
Em Kantara, nas tardes de pôr de sol, também já sorri e chorei, já voei e pousei no mesmo galho frágil do pensamento. E ali também já abri meus braços e orei como se estivesse diante do templo maior da fé e perante de um Deus maravilhoso e só meu. Eis que Kantara também é templo e paraíso.
Mas não sei bem onde fica Kantara. Não sei se é muito longe ou muito perto, se é aqui ou ali. Talvez esteja em qualquer onde meus sentimentos se elevem ao pôr do sol. Talvez esteja em Poço Redondo, na minha janela de agora ou no seu olhar.
Talvez esteja mesmo no seu olhar. Por isso me perco em viagem a partir do seu cais e retorno sempre que a brandura dos seus braços me deixe repousar.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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